sábado, dezembro 31, 2005

ABUSO SEXUAL INFANTIL (II)

A parte honrosas exceções, minha mensagem sobre “ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA” produziu uma enxurrada de comentários e imeils me acusando de estar propagando a pedofilia e o abuso sexual de crianças, havendo, inclusive, quem me ameaçasse denunciar ao Conselho Regional de Psicologia. Achei esse tipo de reação bastante instrutiva porque pôs às claras como é deficiente o nível de alfabetização em nosso país. Como, talvez, alguns desses semi-analfabetos tenham possibilidade de recuperação, vou repetir a essência do que eu disse de uma maneira mais palatável. Desculpem, “mais palatável” não vai dar para semi-analfabetos compreenderem: substituamos por “mais explicadinha”. Vamos lá. Primeiro: um elemento essencial para o sucesso de uma relação terapêutica profunda é a neutralidade do analista; Segundo: neutralidade, aqui, não significa “indiferença afetiva”, significa “capacidade de ouvir” qualquer tipo de fala proveniente do paciente: que quer matar a mãe, gosta de comer barata, de ter relações anais com porteiros e que adoraria se casar com o papa. Quem não é capaz de ter essa amplitude de escuta, não deveria ser psicanalista, deveria lavar roupa, ser alpinista, ornintólogo ou quejandos. Terceiro: se comer barata, casar com o papa etc. é um interdito moral, ético, cultural, jurídico são assuntos relevantes, mas não para justificar a SURDEZ de um terapeuta ou de outros profissionais que trabalham com seres humanos; Quarto: em quarenta anos de prática clínica, recebi vários pacientes que não conseguiram se livrar de seus sintomas em terapias anteriores porque quem os atendeu era SURDO para o fato de que esses pacientes, em sua infância, tinham TIDO PRAZER nos jogos sexuais que mantiveram com adultos; Quinto: quando encontraram um terapeuta suficientemente pouco preconceituoso e hipócrita para, com neutralidade, ouvi-los falar sobre esse prazer, desembaraçaram-se de seus sintomas. Sexto: o dito acima não implica fazer propaganda de pedofilia nem de que se abuse sexualmente de criancinhas. Fui mais palatável? Ou, em respeito aos semi-analfabetos, “mais explicadinho”?

terça-feira, dezembro 13, 2005

ABUSO SEXUAL NA INFÂNCIA

Há uma absurda quantidade de preconceitos e de hipocrisia na maneira com que a maior parte do “establishment” lida com a questão do chamado “abuso sexual na infância”. Tenho suficiente experiência clínica – atuando há cerca de quarenta anos não só como psicoterapeuta como enquanto supervisor de outros psicoterapeutas – para estar absolutamente convencido de que a maioria esmagadora dos que lidam com a matéria – familiares, juristas, psico-coisas (psiquiatras, psicólogos, psicoterapeutas,.psicanalistas et caterva), assistentes sociais etc. não são capazes de diferenciar os dois grandes sub-conjuntos de episódios que compõem o que se convencionou chamar de “abuso sexual na infância”. Tal experiência ensinou-me simplesmente o seguinte: se nos aproximamos do tema de maneira suficientemente isenta, descobriremos não só o tipo de abuso universalmente reconhecido – aquele em que a criança é a real vítima de uma arremetida sexual desagradável, desrespeitosa e violenta – como também o praticamente não reconhecido em que a abordagem sexual de um adulto em relação a uma criança foi, para essa última, agradável, respeitosa e gentil. Creio ser suficientemente neutro em minha avaliação dos fatos, para que várias pacientes me tenham relatado que foram, em sua infância, sexualmente abordadas por adultos e que, embora obrigadas pelas circunstâncias a manter segredo (o que é suficiente para produzir fixação e trauma, como exponho em meu livro “A Nova Conversa”), adoraram isso! Algumas dessas pacientes (e, por agora, estou deixando os meninos de lado), chegaram a me relatar que tinham aqueles momentos como um oásis de prazer e de carinho dentro de um contexto em que se sentiam de todo abandonadas. Pelo menos duas dessas pacientes relataram como, ao ser bolinadas – uma pelo tio, outra pelo pai – ficavam ansiando pela penetração do pênis em suas vaginas. Uma jamais externou esse desejo a seu “abusador”; a outra pediu explicitamente ao pai que a penetrasse, o que o deixou em pânico, parando de sexualmente abordá-la. Agora, reflitamos um pouco, aproveitando, para análise, a experiência da primeira. Descobriram que o tio a bolinava. O escândalo foi absoluto e o tio foi execrado, enquanto todos os familiares descreviam a menina como “coitada”, “coitada”, “coitada” (imagino que a maioria de meus leitores saibam que o termo “coitado” vem de “coito”)! Alguém acredita que, em tais circunstâncias, uma criança de 10 anos tivesse condições psicológicas para declarar: — “Pessoal, eu não sou nenhuma vítima! Eu estava gostando! Só fiquei chateada porque ele não teve coragem de enfiar o pau dele em mim!”? Um pouco difícil, não? Tal declaração, quando chega a acontecer, só pode ser feita, via de regra muitos anos depois, a um psicólogo que não seja preconceituoso nem hipócrita!

