sexta-feira, julho 20, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXV: LOGANÁLISE E AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

Não sou religioso. Na verdade, sou agnóstico. Do ponto de vista clínico, o que verifico é que determinadas pessoas usam a religião a seu favor e dos demais e outras usam-na contra si mesmas e contra os outros. Muitas vezes, a mesma religião. Quanto a conteúdo, acho boa parte do que dizem padres, pastores, imãs e aiatolás um amontoado de insensatez.
Foi, portanto, para meu alargado espanto que encontrei, folheando um exemplar de “A Sentinela” (vol. 127. n° 18), revista publicada pelas Testemunhas de Jeová, um artigo intitulado “Mostre Amor e Respeito por Controlar a Língua”. “Controlar a língua”!? Prato cheio para um loganalista! Meti-me imediatamente a lê-lo e – amplia-se ainda mais o espanto! – encontro algumas afirmações – a maior parte delas apoiadas por citações da Bíblia – absolutamente afinadas com o que defendo em meu livro “A Nova Conversa” e nos “Diálogos” que publicados aqui. . Vejamos:

1º. O reconhecimento – e numa revista que, segundo o editor, tem cada número com uma tiragem média de 27 milhões de exemplares! – da fundamental importância da qualidade de nossa comunicação verbal: “a maneira como você usa a língua é um assunto sério” (p. 21);

2º. A afirmação de que um adequado uso da palavra tem estreita relação com a capacidade de sermos senhores de nós mesmos. O artigo cita o apóstolo Tiago (3:2): “Se alguém não tropeçar em palavra, esse é o homem perfeito, capaz de refrear também todo o seu corpo” (ibidem)

3º. A condenação da macroscopia, considerada forma inadequada de comunicação interpessoal: “E que dizer de afirmações indiscriminadas ... Não concorda que declarações do tipo ‘você sempre atrasa’, ou ‘você nunca me escuta’ são realmente exageros?” (Ibidem)

4º. A proposta de que autologias – frases enunciadas na primeira pessoa verbal – substituam as heterologias – frases enunciadas nas demais pessoas verbais: “Digamos que surja um desacordo entre marido e esposa. Uma sutil mudança de ‘você’ para ‘eu’ pode evitar que um desacordo menor se torne uma discussão acalorada. Por exemplo, em vez de dizer: ‘Você nunca passa tempo comigo!’, por que não dizer: ‘Eu gostaria que pudéssemos passar mais tempo juntos’?” (Pág. 22)

5º. A ênfase em que, na medida em que estou fazendo o essencial, ou seja, expondo meus sentimentos e desejos em primeira pessoa, ter ou não ter razão é algo secundário: “Resista à tentação de tentar provar quem está certo e quem está errado” (ibidem).

Uma verdadeira aula de Loganálise, que, agora, além de se apoiar em Freud, encontra seu apoio bíblico!
De algo, contudo, defendido por “A Sentinela”, discordo radicalmente, seja, da proposta veiculada no artigo, de que, além de controlar nossa língua, tentemos controlar nossos sentimentos: “Paulo [Efésios 4:31] exortou os efésios a evitar não apenas as palavras duras, mas também os sentimentos por trás delas” (ibidem).
Sentimentos expulsos voltam a galope, sob forma de sintomas e de comportamentos destrutivos que escapam de nosso controle. ISSO, que São Paulo me perdoe, NÃO DÁ CERTO!

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXIV: CHORO

Fragmento de um longo imeil que me foi enviado por um de meus irmãos, que chamarei aqui de Otávio:

“Lembro de uma vez que você fez uma reunião de família e chorou bastante para falar de algumas culpas e eu fiquei espantado porque não conseguia imaginar você com aquela "fraqueza". Foi a primeira vez que pensei que chorar poderia significar força, já que eu tinha passado tantos anos chorando descontroladamente (era uma vergonha na escola), coisa que só consegui dominar com muita força de vontade.”

