segunda-feira, junho 25, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXX: "EU VOU SER ENGENHEIRO!"

Transcrevo a seguir o diálogo travado entre mim e Júlio em uma de suas primeiras sessões comigo:.

JÚLIO (falando muito alto e enfaticamente, na verdade, quase aos berros): — EU VOU SER ENGENHEIRO! VOU SER ENGENHEIRO! VOU SER ENGENHEIRO!
LC: — CONTRA quem?
JÚLIO (muito surpreso): — Hein?
LC: — Ué, estou-lhe perguntando contra quem você vai ser engenheiro.
JÚLIO: — Como assim, “contra quem” eu vou ser engenheiro?
LC: — Digo isso pelo jeito como você estava falando, repetindo-se várias vezes e quase berrando. Dá impressão de que alguém não quer que você seja engenheiro. Seria útil descobrirmos quem é essa pessoa, para podermos combatê-la melhor e você conseguir o que parece querer muito: ser engenheiro.
JÚLIO: — Bem, meu pai sempre me disse que eu não iria ser nada na vida.
LC: — Então, você gostaria de mostrar que ele estava errado.
JÚLIO: — Gostaria muito!
LC: — Mas, na verdade, pelo tom e ênfase que você usou quando disse que ia ser engenheiro, a mim não pareceu que quisesse apenas MOSTRAR. Minha impressão mesmo foi a de que você gostaria de ESFREGAR SEU DIPLOMA NA CARA DELE!
JÚLIO: — É verdade.
LC: — Mas há um pequeno problema.
JÚLIO: — Qual?
LC: — Segundo você me disse, ele está morto.
JÚLIO: — É verdade.
LC: — Mas a vontade de esfregar vingativamente seu sucesso na cara dele continua.
JÚLIO: — É verdade.
LC: — Então, como vamos fazer isso?
JÚLIO: — Não sei.
LC: — Eu tenho uma sugestão.
JÚLIO: — Qual seria?.
LC (expondo os princípios básicos do trabalho loganalítico): — Blá, blá, blá. Blá, blá, blá.

E iniciamos uma relação terapêutica – cuja natureza é exposta de maneira compreensível para o leigo em meu livro “A Nova Conversa” – cujo objetivo imediato era permitir que Júlio transformasse seu projeto de fazer engenharia “CONTRA ALGUÉM” no projeto de fazer engenharia “PARA SI”, condição indispensável para que Júlio livrasse sua vida – em particular sua vida profissional – de uma série de distúrbios, como, por exemplo: auto-sabotagem no caminho para o sucesso, tendência a se tornar um trabalhador compulsivo, dificuldade de usufruir os ganhos auferidos por seus esforços etc., a maior parte deles derivados da culpa proveniente de aquele projeto ter origem no ódio e, não, no amor.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XIX: "DOUTOR, EU SOU NEURÓTICO?"

Há perguntas que são recorrentes no contexto psicoterápico. Uma delas é ilustrada pelo diálogo a seguir, ocorrido na primeira sessão em que atendi Vicente:

VICENTE: — Dr., eu sou neurótico?
EU: — O que é um neurótico?
VICENTE: — Ah, não sei, mas o senhor deve saber.
EU: — Você sabe o que é um lepidóptero?
VICENTE: — Não.
EU: — Então, de que adiantaria eu lhe dizer que você não é – ou é – um lepidóptero?
VICENTE: — É, não adiantaria nada. Mas... Bem, um neurótico é um cara nervoso.
EU: — Você é um cara nervoso?
VICENTE: — É, eu sou um cara nervoso.
EU: — Bem, então, dentro do seu vocabulário, você é um neurótico.
VICENTE: — É, mas ser um neurótico é mais do que ser um cara nervoso.
EU: — Bem, parece que você tem uma opinião mais precisa do que seja um neurótico do que inicialmente pareceu. Então, vamos lá: o que é caracteriza o neurótico, além de ele ser um “cara nervoso”?
VICENTE: — Ah, ele é um cara inferior.
EU: — Como assim?
VICENTE: — Ah, ele não consegue fazer as coisas que os outros conseguem.
EU: — Você não consegue fazer coisas que outros conseguem?
VICENTE: — É, não consigo.
EU: — Por exemplo?
VICENTE: — Bem, blá, blá, blá, blá, blá, blá.