quinta-feira, dezembro 08, 2005

LOGANALISE E A CULTURA DO BEM-ESTAR

Impressiona-me como é pouco explorada, na literatura das chamadas Ciências Humanas a gritante relação entre: (a) o aparecimento da Psicanálise (b) a gradual mudança da natureza da cultura, marcante a partir do séc. XIX e (c) o contínuo aumento, nos últimos quinhentos mil anos, da expectativa de vida do gênero humano sobre este conturbado planeta. Então, vejamos:
A expectativa média de vida do Homo Erectus, o mais antigo representante de nosso gênero, era de cerca de quinze anos; seu descendente, o Homo Sapiens, podia, na Grécia Clássica, esperar viver vinte e cinco; na Europa do século XVIII, trinta e cinco; na do século XX, setenta. Levamos quinhentos mil anos para elevar a expectativa de vida de quinze para vinte e cinco anos; dois mil anos para alçá-la de vinte e cinco a trinta e cinco; duzentos, para promovê-la de trinta e cinco a setenta!
Se levamos em conta que esse aumento de nossa expectativa de vida foi obtida através de uma cultura,-- chamá-la-ei de cultura de sobrevivência — cuja tarefa maior foi proteger o organismo humano de suas causae mortis,-- sede, fome, calamidades naturais, doenças, etc. — mas que, mesmo protegido desses agentes letais, o corpo humano tem uma obsolescência natural, que ocorre após algo mais do que cem anos de vida, veremos que, entre todos os séculos, o século XIX — que, como unidade histórica merece ser visto estendendo-se da Revolução Francesa (1789) ao fim da Segunda Guerra Mundial (1945) —ocupa um lugar especial. É um verdadeiro divisor de águas, um turning point antropológico: século nenhum, antes ou depois dele, terá presenciado a expectativa de vida do ser humano dar salto maior na direção daquele ponto em que deixar de viver é um estágio natural da própria vida.
Esse estrondoso aumento da expectativa de vida ocorrido em torno à "charneira antropológica" representada pelo século XIX gerou uma profunda alteração na natureza da cultura: já sabemos, em boa medida, nos manter vivos até os limites permitidos por nossa própria natureza... Mas, em nos mantendo vivos, sabemos viver bem?
Para que isso ocorra, ao lado da tecnologia de uma cultura de sobrevivência, cumpre, inexoravelmente, que se desenvolva a tecnologia de uma cultura de bem-estar.
Parece-me, por vezes, que poucos se dão conta de que a Psicanálise,-- significativamente surgida no turning point do século XIX — representa a primeira grande tentativa de se produzir uma tal tecnologia e de como essa tentativa, representante de um novo tipo de cultura, abastardou-se nos entrechoques com o tipo de cultura que a precedeu.
O grande abastardamento ocorreu, coerentemente, sobre a maior contribuição de seu fundador, Sigmund Freud, para a construção dessa nova cultura, uma cultura que, garantida a sobrevivência, começa a ocupar-se do prazer.
Essa contribuição maior pode ser resumida em uma única frase — "Repressão causa neurose" —- e, se desejamos de fato construir essa nova cultura, é essencial que entendamos não só porque essa contribuição é "maior", mas também, como foi abastardada.
No que diz respeito à doença mental, "psicose" é a preocupação básica de uma cultura de sobrevivência; "neurose", a de uma cultura de bem-estar. Isto porque a psicose, muito mais do que a neurose, atinge o sujeito de uma forma que põe em risco sua vida e a dos demais. A neurose, muito mais facilmente do que aquela, pode ser compatível com a manutenção da vida, embora, claramente, interfira sobre o usufruto de seu prazer. Conseqüentemente, a psiquiatria do séc. XVIII ocupava-se, centralmente, da psicose, ameaça à sobrevivência, enquanto Freud, em pleno século XIX, desloca a atenção da psiquiatria para a neurose, ameaça ao prazer, revelando-se como representante da nova ordem cultural.
Focada a neurose, grande problema para uma cultura de bem-estar, o criador da Psicanálise identifica a sua causa: a repressão. E aqui vem o abastardamento, iniciado pelo próprio Freud (que, na verdade, era um produto híbrido dos dois tipos de cultura em pauta) e completado ao longo dos cem anos de história da Psicanálise.
O abastardamento — que tem impedido, até hoje, que a Psicanálise cumpra sua função de dar solidez a essa nova cultura — se fez em torno de substituir-se o conceito de repressão como recalque pelo conceito de repressão como contenção. Explico-me:
Recalque é um mecanismo psicológico que impede que um determinado sujeito dê às suas experiências internas — sensações, emoções, desejos, etc. — acesso à expressão verbal. Recalcar um sujeito, portanto, é impedir que ele represente verbalmente suas reações internas, por exemplo, a uma limitação de sua ação.
Contenção é o impedimento a que um sujeito execute uma ação não verbal.
Ora, a afirmação legitimamente psicanalítica é a de que recalque — seja, impedir que um sujeito expresse verbalmente seus estados psicológicos — gera neurose. Na medida em que — mormente através do contato com a mentalidade essencialmente behaviorista dos Estados Unidos — passou-se a entender repressão como sinônimo de contenção — seja, bloqueio de uma ação não verbal — conseguiu-se neutralizar toda a utilidade da fórmula psicanalítica original e, de passagem, destruir-se a imagem da Psicanálise, sufocando-se na origem seu imenso potencial como um poderoso instrumento de política sanitária.
Sustentada popularmente por uma pseudo-Psicanálise, a absurda proposta de que não contenhamos uns aos outros para evitarmos a criação de neuróticos, não só é imprópria para que se evite a geração de neuróticos: ela é maquiavelicamente eficaz na produção de uma multidão infindável de toxicômanos e psicopatas.
Algumas tribos primitivas, em tempos de paz, sem outras ameaças e em vista da simplicidade de sua organização econômica e social, vivem como iguais, sem qualquer hierarquia; mas, em tempos de guerra ou de outras calamidades, elegem um chefe — o chefe-da-guerra — a que todos os demais devem obediência e submissão. Com efeito, a cultura de sobrevivência, própria às condições em que existe grande ameaça à vida, tende a estruturar-se como uma sociedade de chefes absolutos que comandam uma massa de súditos uniformizada e sem grande direito à auto-expressão (= sub-ditos); a cultura de bem-estar, própria às situações de menor perigo, tende a estruturar-se como democracia, em que indivíduos bastante diferenciados são senhores de seu próprio discurso, embora aceitando limites cabíveis para sua liberdade de ação.
O sucesso da cultura de sobrevivência em, após quinhentos mil anos de lutas, quintuplicar a expectativa de vida do organismo humano sobre este planeta, levando-a ao limite do que seria sua obsolescência natural, permitiu, caracterizadamente durante o século XIX, o brotar de uma nova cultura, a cultura do bem-estar, sendo a Psicanálise o primeiro instrumento científico adequado para a implementação e suporte dessa nova cultura.
Entretanto, para que ela possa cumprir o seu papel, é necessário que a entendamos como uma Loganálise, uma libertação do discurso — da voz e do voto, como na melhor contribuição do século XIX para as instituições políticas — e não como uma proposta behaviorista, que vê como instrumento de saúde uma liberdade de ação que só pode caracterizar a lamentável anarquia de uma sociedade sem leis.
Esta Psicanálise essencialmente loganalítica é a única capaz de dar fundamento a uma nova filosofia para literatura de auto-ajuda, até agora absolutamente monopolizada por variações que se pretendem modernas da velhíssima “psicologia do pensamento positivo”, perfeita para os parâmetros de uma cultura de sobrevivência, mas absolutamente inadequada para os da cultura de bem-estar cujos caminhos, felizmente, já começamos a percorrer.

terça-feira, novembro 22, 2005

PESSOA E A PSICANÁLISE

Pessoa - o Fernando, claro! - parecia saber o que ocorre em um tratamento psicanalítico muito melhor do que muita gente boa. Olha como ele, certamente sem estar pensando nisso, é capaz de magistralmente descrever aquele processo:

"A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vim a ser quem ora sou;
E hoje, quando vejo que o que sou é nada,
Volto a buscá-la ali onde ficou."

quarta-feira, novembro 16, 2005

ENTREVISTA COM JORNALISTA FÁBIO BASÍLIO

Fabio Basilio - O Sr. com este título faz os casais pressuporem casar e separar [o título em questão é "Quando um casal se separa: como lidar com isso?", palestra a ser proferida aos 26/11/05, na sede da Sociedade Brasileira de Loganálise]?

Luís César - Vou explicitar melhor qual é o foco da palestra em questão. Primeiro, pretendo abordar essencialmente “parcerias de tipo amoroso”, não, por exemplo, de nível comercial, esportivo, político etc., onde, também existem “parcerias”; segundo, no que diz respeito às parcerias amorosas, não quero restringir essa abordagem ao casamento oficial e heterossexual. Namoros, noivados, casamentos, relações homossexuais ou heterossexuais, a dois ou a três, todas essas parcerias estão sujeitas a separações – veladas ou explícitas, parciais ou radicais – e, em todas essas “parcerias amorosas”, qualquer de separação produz, por si só, algum sofrimento, que, submetido a um mal manejo, se torna DESNECESSARIAMENTE maior.

Fabio Basilio - O que mais se vê hoje em dia? Mais pessoas casando ou separando?

Luís César - Imagino que minha resposta anterior tenha deixado claro que, ao abordar SEPARAÇÃO DE CASAIS, não me estou referindo apenas a casamento, mas, sim, a “acasalamento”, onde, naturalmente, se inclui esse último. Sob esse ponto de vista, o mais relevante é o fato de que, o mais das vezes, o ser humano que se “desacasala”, de uma forma ou de outra, se acasala outra vez, talvez dentro de um “formato” que lhe serve mais. Mas é óbvio que, principalmente a partir da segunda metade do século XX, esses ciclos de “acasalamento-desacasalamento” se tornaram muito mais freqüentes.

Fabio Basilio - Sr. Luis qual (ou quais) os fatores para um casamento sólido?