Decidi que responder a ele, empregando o tipo de formato que uso aqui:

“Otávio, sei que você é uma pessoa interessada em Psicologia, particularmente a de cunho psicanalítico. Então acho que – relativamente a “choro poder significar força” – você vai achar enriquecedoras algumas considerações sobre a “força do ego”. Essa força tem três níveis:

Nível 1 – Neste nível – impulsivo, máximo na psicose – o ego é tão fraco que, se o sujeito entrar em contato com um desejo ou uma emoção, deixa-se invadir e dominar por eles, expressando-os sem controle, sob formas que podem ser gravíssimas – alucinações, delírios e comportamentos altamente desadaptados. Ilustro com um diálogo:

PACIENTE: — De vez em quando, tem passado rapidamente por minha cabeça uns pensamentos agressivos em relação a meu pai.
LC: — Ué, deixa vir.
PACIENTE: — Não deixo, não.
LC: — Por quê?
PACIENTE: — Porque se eu deixar, eu faço.

A paciente já tinha sido vítima de surtos psicóticos. No último deles, ocorrido em plena madrugada, uma voz lhe ordenou que fosse até a cozinha, pegasse um facão e o enfiasse em seus pais, que dormiam. Alguma coisa dentro dela se opôs a isso e a voz disse que, sendo assim, ela teria que tirar toda a roupa e sair nua pela rua – uma das principais do Rio – onde morava, o que ela fez, sendo presa por PMs e levada para o Pinel. Acontece que, há mais de ano, eu não a estava atendendo mais no hospital, mas sim, em minha clínica, onde não costumo atender pacientes graves, sendo que, à época da sessão, a paciente já estava bastante bem. Imagino que foram esses dois fatores que me levaram a cometer o deslise de propor a uma paciente com um ego fraquíssimo que desse rédea solta aos pensamentos agressivos que abrigava em relação a seus genitores. Se a paciente, naquele momento, não tivesse tido mais juízo do que eu e me “puxado a orelha” a tempo, minha intervenção poderia ter tido conseqüências bastante nocivas.
Embora, certamente, você, meu irmão, não seja nem jamais tenha sido psicótico, quando você era avassalado pelo choro em sua escola, a força de seu ego, pelo menos no que diz respeito ao choro, se encontrava nesse primeiro nível, ou seja, era incapaz de controlá-lo.”

Nível 2 – Neste nível – repressor, típico da neurose – o ego consegue controlar seus impulsos e emoções À CUSTA DE ROMPER DE FORMA RADICAL SEU CONTATO COM ELES. A paciente a que me referi estava bem quando ocorreu o diálogo que acabei de transcrever porque seu ego estava começando a se estabilizar – mas não o suficiente ainda – nesse segundo nível, neurótico, de força, mas essa estabilidade ainda não era sólida o suficiente para que o contato com seus impulsos parricidas não a jogassem de volta ao nível anterior. Acho provável que, no que diz respeito ao assunto “choro”, você tenha passado do Nível 1 para o Nível 2 de força do ego, quando “só com muita força de vontade” conseguiu dominá-lo.

Nível 3 – Neste nível – integrador, típico da saúde psicológica – o ego consegue controlar seus impulsos e emoções SEM TER QUE EFETUAR UM ROMPIMENTO RADICAL, como o que tipifica o nível anterior. Pode dar acesso ou bloquear o acesso desses impulsos e emoções tanto à consciência quanto ao comportamento, conforme as circunstâncias o exigirem. Ilustro com um episódio que ocorreu comigo, o qual, sendo eu, como você sabe, um bom gaiato, embora fosse triste, acabou por ficar com um toque cômico:

Eu estava, um domingo pela manhã, em Paquetá, com uma amiga – vou chamá-la de Tânia aqui. Poucos dias antes, havia ocorrido um episódio que me deixara profundamente triste e inconformado: uma perda absurda, dessas completamente desnecessárias, nascida da mera leviandade com que se tratara um assunto extremamente grave, isso a despeito de eu haver alertado repetidas vezes as pessoas envolvidas dos riscos potenciais da situação em tela. Eu não podia pensar no assunto que as lágrimas vinham a meus olhos junto a uma profunda dor e eu sabia que só eu impediria que aquela dor se transformasse em um trauma se desse a mim mesmo a oportunidade de chorar muito e durante um bom tempo. Por volta de meio-dia, eu estava sentado na varanda de minha casa, em silêncio, olhando para lugar nenhum, quando Tânia se aproximou.

