sábado, setembro 16, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XVIII: AMAI-VOS UNS AOS OUTROS

Durante cerca de um ano, a relação entre Fernando e Júlia havia sido um mar de rosas. A partir daí, o comportamento de Júlia começou a se alterar.

FERNANDO: — Pelo amor de Deus, Júlia! Nós éramos tão felizes! De um tempo para cá você vem infernizando nossa vida! Vive me perseguindo com perguntas absurdas, passou a duvidar de minhas respostas, a me impedir de trabalhar direito por me chamar dezenas de vezes por dia no telefone de meu escritório, a me seguir para saber aonde eu estou indo, a me agredir verbalmente e nem sei o que mais! Que diabos está acontecendo com você para você mudar tanto assim?
JÚLIA: — É porque antes eu não te amava e AGORA EU TE AMO!
FERNANDO (depois de alguns segundos de perplexidade): — Daria, então, para você me fazer um favor?
JÚLIA: — Qual?
FERNANDO: — Daria para você virar o canhão do seu amor na direção do meu maior inimigo?

Amor não é algo que se produza por um ato de vontade. Espontaneamente, ocorre ou não. Se é assim, quais as conseqüências de uma cultura, de inspiração essencialmente cristã, que faz uma maciça apologia do amor, bombardeando quotidianamente o indivíduo com o refrão de que ele DEVE AMAR?
A primeira dessas conseqüências é a igualmente maciça produção de “factóides de amor”, como o ilustrado no diálogo acima, a ponto de o objeto de tal amor “fake” preferir que tão nobre sentimento seja dirigido ao vizinho...
O que ocorre, na verdade, é que, preso na armadilha de uma cultura que entende amar como algo que deve ser obrigatóriamente dispensado de forma universal, o indivíduo, temendo ser pego em flagrante não fazendo uma coisa que, na verdade, não pode mesmo fazer, traveste desejo de amor, mas – alguém se surpreende com isso? – vemo-lo tratar seus seres “amado” como se fossem bifes. E monta-se uma verdadeira “churrascaria existencial” com nome de ONG filantrópica...
O ótimo é inimigo do bom. Seria ótimo se todos nos amássemos uns aos outros, não? Pois é, mas, se a primeira conseqüência do imperativo de amar é uma endêmica perversão do uso da palavra amor, a segunda das conseqüências desse imperativo é a de ele funcionar como uma espécie de “boi para piranha” – aquele que os boiadeiros jogam em um lugar do rio para que, enquanto as piranhas o devoram, o resto da manada passe a salvo ao largo dali. Com efeito, enquanto os indivíduos estão ocupados com tentar entregar o que não podem – ou seja, amarmo-nos todos uns aos outros – não podem ocupar-se de entregar o que poderiam – ou seja, respeitarmo-nos todos uns aos outros.
Sobre esse segundo ponto, foi publicado, no exemplar de 8 de janeiro de 2003 da revista VEJA, uma interessante crônica de Stephen Kanitz, entitulada “Respeitai-vos uns aos Outros”. Encerro este “DIÁLOGO” transcrevendo alguns trechos retirados dali:

“ ‘Amai-vos uns aos outros’ (João 13, 34) é um comando religioso claro e inequívoco, mais conhecido do que os dez mandamentos. É um mandamento exigente, difícil de cumprir. Se a paz mundial depender da incorporação desse valor, o futuro não será muito otimista. ... Respeitar as nossas diferenças como seres humanos, nossas culturas, nossas religiões e nossos tiques nervosos é bem diferente de amar a cultura, a religião e os tiques nervosos do próximo. ... Nunca ouvi um líder negro exigir ou pedir o amor dos brancos. O que ouvimos das lideranças é um pedido de mais respeito.” E, após haver salientado que “podemos perfeitamente respeitar uma pessoa diferente e estranha” sem que, para isso, precisemos amá-la, o autor termina: “Vamos começar o ano de 2003 com uma meta mais light, menos exigente. Vamos começar respeitando-nos uns aos outros”. Assino embaixo, mas parece que mal começamos...