Luís César: O conceito de “sólido” é bem ambíguo. Vou entender como sinônimo de “duradouro”, mas, se o adjetivo “sólido” é ambíguo, o de “duradouro”, aplicado ao casamento, abarca possibilidades demais: com efeito, é evidente que, numa cultura como a islâmica, a duração de um casamento se estriba em fatores bem diversos daqueles em que se funda a duração de um casamento numa cultura de tipo anglo-saxão. É necessário, portanto, que se explicite a que “tipo de duração” nos estamos referindo para responder de maneira adequada a essa pergunta. De qualquer forma, se voltamos à idéia geral de “acasalamento” e se entendemos essa duração como sendo satisfatória PARA AMBOS, o que dizem as estatísticas –. e minha experiência clínica concorda com elas – é que dependem essencialmente de dois fatores: primeiro, atração romântico-sexual e, segundo, capacidade de comunicação.

Fabio Basilio - Pelo título e conteúdo, o seu livro sugere que os casais estão com um discurso desgastado ou muito velho. É necessário um novo diálogo entre os dois?

Luís César: Aqui a resposta é um enfático “sim”. Os instrumentos devem adequar-se aos propósitos da tarefa. O que eu entendo como “acasamento satisfatório” implica uma ligação entre pessoas com direitos iguais, inclusive o de serem diferentes. Somente a partir do século XIX – e mesmo assim apenas no Ocidente – se começou a construir uma conversa compatível com esse tipo de ligação, mas essa construção ainda está em curso e meu livro pretende ser uma contribuição para a aceleração desse processo.

Fabio Basilio - A mulher hoje nos Estados Unidos ocupa mais os postos de trabalho que os homens. Aqui no Brasil, muitas estão indo à luta. O Sr. entende que a independência financeira da mulher impede a "nova conversa"?

Luís César: Não impede, pelo contrário, exige.

Fabio Basilio - O machismo seria um dos entraves para um melhor diálogo entre casais?

Luís César: Existem a macro e a micropolítica. O “machismo”, na micropolítca, é o equivalente do que, na macro, são as ditaduras. E ditador “dita”, não dialoga; tem “súditos” ( = “sub-ditos”), não tem “inter-locutores”.

Fabio Basilio - O Sr. afirmaria que separar-se não causa trauma psicológico nos filhos? Se causam, como minorá-los?

Luís César: O que afirmo cansativa e repetidamente em meu livro é que “frustrações” são parte essencial e inevitável de uma vida sã, “traumas”, não. E saber empregar a Nova Conversa é a maneira de impedir que um processo de separação, em vez de frustrante, se torne traumático.

quarta-feira, outubro 19, 2005

KIT SEPARAÇÃO

Seguem pontos que me parece fundamental serem considerados quando um casal encara o problema da separação. Cada um desses pontos abordados abre espaço para uma quantidade infinita de questionamentos e, mesmo quando se têm esses questionamentos razoavelmente respondidos, é freqüentemente necessária alguma orientação profissional para que se possam aplicar adequadamente as respostas encontradas.

PRIMEIRO PONTO - A separação em si mesma não é desejável nem indesejável. Há separações que ocorrem e que melhor seria não houvessem ocorrido e outras que não ocorrem e seriam melhor que ocorressem. No primeiro caso, pessoas que se amavam, tinham filhos, interesses sociais e culturais comuns, bom entendimento sexual etc., enfim, que tinham todas as condições para levar uma vida feliz, não tiveram COMPETÊNCIA PARA SE MANTER JUNTOS; no segundo, pessoas que, por exemplo, casaram sob pressão, não se amam, não têm filhos, têm mal entrosamento sexual, interesses sociais e culturais opostos etc. , enfim, que têm todas as condições para levar - e levam - uma vida miserável, não têm a necessária COMPETÊNCIA - alguns diriam "e coragem!", mas parte da falta de coragem vem da falta de competência - PARA SE SEPARAR.

SEGUNDO PONTO - É necessário sofisticar o entendimento do que seja separação. Um casal sentado em um restaurante, almoçando, no domingo, e que passa todo o tempo sem trocar palavra um com o outro APRESENTA SIGNIFICATIVO NÍVEL DE SEPARAÇÃO, embora não esteja oficialmente separado. Da mesma forma que fazer um diagnóstico precoce do câncer é uma das melhores garantias para que se o possa curar, identificar e lidar com a separação em seus estágios "pré-terminais" é uma das condições para que se possa manejá-la adequadamente. Pode evitar, por exemplo, que inadvertidamente se tenha um filho (ou mais um) e se introduza mais uma "vítima" em um proceso inescapavelmente doloroso, quando já há fortes indícios de que, mais adiante, o provável desenlace para o relacionamento do casal será a separação.

TERCEIRO PONTO - É fundamental, que cada um dos envolvidos empregue todos seus esforços - não sei se é possível fazer isso sem algum tipo de apoio profissional - para manter clareza relativamente a quem ele é e quem os outros são. Para isso, vai ter que enfrentar dois obstáculos. O primeiro, interno, é que, em situação de crise, nossa mente é ocupada por pensamentos de todo contraditórios: "nunca mais quero ver a cara desse(a) vagabundo(a)!", "meu deus, eu não posso viver sem ele(a)!", "sabe de uma coisa? Já não me importa mais se a gente separa, se não separa ou com o que quer possa acontecer!"; o segundo, externo, é o de que, todos - o pai dele, o pai dela, a mãe dele, a mãe dela, os filhos, os demais parentes, os amigos, os colegas de trabalho, os vizinhos, o porteiro, o dono do açougue etc. - vão fatalmente querer "enfiar a pata" na sua separação (se não tomar cuidado, até o psicólogo vai achar que pode decidir por você). Como lidar com isso? Primeiro, já basta a quantidade de pessoas que vai querer se intrometer em sua vida. Portanto, não cabe se "oferecer de bandeja": é mais do que razoável que, numa situação de crise, fiquemos interessados em tirar proveito da experiência de outras pessoas para entrar em contato com repertórios de comportamento que não conhecíamos ou sobre os quais não havíamos pensado e que podem ser-nos instrumentais para enfrentá-la, mas perguntar a seu vizinho "como é que o senhor agiria em uma situação destas?" é de todo diverso de perguntar a ele "o que o senhor acha que eu devo fazer?"; esse último tipo de colocação é um convite para que seu vizinho meta, de fato, "a pata em sua vida", enquanto a primeira permite, caso seu solícito interlocutor se disponha a fazer isso, que você possa, sem perder a coerência, responder: "Desculpe, eu não lhe pedi para me dizer o que eu DEVO FAZER, eu lhe perguntei o que O SENHOR FARIA em circunstâncias semelhantes; decidir, decido eu." Como dizia o Nerso da Capitinga: "Eu é eu, o sinhorrr é o sinhorrr!". Além disso, para, numa situação de crise, a pessoa poder manter real contato com a própria individualidade, ela tem que "operar em micro". Explico-me: numa situação em que, a todo momento, somos tomados por pensamentos contraditórios, É FUNDAMENTAL QUE NÃO NOS AÇODEMOS A TIRAR CONCLUSÕES GERAIS E DEFINITIVAS. É necessário ser capaz de digerir a crise "em pequenos bocados"; ser capaz de dizer "agora, estou com raiva", "agora, estou triste", "agora, estou aliviada" etc. etc. etc.. Para quem não está treinado, isso não é muito simples e, por vezes, requer a ajuda profissional. De qualquer forma, este tópico nos leva naturalmente ao seguinte.