TÂNIA: — Você está precisando falar e chorar mais um pouco?
LC: — Estou, mas não agora. A barca para o Rio sai às 17hs. Temos que ir ao supermercado comprar alguma coisa, voltar para casa, preparar o almoço e depois comer e, quem sabe, descansar um pouco. As três horas eu levanto e choro até às 16hs, aí arrumamos as coisas e pegamos a barca das cinco.
TÂNIA: — Você está MARCANDO HORA para chorar?
LC: — Isso.
TÂNIA (me olhando como se eu fosse um iéti, o abominável homem das neves, ou, quem sabe, um hipopótamo azul): — Você é mesmo uma figura, hein!

Devo ser mesmo. Porque fui ao supermercado, voltei, ajudei a fazer o almoço, comi – nada disso, obviamente, de alma leve, mas sem chorar – descancei um pouco, pus o despertador para as três, levantei-me quando ele tocou e, durante uma hora, voltei ao assunto com minha acolhedora amiga, falando aos soluços, tomado por um pranto convulsivo e sentindo intensa dor. Às quatro, disse: “Chega!”. Arrumamos nossas coisas e fomos pegar a barca. Eu ainda inevitavelmente triste, mas indiscutivelmente aliviado.
Esse, naturalmente, é um exemplo extremo – como a psicose é um exemplo extremo do primeiro – do terceiro e último nível de força do ego, mas expõe sua característica principal: a possibilidade de entrarmos em contato com nossas emoções e nossos desejos, sem permitir que eles nos tomem de assalto, destruindo a nossa vida real.
Abraços de seu irmão, Luís César.”

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXIII: "VOCÊ ME ACHA GOSTOSA?".

Nosso último “DIÁLOGO” começava assim:

PACIENTE: — Você está me achando chato?
LC: — Posso?

E, como vimos, minha intervenção terminou por levar a um destravamento do processo terapêutico. Descobri, tempos depois, esse tipo de intervenção pode ser perigoso. Notem o efeito que teve com outra paciente, uma mulher particularmente atraente:

PACIENTE: — Você me acha gostosa?
LC : — Posso?
PACIENTE (aos berros e desabando em um pranto convulsivo): — NÃO! NÃO! NÃO PODE!!!

E, continuou chorando convulsivamente, enquanto eu tentava me recuperar do susto que levara. Só se acalmou um pouco, embora continuasse choramingando, quando intervim, quase que dando uma bronca:

LC : — Menina, você quer me matar? Já estou velho. Se você me der mais um susto desses eu embarco desta para a melhor!

Eu não tinha avaliado corretamente o nível de regressão da paciente e, conseqüentemente, tampouco a intensidade do pânico que llhe provocava a idéia de ser desejada sexualmente, em particular, imagino, por uma figura mais velha em posição de autoridade (na verdade, a paciente estava havia pouco tempo comigo e já tinha dado indícios que sugeriam ter sido ela seviciada, na infância, pelo pai). Meu erro acabou por se mostrar irreparável: ela não suportou trabalhar essas dificuldades comigo e abandonou o tratamento. Hoje, depois dessa experiência, eu, em situação análoga, desenvolveria o diálogo da seguinte forma:

PACIENTE: — Você me acha gostosa?
LC : — Qual o impacto que tem sobre você a possibilidade de eu achá-la gostosa?