E, a partir daí, passamos a aprofundar nossa pesquisa sobre os sintomas que traziam incômodo para meu novo paciente. Como vêm, toda minha orientação foi na direção da “microscopia”, ou seja, na direção de escapar de abstrações vagas e imprecisas para o trabalho sobre elementos concretos da condição de Vicente. Não é à toa que chamo meu trabalho de LogANÁLISE e, não, de LogosSÍNTESE, a exemplo de Freud, que chamou o seu de PsicANÁLISE e, não, de PsicosSÍNTESE.
Além de abstrações vagas e imprecisas não permitirem nenhum trabalho loganalítico eficaz, diga-se de passagem que um neurótico não precisa ser “um cara nervoso”. Existe, inclusive, um fenômeno neurótico, típico da histeria, via de regra elegantemente mencionado em francês, chamado “belle indiférence” ( = bela indiferença ), em que o paciente apresenta distúrbios de ordem física (paralisias, distúrbios sensoriais etc.), enquanto seu humor se mantém perfeitamente sereno. Qual utilidade terapêutica haveria em ficar eu me preocupando em que meu paciente tivesse uma definição academicamente adequada de neurose, em vez de ajudá-lo a iniciar o trabalho que, se bem sucedido, deixá-lo-á livre de seus sintomas?

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXVIII: "MAU, MUITO MAU!"

Sou proprietário de uma clínica onde vários psicólogos autônomos atendem seus pacientes. Há uma máxima que afirma: “onde abundam as teorias, impera a ignorância”. Espero que não seja verdade, pois a Psicologia é um canteiro de escolas, cada uma com as mais variadas estratégias e técnicas de tratamento. Minha abordagem, a Loganálise, é, ela mesma, uma variação da Psicanálise, essa última, por sua vez, uma das muitas escolas que ocupam o campo da Psicologia. O diálogo a seguir transcorreu entre uma psicóloga – cuja abordagem certamente nada tem a ver com a minha – e seu paciente.
O contexto era o seguinte. Eu estava passando frente à porta de uma das salas da clínica, quando percebi que essa profissional – chamemo-la de Marta – estava hesitando em abrir a porta entreaberta de um consultório para nele entrar com seu paciente – chamemo-lo de João – um menino de cerca de oito anos de idade. Na verdade, ela estava em dúvida sobre se ainda havia algum outro colega seu dentro da sala e não queria arriscar incomodá-lo. Percebi a situação e resolvi tomar para mim a responsabilidade de abrir a porta por ela. A sala, felizmente, estava vazia. Antes que entrassem, transcorreu o seguinte diálogo:

JOÃO (dirigindo-se a MARTA): — Ele é o dono da clínica. Ele É MAU!
MARTA (com voz melíflua): — Não, filho! Ele É BONZINHO!

Confesso que tive vontade de matá-la, como um sunita quer matar os chiitas e vice-versa. Com efeito, na minha religião psicoterápica, o que ela fez é pecado. Tentarei dar um exemplo do tipo de diálogo que eu consideraria não pecaminoso:.

JOÃO (dirigindo-se a MARTA): — Ele é o dono da clínica. Ele É MAU!
MARTA (interessada): — Ah, é? E como você sabe disso?
JOÃO (sério): — Porque ele tem o bigode igual ao do meu tio!
MARTA (dando corda): — E o seu tio é mau?
JOÃO (enfático): — Muito mau! Ele me batia toda a vez que minha mãe me deixava com ele.
MARTA: — E você não dizia isso para sua mãe?
JOÃO: — Dizia, mas etc., etc., etc.

Ou seja, em vez de, como no primeiro diálogo, cortar a fala do garoto – em termos técnicos, de reprimi-lo, o que é contra minha religião psicoterápica – a psicóloga teria feito intervenções que incentivariam o menino a falar sobre eventos traumáticos para, assim, os dissolver – que é o que o que recomenda essa minha religião.
Mas, como sou mais civilizado do que xiitas e sunitas, não a matei. Não fiz nada.
Não. Mentir é feio. Menti. Fiz uma coisa, sim. Fiz uma bela careta de mau para o garoto, que a ela reagiu com uma expressão de desprezo que parecia dizer: “Seu panaca, sei muito bem que você não é mau porcaria nenhuma. Será que você não entende nada de terapia?”