QUARTO PONTO - A proposta da Igreja Católica de que a pessoa peca por "pensamentos, palavras e obras", seja qual for seu cabimento teológico, certamente é uma catástrofe psico-higiênica. Durante uma crise, é fundamental que a pessoa seja capaz de ENUNCIAR VERBALMENTE - nem que seja apenas para si mesma - todos os pensamentos e sentimentos que lhe vierem à cabeça: "queria matar aquele(a) desgraçado(a)!", "na verdade, agora, eu queria estar era nos braços dele(a)" etc.. É fundamental o princípio de que qualquer sentimento - inveja, pena, culpa, raiva, medo, ternura, ciúme, orgulho, humilhação, desprezo, saudade, etc. - tem o INCONDICIONAL DIREITO DE SER VIVENCIADO. Como dizia o não tão brilhante, mas incomparavelmente saudável Bambam, do BIG BROTHER, para se viver bem esta vida, temos que reconhecer que tudo "faich parrrtchi!" Isso é fundamental, entre outras coisas, para que a situação de separação, já em si frustrante, não se torne traumática, o que levaria a pessoa à paralisação ou desorganização de seu comportamento. Pensar e sentir, naturalmente, é diferente de fazer. Pessoas que, SE PENSAM E SENTEM, FAZEM, são pessoas que têm um nível de descontrole que requer auxílio profissional e devem seguir este conselho.

QUINTO PONTO - Já parcialmente orientados por nossos dois grandes filósofos tupiniquins, o Nerso da Capitinga - com seu "Eu é eu, o sinhorrr é o sinhorr!" - e o Bambam - com seu "Faich parrrtchi!" - podemos completar nosso KIT SEPARAÇÃO com a contribuição de um terceiro, e filósofo não menor, a saber, José Abelardo Barbosa, o Chacrinha, que nos legou seu "Quem não se comunica, se trumbica!". Não é difícil imaginar a quantidade de vezes em que ouvi pacientes dizerem estar pensando em se separar do companheiro ou companheira. Todas as vezes que conseguir levá-los a compartilhar esses pensamentos - mesmo ANTES QUE houvessem decidido, de fato, concretizá-los - com seus respectivos companheiros, o desenlace do processo - fosse ou não a separação - foi menos traumático para todas as partes envolvidas. É verdade que A FORMA EMPREGADA para fazer essa comunicação é fundamental para que ela seja bem sucedida, mas detalhar isso ultrapassa as possibilidades de um post. Remeto os interessados nesse detalhamento à leitura de meu livro A Nova Conversa (Ediouro, 2004).

sexta-feira, outubro 07, 2005

ASTROLOGIA, LIVRE ARBÍTRIO E PSICANÁLISE

Luís César de Miranda Ebraico

Parte I

Psicanalistas e astrólogos têm em comum pelo menos uma experiência: a constatação do sem-número de vezes em que a divulgação do conhecimento que suas ciências acumularam desperta nos que a essa divulgação são expostos reações irracionais.

Quero sustentar aqui que a semelhança dessas reações aponta para o fato de que ambos, psicanalistas e astrólogos, estão lidando com o que considero a matéria mais explosiva com que se pode defrontar o psiquismo humano, seja, o problema da liberdade. Para o ser humano, o problema da liberdade não é UM problema, é O problema, porque nele está embutida, simplesmente, a ocorrência nuclear e hamletiana de SER ou NÃO SER. Defrontar o ser humano com o fato de que, aqui, ou ali, ou acolá, ele não é livre não repercute nele como uma mera descrição de estado; repercute, sim, como intrusiva acusação. Paradoxalmente, um ser humano não nasce um ser humano. Nasce meramente com a possibilidade de tornar-se ou não tornar-se tal. SER ou NÃO SER, é e será sempre, para ele, a essencial questão.

Se nasce um tigre, parecerá deslocado indagar: atingirá ele a sua "tigridade"? Tigre é tigre, nasce tigre e, enquanto biologicamente vivo, não pode ser acusado de NÃO SER. O ser humano pode. Pode ser acusado de, biologicamente vivo, estar psicologicamente morto. Pode ser acusado de, embora SENDO, NÃO SER. A morte, afinal, vinga, soberana, como o único e derradeiro critério para diferenciarmos a sanidade da doença: a doença física é qualquer estado que aponte para a morte biológica; a doença mental é qualquer estado que aponte para a morte psicológica. E a morte psicológica, para um ser humano, equivale à eliminação do seu arbítrio.

Assim, dizer a um ser humano - aqui, ali, ou acolá, você não está sendo livre! - equivale, a despeito de todo cuidado que possamos ter tido de limitar essa restrição de liberdade a este ou àquele setor, a dizer: "ali, você NÃO É!"; a dizer: "você, que nasceu com a possibilidade de tornar-se um ser humano, ali, você não se tornou um!"; a dizer: "ali, biologicamente vivo, está psicologicamente morto!". Defrontar um ser potencialmente humano com sua falta de liberdade é defrontá-lo com o fracasso de sua missão de tornar-se o que poderia ser, é defrontá-lo com sua NÃO EXISTÊNCIA, com o NÃO SER, com a sua morte.

Psicanalistas e astrólogos fazem isso. Psicanalistas e astrólogos, não quantas vezes armados de uma profissionalmente característica maldade esfregam no nariz de seus consulentes a temida frase: "você NÃO É!"; a temida frase: "você ESTÁ MORTO!". Vivo, supremo, reina (segundo a especialidade), ou, nas profundezas dos céus, o ASTRO; ou, nas do mente, o INCONSCIENTE. Mandando em você, eterno títere dos planetas e dos complexos, incapaz de "cavalgar a sua estrela" e de "controlar sua neurose"... - "Não!" - brada você, antes que possamos terminar. -"Nada de tudo isso é verdade!"

Somos nós, psicanalistas e astrólogos, que estamos mortos. São as nossas ciências que tão têm fundamento, que são conjuntos de desvarios maldosamente organizados para destruir você. O inconsciente não tem força e é inconseqüente, pelo menos no que diz respeito a você, o rolar dos astros pelo céu. Você nos nega. Não estaria certo? Ou pelo menos, vingativamente certo? Nós declaramos a sua morte, você declara a nossa; nós declaramos o seu fracasso na missão de tornar-se humano, você declara, em contrapartida, o fracasso de nossas ciências em suas pretensões de verdade.

Mas há outra possibilidade. Essa, me parece ainda mais perniciosa: você cede. Você, rotulado, reduzido, descrito, previsto, explicado, você cede. Nós ganhamos. Você perdeu. Sabe o que acontece, então? Você se vinga também, mas de outra forma. Você não nos mata. Você não diz que nossos conhecimentos são um amontoado de infundados desvarios que só nossa infantil credulidade pode sustentar. Não. Pelo contrário. Você diz que nós estamos tão certos, tão certos, que os conhecimentos em que apoiamos nossos diagnósticos são tão sólidos, tão sólidos... que você não pode fazer nada! Você, guiado por nossas mãos, transformado em um porco existencial, se espoja na lama do destino. Defrontado com seus limites, você se transforma neles. Você não mais teve sua carta natal levantada: você É sua carta natal! Você não mais tem uma fobia: você É um fóbico! De negados, passamos a ser diabolicamente úteis. Você, que infernizava a vida de sua mulher e sentia-se um pouco mal com isso, encontrou, por meio de nós, a paz de uma "cobertura ideológica": seu astrólogo lhe revelou que seu Marte tem uma quadratura exata ("e-x-a-t-a!", enfatiza você em conversas) com a Lua dela e, além disso, seu psicanalista lhe fez lembrar que você não foi amamentado e que, inconscientemente, confunde sua mulher com sua mãe. Nós, o psicanalista e o astrólogo, fornecemos as desculpas para que você infernize sua mulher em paz através dos tempos... Ah, ia terminando, mas lembrei-me em tempo: se pusermos um tempero de reincarnacionismo em tudo isso, você pode optar pela vantagem adicional de dizer que, ao ser infernizada, sua mulher está recebendo a devida paga pelos incontáveis males que, em outra vida, lhe causou...