Ou seja, ter-me-ia aproximado do assunto de maneira muito mais delicada, evitando possivelmente, dessa forma, a defecção da paciente. Esse tipo de erro deixa claro que não basta você acertar QUAL O TEMA que merece tratamento prioritário durante um certo momento da análise, é necessário que você os CONSIGA ABORDÁ-LOS DE MANEIRA “VACINAL”. Na verdade, a Psicanalise – loganalítica ou não – opera como uma vacina: você introduz no paciente o elemento perturbador, mas com sua virulência suficientemente atenuada para que a conseqüência disso seja a geração de imunidade, não de doença. Eu errei e a paciente saiu do tratamento, certamente perturbada. Tenho a esperança de que outro terapêuta tenha podido consertar meu engano.
Durante as quatro décadas em que venho trabalhando como terapeuta, cometi mais dois erros semelhantes. Um dia desses, eu conto.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXII: CHATICE.

Fragmento de sessão:

FÁBIO: — Você está me achando chato?
LC: — Posso?
FÁBIO: — Claro que não!!!
LC: — E por quê?
FÁBIO: — Ué, eu me sinto mal.
LC: — Eu também, se achar você chato, vou-me sentir mal.
FÁBIO: — Então!
LC: — Então, o quê?
FÁBIO: — Eu quero evitar isso.
LC: — Fábio, o que é que nos estamos fazendo aqui?
FÁBIO: — Loganálise, ué!
LC: — A Loganálise é um papo social?
FÁBIO: — Não.
LC: — Pois é. Num papo social, nada mais razoável do que os participantes evitarem ser chatos. Não me parece que seja bem o nosso objetivo aqui. Qual é nosso objetivo aqui?
FÁBIO: — Ué, eu ficar bom.
LC: — Tá, mas que recurso nós estamos usando para atingir isso?
FÁBIO: — Ué, eu falar tudo o que me vem a cabeça e depois refletirmos juntos sobre o que está acontecendo ou que aconteceu.
LC: — TUDO o que vem à sua cabeça, MENOS o que faça você parecer chato?
FÁBIO: — Não. Você tem razão. Faz parte do jogo eu ter que enfrentar a possibilidade de você me achar um chato.
LC: — Acho que eu tenho perfeitas condições de sobreviver à possibilidade de achá-lo um chato.
FÁBIO: — Tá bom, pode me achar chato á vontade.
LC: — Obrigado, fico mais à vontade. Podemos prosseguir?
FÁBIO: — Claro! Blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Consideremos duas situações antípodas: por um lado, uma sessão psicanalítica, em que o fato de o analista estar achando o paciente interessante ou chato, culpado ou inocente, bonito ou feio, inteligente ou burro etc. não deveria em nada prejudicar ao paciente; por outro, uma audiência judicial, em que faz toda a diferença do mundo o juiz achar que o réu tem razão ou não. No primeiro caso, não há o menor sentido em tentar influenciar o pensamento do analista; no segunto, há todo sentido em tentar influenciar o do juiz. Acontece que a maior parte das pessoas está viciada nesse segundo tipo de comportamento e tenta manipular os outros, introduzindo ou querendo bloquear neles, pensamentos CUJA CONSEQÜÊNCIA CONCRETA sobre a vida do pretenso manipulador é INSIGNIFICANTE OU NULA. Conseqüência? Exemplifico: um sujeito está sentado em um restaurante e pede um vinho mais caro do que o que queria pedir PARA QUE O CASAL DO LADO, que ele não conhece nem tem a menor relevância para sua vida, NÃO PENSE QUE ELE É POBRE. Em suma: está sendo controlado por aqueles que pretende controlar, e com um sério agravante: SEM A MENOR NECESSIDADE DE FAZÊ-LO!
A regras da relação psicanalítica foram idealizadas para que essa armadilha seja exposta e evitada.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXI: FRUSTRAÇÃO OU TRAUMA?