De passagem, o diálogo acima é real. Aconteceu comigo.

sexta-feira, setembro 08, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XVII: DEMISSÃO

O diálogo que segue ocorreu de fato. Travou-se entre mim e uma funcionária de minha clínica:

LUÍS CÉSAR: — Mônica, não estou satisfeito com o fato de que você XYZWJ.
MÔNICA (funcionária, bastante eficiente, mas também bastante malcriada): — Se o senhor não está satisfeito com o meu trabalho, então, me despeça.
LUÍS CÉSAR: — Você está com vontade de pedir demissão?
MÔNICA: — Eu, não!
LUÍS CÉSAR: — Então, vamos combinar assim: quando você estiver com vontade de pedir demissão, você vem falar comigo e pede demissão; quando eu estiver com vontade de demiti-la, eu chamo você e a demito. Por enquanto, estou apenas com vontade de lhe dizer que não estou satisfeito com o fato de que você XYZWJ. Fui claro?

E minha eficiente, embora todo-orgulhosa funcionária, saiu mansa e parou de XYZWJ.

O que podemos aprender aqui?

No diálogo intitulado “Maionese”, o quinto publicado nesta coluna, assinalei que um dos princípios da comunicação adequada havia sido enunciado por Nerso da Capitinga, personagem da Escolinha do Professor Raimundo, de maneira concisa e eficaz: “Eu é eu e o sinhorr é o sinhorr”!

Vivemos em uma cultura com excessiva “promiscuidade existencial”, em que pessoas se dão ao direito de dizer aos outros (detalhe: sem serem perguntadas) o que devem ou não fazer. E não é raro que, numa situação como a relatada acima, a pessoa que sofreu a invasão, sentindo-se agredida, reaja de maneira irracional, agindo, não segundo a sua vontade, mas em função da provocação do outro. Eu não queria – pelo menos naquele momento (mais tarde, acabei preferindo fazê-lo) – demitir a Mônica, mas poderia tê-lo feito, se tivesse reagido de maneira impulsiva a sua tentativa de tomar para si uma decisão que só a mim cabia. Fico satisfeito de, naquele momento de confrontação, ter sido capaz de distinguir com clareza quem era eu e quem era ela.

Aliás, o que será que queremos dizer quando afirmamos que fulano é uma pessoa distinta? Sou inclinado a acreditar que, conscientes ou não disso, queremos é dizer que tal pessoa é capaz de distinguir – ou seja, diferenciar – quem é ela e quem são os demais, não invadindo o espaço de decisão que pertence aos outros, nem permitindo que invadam o seu.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XVI: RESISTÊNCIA E RESISTIDO (II)

Afirmei anteriormente que deveríamos evitar reagir a comunicações do tipo:

FULANO: — Estou com dificuldade de dizer uma coisa para você... (hesitante)

Com respostas do tipo:

BELTRANO: — Ué, pode falar!!!... (seguro e enfático)

E por quê? Porque insistir para que a pessoa fale o que declarou estar com dificuldade de falar gera tensão e mutas vezes, confusão, já que estamos sugerindo que ela atropele sua dificuldade (a resistência) para nos comunicar o que deseja (o resistido). A despeito disso, a reação de BELTRANO é absolutamente corriqueira em nossa cultura e, dificilmente, encontraremos um BELTRANO que nos responda dizendo: “Você tem idéia de que por que você está com essa dificuldade”?
Aliás, bem ao contrário. Freqüentes vezes tive pacientes cujas dificuldades de, durante suas sessões, se expressar franca e livremente eram provenientes de haverem passado por experiências do tipo:

FILHO (com jeito de assustado, acordando o pai em plena madrugada): — “Pai, eu tive um problema e preciso falar com você, mas estou com dificuldade...”
PAI: — “Puxa, meu filho, você pode falar pra mim qualquer coisa, que esteja afligindo você! Sem problema! Eu sou seu pai e estou aqui pra lhe dar apoio e lhe ajudar. Pode falar!”
FILHO (violentando sua própria resistência): — Bem, pai, eu peguei seu carro na caragem, saí nele com meus amigos, e dei uma batida no carro de uma dona...
PAI (aos berros): — “P. Q. P.! EU JÁ LHE DISSE QUE EU NÃO QUERO QUE VOCÊ DIRIJA AQUELE CARRO SEM EU ESTAR AO SEU LADO! BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ,BLÁ, BLÁ, BLÁ!...”