Nós quisemos, não foi? Conscientes ou não disso, nós, psicanalistas e astrólogos fizemos o que de mais detestável se pode fazer a um ser humano: defrontá-lo com os seus limites. E recebemos de volta - se não sempre, pelo menos costumeiramente - alguma variação de um dos dois grandes tipos seguintes de resposta:

Primeiro. Defrontado com um de seus limites, o sujeito NEGA QUE TAL LIMITE EXISTA. É, na minha experiência, a reação mais comum. A ela me referia, quando, no início deste ensaio, mencionei as reações irracionais provocadas pela divulgação de conhecimentos psicanalíticos e astrológicos. Como o limite foi diagnosticado pelo psicanalista e/ou pelo astrólogo, a partir daqueles conhecimentos, decorre facilmente que a negação do limite carreie consigo a negação do psicanalista, do astrólogo, da Psicanálise, da Astrologia e, aqui entre nós, do que mais diabos necessários for. Considero relevante, para a compreensão do processo, esse reconhecimento de que a negação da validade a essas duas ciências e a seus profissionais é uma negação SECUNDÁRIA, decorrente de uma outra - essa, sim, PRIMÁRIA - que é a negação, por parte do sujeito, do limite com que foi defrontado. O fundamento de suas objeções é a tentativa de evitar a ferida narcísica provocada pela percepção desse limite. Esse fundamento, contudo, não pode ser exposto: fazê-lo implicaria ter contato com a ferida narcísica que se quer evitar, tornando sem utilidade tais objeções. Ferido em seu narcisismo, impossibilitado de trazer á tona, em sua argumentação, o verdadeiro motivo que tem para estar argumentando, o sujeito se sente ameaçado, inseguro e a argumentação em causa adquire o caráter emocional e frouxo que tão bem conhecem os profissionais dessas duas áreas.

Segundo. Defrontado com um limite seu, o sujeito IDENTIFICA-SE COM ELE. Como se pode ver, enquanto o primeiro tipo de reação com a confrontação com o limite implica a negação daquele limite, este segundo tipo implica a NEGAÇÃO DO SUJEITO, que se declara assumidamente tragado pelo limite. Em minha experiência, esta reação é menos comum do que a primeira, se bem que, como a primeira reação tende a afastar o sujeito do profissional em questão, psicanalistas e astrólogos se podem mais facilmente ver cercados de clientes que se entregam à "fatalidade" da Astrologia ou da Psicanálise.

Nas duas reações mencionadas, há algo em comum, algo que poderíamos chamar de "negação da tarefa". Como assim? Explico-me. Na equação "sujeito + seus limites", está implicada uma tarefa - anteriormente cheguei a falar mesmo em "missão" - qual seja, a de transposição desses limites. Eliminando-se qualquer um dos elementos dessa equação, cessa a tensão que tal tarefa provoca. O primeiro grupo nega a tarefa negando os limites; o segundo nega-a negando o que é essencial no conceito de sujeito psicológico, ou seja: sua intenção ativa de transpor esses limites.

Sei, naturalmente, que mais de um conceito de saúde e doença mentais competem no mercado internacional da Psicologia. Sou, na verdade, especialista nisso. Dediquei pelo menos uma aprofundada consideração sobre o tema em tese de Mestrado, defendida, na PUC-RJ, em 1976. Hoje, passados trinta anos de continuadas reflexões sobre a matéria, defendo desabridamente a posição de que saúde mental e liberdade de arbítrio são simplesmente uma e mesma coisa; a posição de que toda a deficiência de arbítrio implica simultânea e proporcional deficiência de saúde psicológica; a de que toda a deficiência de saúde psicológica implica proporcional e simultânea deficiência de arbítrio; e a de que todo o aprofundamento do aparato conceitual básico da nosologia psiquiátrica virá a assentar-se sobre um aprofundamento do conceito de arbítrio, em grande parte à espera de ser feito.
Mas voltemos à problemática do sujeito, de sua tarefa e de seus limites, aparelhados, agora, com a identidade entre saúde mental e liberdade de arbítrio. Nessa volta, meto-me a acrescentar um novo elemento à identidade proposta, deixando-a assim:

Saúde mental = liberdade de arbítrio = existência de sujeito

Ora, se, como sustento, a existência de um sujeito implica existência (a) dos seus limites e (b) da intenção de transpô-los, tanto a negação desses limites (reação 1, descrita acima), quanto a aceitação passiva daqueles (reação 2), acarretam a morte (relativa que seja), do sujeito e, com ela, a doença psíquica e a inexistência de arbítrio.

Em seminário, realizado pelo Grupo Mandala, no Rio de Janeiro, sobre o tema "Astrologia: destino ou livre arbítrio?", pude constatar, entre o público, a presença da mesma esperança e do mesmo medo que vejo existir entre os que acorrem a um psicanalista.

O medo: - "Temo que você, como um especialista em doenças terminais, não tenha nenhuma terapêutica, apenas um diagnóstico: o da minha morte como sujeito e da inexistência do meu arbítrio, o da minha doença mental."
A esperança: - "Espero que você, não apenas diagnostique um mal para o qual não há cura, espero que haja um remédio, que você o tenha e que me possa dar."

Nós temos?
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Parte II

Profissionalmente, trabalho com a Psicanálise faz quase 40 anos; estudo Astrologia, amadoristicamente, há cerca de 25. Temporariamente, deixo de lado o que me ensinou aquela; vejamos o que com essa última aprendi. Da Astrologia, como psicanalista, aprendi os limites da minha potência. Tomemos uma natividade, por exemplo, em que o fator egoísmo seja extremamente carregado. Se entendermos, como entendo, saúde mental como sinônimo de liberdade de arbítrio, a liberdade, no caso, limita-se à possibilidade de se fazer um trabalho - sobre cuja natureza logo brevemente falarei - sobre esse comportamento egoísta hipertrofiado, de modo que o sujeito não seja tragado por esse aspecto de seu mapa, sendo "cavalgado" por ele. Não existe, contudo, a possibilidade de se alterar essa natividade, no sentido de querer-se que o tema egoísmo NÃO SEJA um ponto da problemática DAQUELE SUJEITO. Essa possibilidade não existe. E isso me ensinou a Astrologia.

Pensemos, agora, em um trânsito. Suponhamos que uma conjunção nativa de Lua e Netuno, na casa I, vá receber, durante meses, a quadratura de um Saturno em trânsito. Perdoem-me alguns astrólogos menos deterministas (e, lamentavelmente, não é possível discutir isso aqui, mas a problemática do destino e do livre arbítrio não tem nada a ver com a problemática do determinismo; cf. post sobre essa problemática que logo entrará neste site), mas, hoje em dia, não vejo escapatória para o fato de que o dono de tal natividade vai ficar deprimido. Não creio haver psicanalista capaz de alterar tal fato. Qual o seu papel, então? Permitir ¿ e, mais uma vez aqui, nos defrontamos com a questão do arbítrio - que essa depressão não "cavalgue" o sujeito, mas que ele se assenhore dela, canalizando-a para os caminhos - por exemplo, a produção de uma obra de arte capaz de expressar tristeza - que ele mesmo escolher. Em outras palavras e mais uma vez: não está em seu arbítrio ELIMINAR o fator depressivo, mas apenas gerenciá-lo, para o quê, isso sim, terá uma contribuição a dar o seu psicanalista.