O tratamento de Fernando foi um dos mais bem sucedidos dentre os que conduzi. Não apenas por seu resultado ter sido extremamente satisfatório, mas pela gravidade de seu quadro clínico quando começamos nosso trabalho. Fernando estava em pleno processo regressivo: começara trancando sua matrícula no curso de medicina; em seguida, rompeu com os amigos e, pouco depois, com a namorada; começou a colecionar estátuas de Buda em seu quarto (o que, naturalmente, só tem o significado mórbido pelo contexto em que ocorreu) e, morando em frente à praia, passava a maior parte do dia dentro d’água, fazendo surf. A direção geral do processo era de afastamento do mundo. Hoje, é um bem sucedido médico em um país do primeiro mundo. Lá para o fim de sua análise, quando já quase completamente recomposto – já retornara à faculdade, aos amigos, saia novamente com garotas e, evidentemente, não passava mais o dia inteiro dentro d’água (com os Budas, não me lembro o que aconteceu) - saiu-se com essa:

FERNANDO: — Interessante! Sempre detestei Microbiologia. Quando tranquei a matrícula, tinha sido reprovado nessa cadeira. Depois que voltei para a faculdade, retardei o quanto pude reinscrever-me nela. Logo que entrei em análise, pensei: vou fazer análise, ficar bom, passar a gostar dessa porcaria dessa matéria, estudar com gosto e passar. Agora, estou chegando a conclusão de que não há análise no mundo que me faça gostar de Microbiologia e, ou eu enfio a cara, mesmo detestando isso, sou aprovado na matéria e pego meu diploma, ou nunca vou ser médico em minha vida! [Após um bom período de silêncio, continua:] Será que ter alta é descobrir que o psicanalista não serve para nada? [Mais um silêncio e completa:] Não, serve sim. É a única pessoa que consegue ouvir tranqüilamente que ela não serve para nada.

Esse monólogo – na verdade, um diálogo consigo mesmo – ilustra um importante resultado de uma análise bem sucedida: o de transformar uma situação traumática em uma situação meramente frustrante. A diferença entre esses dois tipos de situação pode ser abordada de vários ângulos, mas um dos mais relevantes é o de que a situação meramente frustrante é insatisfatória, mas não paralisa nem desorganiza o sujeito e a situação traumática sim. Fica evidente, no exemplo de Fernando, que a necessidade de estudar Microbiologia para conseguir o diploma de médico passou, ao longo da análise, de situação traumática para situação meramente frustrante. E o paciente “deu a dica” de que instrumento opera esse “milagre”: é a naturalidade da escuta do analista, capaz de ouvir, inclusive, que “não serve para nada”.
As considerações de Fernando apontam também para o fato de que, freqüentemente, a expectativa do paciente em relação à análise, NÃO É apenas a de que o analista transforme trauma em frustração. O mais rotineiro é um paciente que fica paralisado e desorganizado – leia-se traumatizado – diante de situações de rejeição, dizer ao analista que o que deseja conseguir do tratamento é, por exemplo, “parar de se sentir rejeitado”.
É importante explicar a ele que a análise não tem o condão de lhe fornecer isso, mas, apenas o de que a rejeição não o traumatize, paralisando-o e desorganizando o seu comportamento. E, de passagem, que não achar desagradável ser rejeitado não é exatamente o melhor exemplo do que seja saúde mental.

quarta-feira, julho 04, 2007

OS MALEFÍCIOS DA PSICOLOGIA DO FAZ-DE-CONTA

Sobre a reportagem "EU, MEU MELHOR AMIGO", publicada na edição 2015 da revista VEJA (ano 40, n° 26, 4/07/2007):