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXVII: PERDA

Mais uma vez, transcrevo um diálogo travado via imeil:

“Luís César Ebraico, como vai o Senhor?
Tenho buscado muito sobre o tema, luto, perda de entes queridos. Muito se fala, sobre perda de filhos, tendo esse como o luto mais sofrido. Sou mãe e avalio que seja mesmo, mas, aos onze anos sete meses e doze dias de idade, perdi minha mãe, sou filha única, meu pai logo casou-se de novo, vivi sempre com meus avos maternos desde então e agora, aos 54, perdi minha avó, com quem sempre convivi – ela sempre morou comigo mesmo depois de meu casamento – e percebi, com isso, que vivo um luto crônico da perda de minha mãe, e está muito difícil viver agora a perda de minha avó. Estou estudando muito o assunto luto, mas me pergunto por que se fala tão pouco sobre o luto na infância, perder a mãe ou o pai, marca-nos pelo resto da vida.gostaria de uma palavra do senhor a respeito e onde encontro literatura, apropriada ao luto na infância. Agradeço muito sua atenção. Um abraço, Patrícia.”

Minha resposta:

“Patrícia,
Vamos ver o quanto posso ajudar dentro dos limites que permite uma troca de imeils. Tentemos o seguinte: sugiro, primeiro, que você dê uma olhada em outros dois diálogos deste blogue, o de número VII, Intitulado "LUTO", e de número VIII, intitulado “KÜBLER-ROSS”. Esses dois “DIÁLOGOS” falam de perda e sua mensagem essencial é a de que:
1) Toda a perda é frustrante e TENTAR NEGAR ISSO NÃO É SAUDÁVEL;
2) O que é fundamental é que se impeça que a “frustração” da perda se transforme em “trauma”;
3) Uma diferença fundamental entre frustração é trauma é que a dor da primeira se mantém localizada onde a ferida ocorreu – por exemplo, se alguém que gosta de jogar futebol tem uma perna amputada, sofre por não poder mais fazê-lo da forma que anteriormente fazia – a dor do trauma, por sua vez, contamina, como uma metástase, praticamente todas as áreas da vida do sujeito, atingindo áreas que, na verdade, não foram diretamente atingidas – por exemplo, esse mesmo sujeito que perdeu sua perna, não apenas tem seu futebol atingido, mas também sua vida sexual, afetiva, social, profissional etc.;
4) O “segredo” para que se impeça que uma frustração – por maior que ela seja – se transforme em trauma é atravessar com sucesso um processo de luto, cuja essência é a de O DIREITO DE SOFRER da pessoa que foi vítima da perda NÃO SEJA INVALIDADO;
5) Maiores esclarecimentos sobre as diferenças entre “frustração” e “trauma” e sobre as maneiras de impedir que a primeira se transforme nesse último podem ser encontrados no meu livro “A Nova Conversa” (Rio: Ediouro, 2004);
7) Em tempo: o fato de a perda haver ocorrido na infância pode torná-la mais impactante, mas a forma de lidar com ela é, em qualquer idade, essencialmente a mesma: é proibido ILEGITIMAR A DOR daquele que está sofrendo. Tenho mais de um caso em que observei as desastrosas conseqüências de mães que, com as melhores das intenções, mas sem conhecimento adequado, tentaram calar a dor de um(a) filho(a) que perdeu – por falecimento, por divórcio etc. – o pai, dizendo que não se preocupasse, pois ela, mãe, passaria a ser pai e mãe ao mesmo tempo. Uma chegou a dizer ao filho que ela ia ser “pãe” ( = pai e mãe ). Não deu certo, nem poderia dar. Essas vítimas de boas intenções ou ficam traumatizadas para sempre ou vão ter que enfrentar com a ajuda de um terapeuta a dor que lhes foi impedido sentir quando ela originalmente ocorreu;
8) Um último comentário. Você disse que é mãe. NÃO IMPEÇA SEUS FILHOS DE SOFRER, QUANDO ELES TIVEREM UMA PERDA, nem que seja tão pequena quanto a de uma bola de gude. Escute-os simplesmente e mostre que está ao lado deles. Diga algo como: “Que chato meu filho! Posso fazer alguma coisa por você?” Já vi crianças responderem: “Não, mamãe, tudo bem, eu só queria falar como eu fiquei chateado!” Isso vai permitir que seu filho siga adiante, sem ficar fixado para sempre – trauma sempre implica fixação! – na lembrança de uma bola de gude.”