Sobre essa minha afirmação - mais ousadas ainda em virtude de minha relativa desqualificação enquanto astrólogo - quanto a inevitabilidade da vivência depressiva a ser trabalhada, posso imaginar desde já a reação desconfortável de uma boa quantidade de astrólogos (isso grandemente em virtude da citada e indevida confusão entre a problemática do destino e a do determinismo). Frente a essa possível reação desfavorável, eu gostaria - em deixando, não obstante, a discussão em aberto - de colocar um aspecto em torno do qual se poderia desenvolver uma fértil colaboração entre astrólogos e profissionais da área "psi", qual seja:
A avaliação, ou não, da correção de uma previsão astrológica, para poder ser solidez científica, depende grandemente do grau de sofisticação conceitual com que se trabalha. Explico-me. Tomemos a depressão: ela não aponta para um único sintoma - unidade última de análise diagnóstica - mas para uma síndrome, ou seja, um conjunto de sintomas que simultaneamente ocorrem. A observação leiga, via de regra, identifica depressão com tristeza. Essa é uma visão por demais grosseira para ser usada na confirmação - ou não - de hipóteses astrológicas. A síndrome da depressão inclui sintomas de áreas não afetivas, como, por exemplo:

Da área intelectual: bradipsiquismo (lentificação do pensamento);
Da área volitiva: hipobulia (diminuição do desejo de agir);
Da área somática: sintomas físicos como, por exemplo, uma gripe;
Da área motora: bradicinesia (lentificação dos movimentos).

Não cito todas as áreas, mas imagino que o que foi dito é suficiente para deixar claro que uma gripe pode ser indicadora de um estado larvar de depressão e que, portanto, um observador pouco informado pode concluir que uma previsão astrológica de depressão não se cumpriu simplesmente porque o nativo em questão não ficou triste, enquanto um observador mais sofisticado poderia verificar a correção do previsto ao incluir em sua avaliação sintomas menos "populares" de depressão como uma gripe (e considere-se que deixei de mencionar mecanismos psicológicos de defesa que podem, por exemplo, transformar um estado de depressão em um estado manifesto de euforia artificial e gratuita).

Falei em natividade e em trânsitos. Falemos algo sobre sinastria, ainda do ponto de vista da experiência de um psicanalista. É sabido que a conjunção do planeta Marte de um sujeito com o planeta Vênus de um outro, de sexo oposto, produz atração sexual. Pois bem, tenho uma experiência concreta de consultório a respeito. Minha Vênus está a 25 graus de Áries. Há alguns anos atrás, sentou-se em meu consultório, para uma entrevista inicial, uma paciente cujas características físicas não se enquadravam dentro daquelas que, normalmente, me estimulam sexualmente. Para meu espanto, porém, a paciente produziu-me, de imediato, forte atração. Só pude recorrer a uma hipótese astrológica: supus que a paciente tinha Marte no mesmo grau em que estava a minha Vênus. Tinha: seu Marte estava a 25 graus de Áries. Por que não sua Vênus no mesmo grau de meu Marte ou etc., etc. não é o que importa discutir aqui. Quero apenas considerar a contribuição de um fato do tipo do que concretamente ocorreu para a prática de um psicanalista.

Essa contribuição é dupla: primeiro, não ficar atribuindo a transferências de fixações (do analista ou de seu paciente) à infância um fato astrologicamente condicionado; segundo, quando, por exemplo, pela sinastria estiver indicado um sentimento (ou qualquer outro tipo de reação psicológica) de que ele, psicanalista, não tem consciência, desconfiar de um "ponto cego" na relação.
Em outras palavras, para solucionar o problema que supõe a tríade Psicanálise, Astrologia e Livre Arbítrio, proponho a frase de um meu paciente: - "Cara, a gente pensa que manda no nosso destino... A gente não MANDA no nosso destino, a gente SURFA no nosso destino!"

Essa frase condensa de maneira particularmente brilhante a solução mais lúcida que conheço sobre as relações entre destino e livre arbítrio: eu não posso determinar a qualidade do mar, mas posso, infinitamente, melhorar a qualidade de meu percurso sobre ele. Nesse sentido, vejo que a Astrologia está para a Psicanálise, como a Meteorologia está para a Navegação: aquelas nos apontam a qualidade do mar com que nos teremos que defrontar; essas nos oferecem instrumentos para que o naveguemos melhor.
Tentarei, no que segue, dar uma pequena idéia do que há de essencial no instrumento psicanalítico que nos permite navegar melhor no mar astrológico de nossa existência, esperando que essa pequena idéia possa congregar em torno dela algum trabalho conjunto de psicanalistas e astrólogos.

A grande descoberta da Psicanálise pode ser resumida em uma só frase, qual seja: A RESTRIÇÃO DO DISCURSO DE UM SUJEITO PROVOCA FENÔMENOS DE REPETIÇÃO, QUE SÃO O NÚCLEO DE SEUS SINTOMAS. Daí, deriva a seguinte frase, cerne da terapêutica psicanalítica: A AMPLIAÇÃO DO DISCURSO DO SUJEITO LIBERTA-O DOS FENÔMENOS DE REPETIÇÃO E, PORTANTO, DE SEUS SINTOMAS.

A expansão do discurso liberta o ser humano de suas fixações, amplia sua liberdade de escolha (não, como já vimos, de escolha da natureza do mar, mas, sim, de como navegá-lo), aumentando, consoantemente a isso, sua saúde psicológica, permitindo-lhe concretizar sua missão de tornar-se de fato humano.

Quero deixar esta frase, que entendo como o real fundamento sobre o que se pode construir com qualquer técnica que pretenda deslocar o sujeito, no contínuo da liberdade, do pólo dos que são cavalgados por suas estrelas, para o pólo dos poucos que chegam a cavalgá-las. E para marcá-la, permito-me repeti-la, reformulada: A AMPLIAÇÃO DO DISCURSO DE UM SUJEITO É O ÚNICO REAL CAMINHO PARA A AMPLIAÇÃO DE SUA LIBERDADE.

Imagino que algo dessa verdade esteja contido na suspeita de alguns astrólogos, levantado no seminário a que anteriormente me referi, de que o aprofundamento astrológico do problema do arbítrio passa por uma reavaliação do papel de Mercúrio, um planeta evidentemente associado ao problema do discurso.

E, para terminar com uma proposta, faço a de que psicanalistas e astrólogos se unam em torno à tarefa de transformar a frase psicanalítica "AMPLIE SEU DISCURSO" e a frase astrológica "CAVALGUE SUA ESTRELA", em uma só frase astro-psicanalítica: "DISCURSE SUA ESTRELA".

domingo, setembro 25, 2005

O QUE É PSICANÁLISE?

Há uma grande confusão, no seio do grande público e, mesmo no de profissionais, sobre o que seja Psicanálise. Imagino que as considerações a seguir possam, se não dirimir, pelo menos atenuar essa confusão.

A Psicanálise existe em dois níveis, o de ser uma TEORIA PSICOLÓGIA e o de ser uma ESTRATÉGIA PSICOTERÁPICA.

No que diz respeito à sua TEORIA, o conceito essencial que gerou a Psicanálise é o de que "mental" é sinônimo de "intencional". Assim, se você arremessa uma pedra em direção ao sul, ela iniciará uma tragetória em direção ao sul, porque não tem um psiquismo, uma mente, que se oponha as forças que a arremessaram; já se você arremessa um pássaro - vivo, é claro! - na mesma direção, você não pode prever para que direção ele se deslocará, porque ele tem um psiquismo que fará decisões de vôo, que o levarão a direções diversas ou idêntica àquela para onde foi lançado. No fim do século XIX, o atendimento, pelo clínico geral austríaco, Joseph Breuer, de uma paciente chamada Bertha Pappenheim, demonstrou que o comportamento do ser humano pode ser guiado, além de por intenções CONSCIENTES, também por intenções INCONSCIENTES. Enquanto teoria psicológica, a Psicanálise lançou-se à tarefa de adicionar à compreensão das intenções conscientes que comandam o comportamento humano, a compreensão dessas intenções inconsciente que também o influenciam.