Empregar técnicas psicológicas para instrumentar a premissa de que "cada um é o que pensa ser" é, no mínimo, perigoso. Conheço vários pacientes internados em hospitais psiquiátricos que "acreditam que são o que pensam ser". Uma dentre esses pacientes, por exemplo, na realidade impossibilitada de ser mãe, desfila pelo pátio de um desses hospitais levando nos braços uma boneca de pano que diz ser sua filha, no que, naturalmente, apenas ela acredita.
Remédios empregados em overdoses ou fora de indicação são veneno. Como professor de Psicanálise e prático da clínica psicanalítica faz quarenta anos, posso asseverar que a Pretending Psychology (Psicologia do Faz-de-Conta) americana prescreve o chamado "pensamento positivo" de maneira indiscriminada e em doses claramente tóxicas, do que é exemplo, a sugestão - feita em O Segredo por Rhonda Byrne - de que esse tipo de pensamento, adequado somente para certas condições específicas, se torne um "modo de vida para" todos.
Ora, qualquer psicanalista iniciante sabe que a aplicação do pensamento positivo dessa forma e nessa dosagem acaba redundando em recalque, ou seja, alienando permanentemente o sujeito do contato de várias partes de si mesmo, tornando-o uma farsa e provocando uma série de distúrbios físicos e psicológicos. É minha opinião, inclusive, que a obrigação, típica do ambiente cultural americano, de estar o tempo todo OK é a principal responsável pelo fato de que, com apavorante freqüência, alguém que não mais agüenta ter que fingir que está bem quando não está suba em uma torre e mate indistintintamente várias pessoas que não conhece, dando lugar a deploráveis episódios como os ocorridos em 1999, em Columbine, e, mais recentemente, na Universidade da Califórnia. A Psicologia do Faz-de-Conta americana é a versão não medicamentosa do Prozac, e, como esse, já está começando a ser usada quando não há nenhuma indicação médica para isso.
O uso indiscriminado de ambos é uma seta apontada para a criação de uma sociedade de zumbis sorridentes - verdadeiros "bobos alegres" - como os descritos por Huxley e Orwell em, respectivamente, "O Admirável Mundo Novo" e "1984".
Já é mais do que tempo que profissionais sérios e competentes da área da saúde comecem uma cruzada para combater essa investida irresponsável contra saúde psicológica da população.

terça-feira, julho 03, 2007

AUTO-ESTIMA E A LITERATURA DE AUTO-AJUDA

No que diz respeito ao uso que a chamada Literatura de Auto-ajuda faz do conceito de auto-estima, gostaria de defender o seguinte ponto-de-vista:

O cerne da questão está em que a auto-estima proposta pelo que eu chamo de Pretending Psychology - a Psicologia do Faz-de-Conta - que domina esse nicho editorial, é uma auto-estima fake, procurada pelo que Freud, em "Sobre a Psicoterapia", chamava via di porre, enquanto a auto-estima que, indiscutivelmente, vale ser obtida, só pode sê-lo per via di levare . Meu comentário, feito em "A Nova Conversa" (Rio: Ediouro, 2004), sobre o filme Don Juan de Marco, versa sobre a matéria:

"TO SHRINK OR NOT TO SHRINK?

Recalcar, na verdade, é a maneira cientificamente mais garantida de se produzir um neurótico. Posto isso, nada mais razoável do que esperarmos haver consenso prático e teórico, entre profissionais de saúde mental (chamados por um de meus pacientes de "os psicocoisas"), sobre que o objetivo de qualquer tratamento da neurose seria dissolver recalques, satisfazendo Desejos de Palavra insatisfeitos e ampliando consciências estreitadas. Infelizmente, não é bem assim e a ausência de tal consenso foi magistralmente captada por uma película cinematográfica estrelada por Brando.