Poderia o pai haver respondido de maneira mais adequada, quando defrontado inicialmente com a hesitação do filho em falar? Sim, haveria. Algo do tipo:

PAI: — “Está bem, filho. E por que você está com essa dificuldade?”

Ao que poderia seguir-se um diálogo do seguinte tipo:

FILHO: — “Porque eu acho que eu fiz uma grande besteira e você vai me dar uma tremenda bronca!”
PAI: — “Bem, pelo que estou vendo, é possível mesmo. O que houve?”

Óbvio que o desenlace não poderia ser o que chamamos de “agradável”, mas não ficaria marcada, no filho, a lembrança de que, quando se diz que “está tudo bem”, na verdade, “está tudo mal”.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XV: CEIA DE NATAL

PACIENTE : — Tive a maior briga com minha sogra e avisei a minha filha que não vou convidar a avó dela para nossa ceia de Natal!
LOGANALISTA: — Não entendi muito bem o “espírito da coisa”... Nós estamos em abril e você já está avisando a sua filha que não vai convidar a avó dela para a ceia de Natal?!
PACIENTE : — Claro! Ela é apaixonada pela avó, que mora em outra cidade, e quase só a vê quando ela vem passar o Natal conosco. Então, é bom que fique preparada para não vê-la!
LOGANALISTA: — Bem, eu acho que bastam os problemas que o mundo nos causa. Não tem sentido ainda nos causar mais.
PACIENTE : — Como assim? Eu tinha que deixar minha filha preparada!
LOGANALISTA: — Entendo e me parece razoável. Mas, para preparar sua filha, você não precisava se colocar em uma posição vulnerável.
PACIENTE : — Que posição vulnerável?
LOGANALISTA: — Você está bem aborrecida com sua sogra, não é?
PACIENTE : — Muito!
LOGANALISTA: — E é por estar aborrecida com ela que não quer vê-la em sua ceia de Natal, não é?
PACIENTE : — Evidente!
LOGANALISTA: — E como você pode ter certeza de que, daqui a oito meses, você ainda estará aborrecida?
PACIENTE : — Bem...
LOGANALISTA: — Não pode, não é?
PACIENTE : — É, não posso.
LOGANALISTA: — Digamos que, quando dezembro chegar, hajam ocorrido mudanças, internas ou externas, que dissolvam seu aborrecimento e que lhe seja perfeitamente possível convidar sua sogra, deixando sua filha feliz.
PACIENTE : — De fato, poderia acontecer isso...
LOGANALISTA: — Mas, da maneira radical que você abordou o problema com sua filha, ou, para provar que você faz o que diz, você não convida sua sogra e se sente culpada por estar fazendo sua filha sofrer desnecessariamente com a ausência da avó, ou passa por cima do que havia dito, convida sua sogra e fica passível de ouvir sua filha dizer “Ué, você não disse que não ia convidar a vovó?”, com uma carinha de quem faz pouco de sua capacidade de fazer o que diz.
PACIENTE : — Então, como eu poderia tê-la protegido, sem ficar nessa tal de “posição vulnerável”?
LOGANALISTA: — Vou dar uma sugestão. Que tal: “Minha filha, tive uma briga feia com a mãe de seu pai e estou muito aborrecida com ela. Como eu sei que você gosta muito dela, quero ir avisando você de que, se, quando chegar o Natal, eu ainda estiver me sentindo assim, não haverá condições de eu convidá-la para cear conosco”? Acho que, assim, você teria “preparado” sua filha, sem prejudicar seu “espaço de manobra” em sua relação com a mãe de seu marido.
PACIENTE : — É verdade, eu teria ficado com mais “espaço de manobra”.
LOGANALISTA: — Você poderia ter sido firme, sem ser radical.
PACIENTE : — Gostei. Aliás, estou começando a me lembrar de várias outras situações em que teria sido mais confortável para mim colocar-me dessa maneira. Uma vez, por exemplo, no meu trabalho...

E a paciente passou a relatar vários outros episódio de sua vida em que teria sido mais vantajoso usar o tipo de comunicação que seu loganalista lhe sugeriu.