No que diz respeito à ESTRATÉGIA PSICOTERÁPICA, a Psicanálise abarca o conjunto de técnicas - extremamente diversificadas - que se inspiram nos seguintes pressupostos: (1) há tanto mais saúde mental, quanto mais as intenções que gerenciam o comportamento de um sujeito são PASSÍVEIS DE CONSCIÊNCIA e (2) para que uma intenção seja plenamente consciente, deve ser passível de ESPRESSÃO VERBAL. Enquanto estratégia psicoterápica, portanto, o objetivo da Psicanálise é o de expandir o campo de experiência pessoal que tem ACESSO À PALAVRA, pouco importanto o tipo de técnica empregado, se capaz de cumprir tal objetivo.

quinta-feira, setembro 22, 2005

"VOLTAREI!"

VOLTAREI!

Luís César de Miranda Ebraico

Em seu discurso de renúncia, Severino Cavalcanti afirmou: - "Voltarei, voltarei, voltarei!"
Voltará? Se voltar, ficará provado que o problema do Brasil não são os políticos corruptos, são os eleitores otários. Karl Popper dizia: "A função da democracia não é fazer que os melhores cheguem ao poder, é garantir que os piores não permaneçam nele". Nunca fiquei tão feliz com o meu voto como na última eleição. Disse a meus amigos: "Vou acabar com a ilusão dos brasileiros sobre o Lula e o PT". Perguntaram-me: — E como você vai fazer isso? Respondi: — "Vou votar no Lula. No dia em que ele se sentar na cadeira de presidente, vão, ele e o PT, acabar com a mística com que têm apavorado os conservadores e encantado os progressistas. Vai ficar claro que não são nem muito piores nem muito melhores do que os demais políticos que assolam o cenário nacional." Eu poderia, como eleitor, estar mais realizado?
Não, não poderia, e vale a pena aprofundar isso. Marx dizia: "O requisito essencial para que nos livremos de uma condição que precisa de ilusões é nos livrarmos das ilusões sobre nossa própria condição". Com efeito, para que qualquer democracia avance, os eleitores precisam passar pela dolorosa terapia da desilusão com aqueles a quem elegem. Parece que o povo brasileiro está no divã. E já que Lula e o PT fizeram a gentileza de — turbinados por meu voto e de muitos outros mais — colocarem nosso povo no divã do desencanto, vou-me permitir como loganalista — um recente desenvolvimento da Psicanálise — alguns vôos interpretativos. Vejamos.
A essência desse vôo seria afirmar que temos um sério problema de identidade. Somos “brasileiros”. Isso, lamento dizê-lo, é uma verdadeira catástrofe. “Brasileiros” eram os europeus — mormente portugueses — que se aventuravam em nossas terras para saqueá-la, pondo abaixo as reservas florestais de pau brasil para voltarem ricos para suas terras e lá viverem às custas do que depredaram aqui. Por razões que logo exporei, no inconsciente de muitos de nós, continuamos a ser “brasileiros” no pior sentido que essa palavra pode ter: continuamos sonhando que somos europeus e que vamos depredar esta terra, arrancar dela suas riquezas e nos transferirmos para a Europa — Maiami também serve! — para usufruir gostosamente os ganhos dessa depredação. Estou cansado de atender paciente das classes que abocanham mais de metade de nosso PIB e que pensam e sentem exatamente assim. Seria necessário lembrar do Maluf?
Um outro elemento relacionado aos problemas de identidade dos brasileiros é o fato de que foram vergonhosamente enganados pelos portugueses, ou, pelo menos, por um português, Dom Pedro I. Via de regra, os processos de independência são sangrentos. Quando as 13 colônias americanas se revoltaram contra as taxas extorsivas que a metrópole inglesa cobrava sobre, entre outras coisas, o chá, iniciou-se uma guerra. Obedecer às leis impostas por aquela metrópole era ser vergonhosamente submisso a ela, infringi-las era ser patriótico. Ao vencerem a metrópole, rasgar as leis que a metrópole impunha e redigir outras, supostamente satisfatórias para a nação que se libertou do jugo colonial, obedecer à lei passou a ser um ato de patriotismo e desobedecê-la, não.
Durante o Brasil colônia tínhamos dois tipos de sujeitos em nossa população: os “brasileiros”, que, como dissemos, eram europeus que vinham depredar nosso atual território para gozar as benesses disso em seus países de origem, e os “santos de pau-oco”, que tentavam passar a perna na Metrópole traficando pedras preciosas dentro de imagens sagradas cujo interior, oco, estava preenchido delas. Como não fizemos uma guerra de independência, como Dom Pedro I, um português, enganou todos os brasileiros OUTORGANDO uma independência que deveria ter sido tomada à força, não nos livramos da metrópole, INTERNALIZAMOS A METRÓPOLE: a camarilha portuguesa que mandava no Brasil disse à população que ela estava independente e continuou mandando aqui da mesma maneira que mandava enquanto ainda éramos colônia. Com efeito, somos colonizados por nós mesmos e é essa a razão de nosso país apresentar uma das mais - senão a mais - injusta distribuição de renda de todo o planeta. As 500 famílias que, hoje, abocanham a esmagadora parte de nosso PIB são — seria um acaso? — exatamente os descendentes das 500 famílias portuguesas que sugavam as riquezas do Brasil colônia (não custa lembrar que, durante dezenas de anos, se bem me lembro, cerca de dois terços dos recursos econômicos de Portugal provinham dos lucros auferidos aqui). Com a derrocada das monarquias, essas 500 famílias político-aristocráticas, transformaram-se em famílias político-buracráticas e continuaram, mediante o velho e eficiente expediente das taxas e impostos, a sugar o sangue da população para sevar seus salários e aposentadorias milionárias. Nesse processo, os dois tipos que populavam nosso território, os “brasileiros” e os “santos de pau oco” sincretizaram-se e produziram o “brasileiro de pau oco”: depredam o Brasil para levar seus recursos para fora e escondem seus ganhos, não mais em imagens de santos, mas em cuecas e em caixas dois. Paulo Maluf, Severino Cavalcanti et caterva são insignes representantes dessa estirpe.
Quando esse “brasileiros de pau oco” são pegados com a boca na botija, reagem como o judeu reagiu em uma piada contada por Freud. Isaac emprestou um prato a Jacó. Jacó rachou o prato de Isaac. Não querendo assumir os ônus disso, Jacó devolveu o prato não para o Jacó, mas para a empregada dele e esperou que tudo passasse em branco. Não passou. Jacó bateu em sua porta e indigitou: — "Isaac, você rachou o prato que eu lhe emprestei!" Isaac, acuado, saiu-se com esta: — "Jacó, primeiro, você não me emprestou prato nenhum; segundo, quando você me emprestou o prato, ele já estava rachado; terceiro, eu lhe devolvi o prato inteirinho!"
Não é uma delícia? Ouçamos os nossos políticos. O Severino diz: primeiro, eu prorroguei o contrato do Buani porque isso era perfeitamente legal; segundo, não há nenhum documento que sustente a suspeita de que eu fiz essa prorrogação ilegal; terceiro, a assinatura que existe no documento que eu disse que não existe e que sustenta essa suspeita não é autêntica. Se não fosse trágico, seria cômico.