Don Juan de Marco

Quem acompanhou os diálogos dessa película apenas através de sua tradução legendada perdeu um essencial e saboroso detalhe, intimamente relacionado com a questão em torno da qual se desenvolve toda a trama. O Dr. Jack Mickler – personagem representada por Marlon Brando – é, no idioma original do filme, o inglês, ora chamado de psychiatrist, ora de shrink. Na tradução para o português, todavia, tanto psychiatrist quanto shrink são igualmente traduzidos por “psiquiatra”. A perda, na tradução para o português, da especificidade semântica de shrink – to shrink, em inglês, significa “encolher” – é inestimável. Com efeito, a partir dos anos sessenta, nos Estados Unidos, a gíria headshrinker, gradualmente simplificada para shrinker e, depois, para shrink, passou a ser usada para nomear os psiquiatras e, logo, por extensão, psicanalistas e psicoterapeutas em geral. Ora, headshrinkers – encolhedores de cabeça – é expressão classicamente aplicada aos silvícolas que, ao vencer seus inimigos, cortam-lhes as cabeças e diligentemente as encolhem, pondo-as em seguida a decorar a entrada de suas tendas. Se devidamente compreendida, a metáfora proposta por essa gíria é assustadora: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas etc. – os “psicocoisas”, segundo um meu paciente que, compreensivelmente, não conseguia distinguir uns de outros – seriam inimigos de seus pacientes e, ao derrotá-los, separando suas cabeças de seus corpos – legítima origem de seus desejos – encolhem-nas e as exibem em seus currículos como troféus do sucesso obtido contra eles.
Mas voltemo-nos sobre o enredo do filme. O Dr. Jack Mickler é chamado para resgatar um jovem de seus vinte anos que, dizendo-se Don Juan e desiludido com nossos tempos, ameaça jogar-se do alto de um prédio. Mickler é bem sucedido, mas às custas de se dizer caballero, um tal Don Octavio de Flores, e de convidar nosso Don Juan suicida para sua quinta, que, evidentemente, nada mais era do que um hospital para doentes mentais. Lá chegados, tenta medicar o rapaz, mas esse propõe um trato. Não quer ser medicado antes de contar sua história. Se, ao terminar de fazê-lo, Don Octavio – Mickler, naturalmente – entender que ele ainda precisa ser medicado, dá sua palavra de que tomará os remédios. Jack aceita o acordo, isso para o profundo desagrado do restante da equipe, que passa a pressioná-lo no sentido de medicar o paciente, queira esse ou não. Ou seja, a pressionar Jack para agir como um verdadeiro shrink, abortando o delírio de seu paciente, encolhendo sua cabeça de forma a colocá-la dentro dos limites do considerado “normal”.
Mas, como dizia a expressão latina, necandus necavit necaturum: “quem devia morrer matou quem devia matar”. O delírio de Don Juan é absolutamente encantador, fala de estórias em que os prazeres do amor e do sexo atingem supina expressão... E é Jack que, em vez de encolher a mente de seu paciente, começa a ter a sua “expandida”. Contaminado pelo delírio a que se dispôs a dar ouvidos, Jack começa a colorir o cinzento que, ao longo dos anos, tomara subrepticiamente posse de sua vida. Começa a recuperar o amante que tinha dentro de si. Para o agradável espanto de sua mulher, passa a levar-lhe flores, dar-lhe jóias e, à luz de velas, convidá-la para jantar...
Há um momento em que o dilema “restringir ou expandir a mente” é focado de maneira extremamente jocosa. Jack Mickler, embora hesitante, decide contestar frontalmente o delírio de seu paciente:

– E se eu lhe dissesse que eu não sou Dom Octavio de Flores, mas, sim, um psiquiatra, e que esta não é minha quinta, mas o hospital onde eu trabalho, o que você me diria?"
– Eu lhe diria que você tem uma visão extremamente estreita (palavra que provém do latim strictu, a mesma de que deriva a palavra stress) da realidade! – devolveu Don Juan.

Mas, quase que “em off”, Don Juan consola Jack. Diz-lhe saber perfeitamente que Jack é um psiquiatra e que estavam em um hospital, não numa quinta, mas que, sendo tudo isso transcendentalmente chato, quer continuar contando sua história, sem dúvida mais saborosa e digna de atenção. E Jack, aprofundando o desespero de seus pares, continua a escutá-lo, em vez de o medicar. E, enquanto o faz, segue recuperando a cor de sua vida. Necandus necavit necaturum! Tendo terminado o relato de sua história – tendo satisfeito seu Desejo de Palavra – Don Juan adquire as condições internas necessárias para descartar seu delírio e deixar vir à tona o que anteriormente eclipsara: toda sua idealização da mulher era uma tentativa de compensar a dolorosa realidade da vida de sua mãe. Analogamente ao que ocorreu com Rose, minha paciente das duas e dez, que recuperou sua razão quando eu lhe permiti, durante quarenta minutos, percorrer os meandros da fantasia de que eu a havia desrespeitado, a liberdade de discurso que Jack Mickler deu a Don Juan foi o necessário e o suficiente para que esse último, recuperando dados que havia recalcado, voltasse a fazer uso de sua razão. Após haver injetado em seu psiquiatra uma nova alegria de viver...