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXVI: FÉRIAS

A princípio, minha intenção era só transcrever nesta coluna diálogos que eu pudesse empregar para, a partir deles, expor minhas sábias conclusões sobre a melhor maneira de falarmos uns com os outros. Com o decorrer do tempo, contudo, fui sendo, aqui e ali, assomado por uma tentação de me desviar desse propósito inicial . Doravante, portanto, vez ou outra, vou tirar férias da Loganálise e ceder a essa tentação. Começo hoje. E que tentação é essa? A de transcrever alguns diálogos – e até monólogos - que tenho presenciado, sobre os quais não tenho nenhuma sábia conclusão psicofilosófica, mas que encerram tal graça, tal sabor, que têm valor por si próprios, dispensando o acréscimo de meus comentários.
Os dois que seguem têm como personagem central Pedro, de sete anos, filho de Thiago e de Lara, casal de amigos meus.

1º diálogo

Pedro, Lara e Thiago sentados na mesa de um restaurante, tomando um refrigerante e beliscando. Pedro ocupava-se com um prato de batatas fritas, enquanto seus pais mordiscavam vez ou outra de um prato de torresmos, quando se inicia o seguinte diálogo:

LARA (dirigindo-se a THIAGO): — Você acha que faria mal o Pedro provar um pedaço de torresmo?
THIAGO: — Bem, se não resolver comer o prato todo! Deixa ele provar...
LARA (estendendo um pedaço para o filho): — Prova, filho.
PEDRO: — Deixa eu cheirar antes.
(Cheira o torresmo).
LARA: — E então, filho?
PEDRO: — Não, obrigado. Meu nariz comeu e não gostou.

2º diálogo

Nove horas da noite, Thiago em seu escritório, trabalhando no computador. Chegam Pedro e Lara. Ficam em silêncio, com o pai olhando para eles, sem entender.

LARA (dirigindo-se a PEDRO): — Fala, filho!
PEDRO: — Papai, eu e mamãe vamos sair para tomar uma Coca-Cola. Eu disse pra ela que eu gostaria que você fosse com a gente.
THIAGO (entre surpreso e assustado): — Caramba! Que doidera! Enquanto vocês estavam em silêncio, eu fiquei olhando para o Pedro e me veio vontade de tomar uma Coca-Cola! E olha que eu não sou de tomar Coca-Cola! Eu, hein!
LARA: — Viu, filho, seu pai é telepata, ele lê o que se passa na cabeça dos outros.
PEDRO: — Eu também leio! Outro dia, eu olhei para a cara de um cachorro e vi que ele estava pensando: “AU! AU! AU!”

Precisa mais?

domingo, junho 24, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXV: LEI AFONSO ARINOS

Wellington, embora fiho de uma mulata, então minha namorada, era preto retinto e, à época do diálogo que vou relatar, tinha cerca de 9 anos de idade. Penso que havia assistido na televisão algum comentário sobre a Lei 1.390, sancionada por Getúlio Vargas em 3 de julho de 1951, e mais conhecida sob o apelido de Lei Afonso Arinos. Como sabe a maioria de nós, o objetivo desta lei é por um freio ao preconceito racial, embora essa mesma maioria de nós jamais tenha compulsado a lei, não conhecendo, dessarte, seu exato conteúdo. Estava eu, assim, posto em sossego, quando me aparece o garoto, perguntando:

WELLINGTON: — Luís César, se alguém chamar o outro de preto, vai pra cadeia?
LC (algo hesitante, pois ainda não conhecia o texto exato do diploma legal): — Bem..., acho que sim, filho!
WELLINGTON: — E se chamar o outro de f.d.p., também vai!
LC (mais hesitante ainda): — Bem..., acho que não!
WELLINGTON: — PRETO É PIOR QUE F.D.P.?!

Chega-me, através de uma nuvem, a idéia de que respondi:

LC: — Bem, meu filho, para mim, não!