quinta-feira, setembro 15, 2005

A PALAVRA COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DA SAÚDE PSICOLÓGICA

Há cinco grandes grupos de doenças psicológicas: (1) as demências, (2) as oligofrenias, (3) as psicoses, (4) as psicopatias, (5) as neuroses. A prevenção e o tratamento dos quatro primeiros grupos são tarefas que exigem a intervenção de um profissional. Já a prevenção e o tratamento das neuroses - que, na verdade, são responsáveis por mais de 90% do conjunto de doenças mentais - teriam grande avanço se a população em geral fosse devidamente orientada para intervir. Enquanto grande parte das doenças pertencentes aos primeiros quatro grupos tem fundamentos genéticos - e é a Genética que nos vai socorrer no lidar com elas -, as neuroses são afecções causadas por distúrbios nos processos de comunicação verbal e, se aperfeiçoamos esses processos - e não é preciso ser um profissional para fazer isso -, podemos nos tornar promotores de saúde psicológica, seja no sentido de prevenirmos sua ocorrência (isso ocorre, principalmente, na relação com nossos filhos), seja no sentido de dissolvermos quadros neuróticos já instalados (os de maior gravidade, naturalmente, requerem intervenção de um profissional).
Como é que a palavra intervém na criação da neurose? Para isso, é bom que tentemos desenhar um esboço do que seja saúde psícológica. Vou fazê-lo em uma linguagem bastante accessível: saúde mental é a capacidade de ter suficiente jogo de cintura para juntar o útil ao agradável. Vamos a alguns exemplos.
O primeiro ilustra as conseqüências de uma excessiva ênfase no agradável poder prejudicar o útil. Os chamados "quadros maníacos" fazem isso. Conheci um jovem diretor de cinema que sofria de crônicas dificuldades financeiras e que teve imenso prazer em lançar ao mar R$50.000,00 que havia recebido de seu primeiro filme de sucesso! Por outro lado, há quadros neuróticos, mormente pertencentes à categoria dos Transtornos Obsessivos Compulsivos (TOC), cujos representantes são capazes de trabalhar operosamente em uma profissão que detestam, colocar religiosamente a cada mês em uma poupança 20% de seus salários, ter seguro de vida, de saúde e já haverem comprado a própria sepultura, enfim, viver uma vida dentro de parâmetros da maior segurança, mas, por outro lado, de um tédio mortal.
A pessoa saudável consegue harmonizar funcionalidade (= segurança) com prazer. Mas por que a neurose (como todos os demais quatro grandes grupos de doença psicológica, porém é sobre ela que nos concentraremos aqui) impede que essa harmonia ocorra? Para que, no que diz respeito a prazer e funcionalidade, possamos, em nossa vida, otimizar a relação custo/benefício é necessário, antes de tudo, que não sejamos ALIENADOS. Lembram-se de Machado de Assis e de sua obra "O Alienista"? Pois é, há cerca de cem anos atrás, chamavam-se "alienistas" os médicos que tratavam dos doentes (= alienados) mentais. A alienação - estado em que a pessoa está alheia, de si mesmo e do mundo - é a essência da doença mental. Prevenir a doença mental, ou tratá-la, é evitar que a alienação ocorra ou ser capaz de dissolvê-la. Essa alienação, no caso de uma demência, é devida à destruição concreta de tecido cerebral, e não há leigo que possa intervir para sustar ou eliminar esse processo. Já no que diz respeito à neurose, a causa é mais accessível à intervenção de qualquer pessoa - profissional ou não - bem informada. A alienação, na neurose, é causada porque, àquela pessoa, FALTAM PALAVRAS. Querem um exemplo? Lá vai. Recebi um paciente, na casa de seus vinte anos, cuja mãe havia sofrido muito sob a tradição judaico-cristã de induzir culpa nos que são por ela influenciados. Revoltou-se contra isso e, com intenção de proteger seu filho dessa danosa influência, pontificou: "Culpa não existe, não passa de uma invenção judaico-cristã. Você pode se sentir responsável, nunca culpado!" E ele ficou proibido de usar a palavra "culpa" e seus cognatos. Por melhor que fossem suas intenções, ela roubou de seu filho uma palavra. Não existe ser humano que, com razão ou sem ela, não tenha, em certos momentos de sua vida, sentido culpa. E o processo saudável - não alienado - exige que, ao sentir qualquer sentimento, culpa ou qualquer outro, o ser humano seja capaz de expressá-lo verbalmente. Com suas boas intenções - mas mal informada -, a mãe de meu paciente havia-lhe roubado uma palavra. Ele tinha sido proibido, por ela, de expressar verbalmente seus sentimentos de culpa, quando, com razão ou sem ela, os experimentava. O que nasceu daí? Nasceu uma neurose, a inescapável filha da ausência de uma - ou mais - palavras. Quais os sintomas? Meu paciente era compulsiva e exageradamente "certinho". Tão certinho que - entre dezenas de outros exemplos que não me delongarei a citar -, se tinha quatro horas para estudar para uma prova, passava três delas arrumando o seu quarto, pondo cada coisa em seu perfeito lugar, antes de poder começar a estudar, apresentando, ao final, um resultado acadêmico muito aquém do que seria capaz de produzir. Chegado à terapia, pude explicar-lhe que, por mais que sua mãe estivesse querendo ajudá-lo, ela não entendia muito de Psicologia, e, ao impedir-lhe de falar frases como "eu estou me sentindo culpado" (fosse ou não culpado), ela estava lhe fazendo mal. O paciente, que, inclusive, havia lido meu livro, "A Nova Conversa", era bastante inteligente e logo entendeu o que lhe expus. Não vou entrar em detalhes aqui, mas, na medida em que foi capaz de enunciar o sentimento de culpa (repito, fosse culpado ou não), quando o experimentava, viu-se livre de uma série de sintomas que entravavam gravemente sua vida cotidiana.
Se a alienação é o núcleo da doença psicológica, os dois tipos de literatura que atualmente pretendem ajudar o cidadão comum a lidar com seus problemas cotidianos fazem exatamente o contrário do que seria desejável. A maioria esmagadora dos chamados livros de "auto-ajuda" só faz alimentar a alienação, propondo que o indivíduo se esforce para ter um "pensamento positivo", ou seja, se ele está triste, deve fingir que está alegre, se está com raiva, deve fingir que está cheio de amor. Há mais alienação do que isso? O outro tipo de literatura à disposição do grande público é de inspiração psicanalítica. Não faz tanto mal quanto o primeiro, mas, de qualquer forma, consegue ser gloriosamente inútil. Se a literatura chamada de "auto-ajuda" propõe uma alienação mediante a superficialidade, a literatura psicanalítica propõe a alienação mediante a profundidade. Uma de minhas pacientes, que passou, e decepcionou-se com eles, por esse dois tipos de "receitas existenciais", comentou: "Quando me livrei daquela porcaria de literatura de auto-ajuda que mandava eu ficar feliz quando eu estava p... da vida, caí numa psicanálise que me fornecia explicações mirabolantes sobre as razões de eu estar assim, sem me dar qualquer orientação sobre o que eu deveria fazer para sair de maneira decente do estado em que eu me encontrava."
Qual, então, o tipo de literatura que poderia ser, de fato, útil para superarmos o impasse criado por aqueles dois tipos de receita. Publicarei, neste blogue, uma série de postagem - em particular algumas entituladas "DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS" - que tem por objetivo exemplificar que literatura é essa. Uma exposição mais ampla encontra-se, naturalmente, em meu livro "A Nova Conversa".