A trama de Don Juan de Marco deixa exposto um fato pungentemente real: ainda não há consenso, entre os “psicocoisas”, sobre se devem ser shrinkers ou expanders, sobre se devem encolher ou expandir a cabeça de seus pacientes..."

De meu ponto de via nietzschiano-psicanalítico de que "nada do que é pode ser subtraído, nada pode ser negado" ("Ecce Homo") e de que nosso discurso deve conter "uma afirmação sem reservas mesmo do sofrimento, mesmo da culpa, mesmo de tudo que é estranho e questionável na existência" (id.) e assentado sobre as mais recentes descobertas da Psiconeurologia, descritas em uma contribuição de Melinad Wenner para o LiveScience, e que transcrevo a seguir:
"
Melinda Wenner Special to LiveScience LiveScience.com Sat Jun 30, 1:35 PM ET
If you name your emotions, you can tame them, according to new research that suggests why meditation works. Brain scans show that putting negative emotions into words calms the brain's emotion center. That could explain meditation’s purported emotional benefits, because people who meditate often label their negative emotions in an effort to “let them go.” Psychologists have long believed that people who talk about their feelings have more control over them, but they don't know why it works.
UCLA psychologist Matthew Lieberman and his colleagues hooked 30 people up to functional magnetic resonance imaging (fMRI) machines, which scan the brain to reveal which parts are active and inactive at any given moment. They asked the subjects to look at pictures of male or female faces making emotional expressions. Below some of the photos was a choice of words describing the emotion—such as “angry” or “fearful”—or two possible names for the people in the pictures, one male name and one female name. When presented with these choices, the subjects were asked to pick the most appropriate
emotion or gender-appropriate name to fit the face they saw. When the participants chose labels for the negative emotions, activity in the right ventrolateral prefrontal cortex region—an area associated with thinking in words about emotional experiences—became more active, whereas activity in the amygdala, a brain region involved in emotional processing, was calmed.
By contrast, when the subjects picked appropriate names for the faces, the brain scans revealed none of these changes—indicating that only emotional labeling makes a difference. “In the same way you hit the brake when you’re driving when you see a yellow light, when you put feelings into words, you seem to be hitting the brakes on your emotional responses,” Lieberman said of his study, which is detailed in the current issue of Psychological Science. In a second experiment, 27 of the same subjects completed questionnaires to determine how “mindful” they are. Meditation and other “mindfulness” techniques are designed to help people pay more attention to their present emotions,
thoughts and sensations without reacting strongly to them. Meditators often acknowledge and name their negative emotions in order to “let them go.”
When the team compared brain scans from subjects who had more mindful dispositions to those from subjects who were less mindful, they found a stark difference—the mindful subjects experienced greater activation in the right ventrolateral prefrontral cortex and a greater calming effect in the amygdala after labeling their
emotions. “These findings may help explain the beneficial health effects of mindfulness meditation, and suggest, for the first time, an underlying reason why mindfulness meditation programs improve mood and health,” said David Creswell, a UCLA psychologist who led the second part of the study, which will be detailed in Psychosomatic Medicine.",


CONSIDERO A SHRINKING PSYCHOLOGY TÍPICA DO AMBIENTE CULTURAL AMERICANO UM GRAVÍSSIMO ATENTADO À SAÚDE PÚBLICA MUNDIAL E A PRINCÍPAL RESPONSÁVEL PELOS DEPLORÁVEIS EPISÓDIOS DE MASS MURDERING TÃO COMUNS NESSE AMBIENTE, JÁ SENDO HORA DE QUE OS EXPANDERS SE ALIEM NUMA CRUZADA PARA COMBATER A TAL DA "PSICOLOGIA DO PENSAMENTO POSITIVO".