Mas não consigo, até hoje, deixar de sentir uma certa sensação de débito em relação ao menino, cuja expressão revelou que o possível fato de, para mim pelo menos, preto não ser pior do que f.d.p., não resolvia nem um pouco seu problema.
Hoje, sei que a Lei 1.390 não comina pena a quem chamar outrem de preto ou negro. E confesso que, soubesse eu disso àquela época, teria ficado mais satisfeito ao responder:

LC: — Não, Wellington, todo mundo pode chamar aos outros de preto e de f.d.p. à vontade! E de branquelo também!

Ufa!

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXIV: CINDERELAS DO DIA

Meninas de rua de Ipanema são “CINDERELAS DO DIA”: assemelham-se à do conto infantil por ter um vida dupla, mas, divergem daquela em relação a horários. Vejamos como:
À noite vivem seu aviltamento – ora dormem ao relento, no duro chão das calçadas, ora arriscam voltar a suas casas nas favelas, o mais das vezes para receber pancadas e maus tratos de pais bêbedos, drogados e marginais.
Ao amanhecer do dia, particularmente no verão, entram numa abóbora transformada em carruagem – uma prancha de surf tirada de não sei onde – e vão-se divertir deslizando sobre as águas do Arpoador. Chegada a fome, conseguem regularmente que a população enricada da área lhes pague alguns suculentos cheeseburgers ou redondos pratos-feitos, que comem gostosamente em grupo, geralmente regados por uma coca de dois litros, que dividem entre si. Depois? Depois, praia outra vez.
Voltada a noite, num passe de mágica que não compreendo, as pranchas-carruagem desaparecem e elas mergulham novamente no borralho das favelas e calçadas, certamente sonhando com a praia-palácio a que retornarão quando o dia voltar.
Observo-as bastante e pretendo saber relacionar-me com com elas. Uma vez, por exemplo, roubaram-me sem que eu visse vinte pratas de troco que estavam em cima do balcão de um bar. Eu disse que não falaria mais com elas enquanto o dinheiro não voltasse. Confessaram o “crime”, disseram que já tinham gastado o dinheiro, mas que iam conseguir de novo para me devolver. Fizeram isso. Com um bastante tolerável atraso de 48 horas.
Saboreemos o diálogo que travei com uma delas num de seus faustosos momentos de princesa lúdica, durante de uma tarde luminosa de verão:

MENINA PEDINTE: — Me dá dez reais aí!
EU: — Não dou!
MENINA PEDINTE: — Você não tem?
EU: — Tenho mais do que isso.
MENINA PEDINTE: — Então por que não dá?
EU: — Porque estou de mau humor!
MENINA PEDINTE: — Então me dá sete.
EU: — Qual o mínimo que você está aceitando hoje?
MENINA PEDINTE: — Ué, sete!
EU: — Dou dois!
MENINA PEDINTE: — Dois é muito pouco!
EU: — Tem razão! Eu ficaria ofendido se me alguém se oferecesse a me dar só dois reais!
MENINA PEDINTE: — Então me dá sete.
EU: — Só dou dois.
MENINA PEDINTE: — Tá bem. Eu fico com dois.
EU: — Tem certeza? Acho um pouco ofensivo...
MENINA PEDINTE: — Não, tá bom. Me dá.
EU (passando os dois reais): — Pega aí, mas eu não receberia...
MENINA PEDINTE (saindo, toda serelepe, na direção das amiguinhas, que esperavam adiante): — Tchau!
EU (rindo por dentro): — Tchau!...

É mole?

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXIII: PENSO, LOGO EXISTO

Uma de minhas leitoras, que chamerei de Marlene, enviou-me um imeil dizendo que, embora interessada em meus “DIÁLOGOS”, eles, por vezes, a cansavam e ela não sabia “aonde eu queria chegar”. Respondi assim:

“Marlene, entendo que você fique cansada com meus escritos: eles são densos e, para muitos, pensar cansa. Só não entendi que você não tenha entendido aonde eu quero chegar: não sei bem quais de meus escritos você leu, mas penso que deixei clara a intenção de fornecer repertórios para que as pessoas sejam capazes de se apropriarem, via palavra, do que ELAS, de fato, SÃO.”

E, tendo replicado, recebi a seguinte tréplica:

“Você reflete sobre a nossa identidade: somos dois? Cindidos? Acho que me senti sem resposta. É isso....Mas depois fiquei pensando: às vezes é assim mesmo que funcionamos; vamos de um registro a outro e nem sempre eles tem conexão! E isso ajuda a entender também a forma de comunicação entre algumas pessoas: uma fala uma coisa, pensando em ouvir "certa" resposta e o interlocutor vem com outra "idéia" completamente distinta. Alguns de seus textos demonstram isso. Mas leio sempre e sinto por você não poder escrever com maior freqüência. Fico esperando novidades. Desde a sua estréia achei estranho, pois você foge do modelo "receita pronta", temperado com manual de "auto-ajuda", ainda que eu mesma goste bem de alguns outros autores e autoras do Vya Estelar. Teu estilo deixa a gente "no ar", tendo que pensar!!! Acho que pensar não cansa. Não cansa, não! Conseguir interlocução, ou melhor, compreender que não há resposta pra tudo!”

Minha resposta:

“Marlene, acho haver pouca dúvida quanto ao fato de que todos nós somos dois. Um é o “eu” que reconhecemos como nós mesmos, outro é o que Freud chamou de “isso”: aquele pedaço de nós que, quando toma conta de nosso comportamento, nos faz sentir que estávamos “fora de nós”. E só somos capazes de reconhecer estivemos sendo operados por esse “isso”, depois que novamente “caímos em nós”...
Quanto a meus textos levarem as pessoas a “ter que pensar”, o propósito é esse mesmo. Embora eu saiba que, para certas pessoas, isso é extremamente cansativo. Preferem “receitas de bolo”. Você acha que haja resposta pronta sobre como jogar xadrez? Você acha que pode haver alguma manual dizendo que SEMPRE é bom colocar o cavalo na terceira casa da rainha, ou que SEMPRE é mal deslocar a torre para a segunda casa do bispo do rei? E você acha que o jogo de xadrez é mais simples do que a vida?
Para jogar bem xadrez e jogar bem a vida é necessário SABER O QUE SE PRETENDE e é necessário PENSAR. Saber o que se pretende em um jogo de xadrez é mais do que fácil: é dar cheque ao rei. Saber o que se pretende da vida, de um ponto de vista bem geral, também não é tão difícil: é conseguir a maior QUANTIDADE DE VIDA, com a melhor QUALIDADE DE VIDA.
Agora, para conseguir isso, é preciso PENSAR, REFLETIR. E você me dizer que “pensar não cansa”... Bem, isso pode ser verdade para certas pessoas – de repente, como eu disse, não cansa a você – mas, em minha experiência, a certas pessoas, cansa muito!
[1] Evidente que todos os nomes usados são fictícios.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXII: A SURDEZ E O AMOR

Recebi o seguinte imeil de uma leitora dos “DIÁLOGOS” que publico aqui:

“Ôi Luis, prazer em conhecê-lo, mesmo de longe. Meu problema é o seguinte: me separei depois de 28 anos de convivência e 25 de casamento e tenho duas filhas. O que não consigo entender e me entristece muito é que, até uma semana antes de esse homem me dizer que ia embora, ele me mandou mensagens via celular dizendo que me amava.
O relacionamento, a essa época, já estava ruim, pois hoje tenho certeza que ele se comunicava via Internet com outra pessoa que também dizia amá-lo e ele foi embora porque me disse que achou uma pessoa que o entende.
Eu vivi muito bem em meu casamento, nosso relacionamento era muito bom de harmonia, meus amigos também vivenciaram isso, assim como eu e minhas filhas. Agora, não estamos entendendo nada, nem quem é essa pessoa com quem estive casada.
Sei é complicado, mas imagina minha cabeça.. Ajude-me, se puder, com uma resposta para que eu possa entender tudo isso um pouco. Minhas filhas são adultas e, mesmo assim, sofrem muito.
Envie-me uma resposta..Obrigada pelo carinho..Bom trabalho.”

Esta foi minha resposta:

“Silvana,
em sua mensagem, você enfatiza NÃO ENTENDER, NÃO ENTENDER, NÃO ENTENDER. Evidentemente, não conheço você a fundo e seria muito pretensioso de minha parte enviar-lhe uma resposta “sob medida”. O máximo que posso fazer é passar-lhe algo “prêt-à-porter”. E o que seria?
O seguinte: a esmagadora parte das vezes que ouvi alguém dizer que NÃO ESTAVA ENTENDENDO ALGUÉM, a razão era simples: quem NÃO ENTENDIA, não entendia, porque não CONSEGUIA ESCUTAR.
Digamos, apenas para fim de argumentação, que EMBORA SEU MARIDO AMASSE VOCÊ, ele NÃO SE SENTISSE ESCUTADO.
Tem uma hora em que NÃO SER OUVIDO cansa e a pessoa prefere alguém que ela AME MENOS, mas que seja CAPAZ DE OUVIR...
Uma resposta possível para suas indagações, em meu cardápio “prêt-à-porter”, é que você foi SURDA, na relação com seu ex-marido. Será que, quando ele lhe disse, por exemplo, que estava infeliz com alguma coisa, você lhe respondeu que ele NÃO DEVIA estar se sentindo assim, ou equivalentes?
Uma coisa posso lhe afirmar, sem risco de estar sendo pretensioso: A SURDEZ MATA O AMOR."

NASCIMENTO E SAÚDE PSICOLÓGICA

Entre os fatores que determinam saúde e doença psicológicas, desempenha papel fundamental a passagem do meio intra-uterino para o extra-uterino.
No primeiro, o prazer funcional que corresponde à saúde é obtido de forma passiva, regulado pelo sistema nervoso da mãe, numa integração entre o sistema-feto e o meio-ambiente-útero que podemos considerar de quase-indiferenciação. Com o nascimento, rompe-se esse equilíbrio prazeroso funcional passivo e a integração não diferenciada que caracterizavam a situação intra-uterina. O recém-nascido encontra-se em uma situação de desequilíbrio prazeroso-funcional e, já diferenciado, é vítima da não-integração – que poderá ou não vir a ser superada – com o novo meio-ambiente que o cerca. O material fornecido por pacientes sob terapia sugere que, a partir desse instante, a natural tendência do aparelho psíquico para buscar o prazer e evitar o desprazer desdobra-se em duas vertentes:
Uma delas – chamemo-la de “desejo de fetalização” – busca a recuperação do estado de equilíbrio prazeroso passivo e indiferenciado que constituía a situação intra-uterina. Como essa recuperação é evidentemente impossível, a vertente da fetalização vai compor as forças que buscam a satisfação na fantasia, satisfação que, sempre precária, cria um núcleo crônico de frustração.
A outra vertente – à falta de melhor nome, chamemo-la de “desejo de genitalização” – passa a buscar a recuperação do estado de equilíbrio prazeroso de forma ativa e auto-orientada, culminando, quando bem sucedida, numa integração com o meio-ambiente compatível com a diferenciação conseqüente ao nascimento.
As duas vertentes poderiam, a uma visão de superfície, ser identificadas com, respectivamente, a “Pulsão de Morte” e a “Pulsão de Vida” freudianas e, com efeito, tanto essas conceptualizações do pai da Psicanálise quanto as aqui expostas têm, a nosso ver, origem no reconhecimento da existência do mesmo tipo de material empírico. Tal identificação, contudo, não procede, na medida em que:
1º. O “desejo de fetalização” não corresponde a nenhum “desejo de morte”, a não ser, no limitado sentido de que nossa produção simbólica freqüentemente equaciona túmulos com úteros e cadáveres com fetos;
2º. O “desejo de fetalização” é assumidamente uma estratégia de busca de prazer, não pressupondo, como faz seu correlato freudiano, um salto “para além do princípio do prazer”;
3º. Tampouco existe, acoplada ao conceito de “desejo de fetalização”, nenhuma hipótese de que ele seja derivado da tendência do orgânico para voltar ao inorgânico;
4º. Por fim, a proporção de “desejo de fetalização” e de “desejo de genitalização” operantes em um determinado psiquismo não é considerada como biologicamente determinada nem como inaccessível a alteração por via psicoterápica, mas, pelo contrário, como sendo grandemente determinada pela história de cada sujeito e passível de ser modificada por esse tipo de tratamento.
Essas considerações me levam a sustentar que um psiquismo será tanto mais saudável quanto mais houver atingido um equilíbrio prazeroso, funcional, ativo e orientado, capaz de estabelecer uma integração diferenciada com o meio ambiente que o cerca.