quinta-feira, setembro 15, 2005

A PALAVRA COMO INSTRUMENTO DE PROMOÇÃO DA SAÚDE PSICOLÓGICA

Há cinco grandes grupos de doenças psicológicas: (1) as demências, (2) as oligofrenias, (3) as psicoses, (4) as psicopatias, (5) as neuroses. A prevenção e o tratamento dos quatro primeiros grupos são tarefas que exigem a intervenção de um profissional. Já a prevenção e o tratamento das neuroses - que, na verdade, são responsáveis por mais de 90% do conjunto de doenças mentais - teriam grande avanço se a população em geral fosse devidamente orientada para intervir. Enquanto grande parte das doenças pertencentes aos primeiros quatro grupos tem fundamentos genéticos - e é a Genética que nos vai socorrer no lidar com elas -, as neuroses são afecções causadas por distúrbios nos processos de comunicação verbal e, se aperfeiçoamos esses processos - e não é preciso ser um profissional para fazer isso -, podemos nos tornar promotores de saúde psicológica, seja no sentido de prevenirmos sua ocorrência (isso ocorre, principalmente, na relação com nossos filhos), seja no sentido de dissolvermos quadros neuróticos já instalados (os de maior gravidade, naturalmente, requerem intervenção de um profissional).
Como é que a palavra intervém na criação da neurose? Para isso, é bom que tentemos desenhar um esboço do que seja saúde psícológica. Vou fazê-lo em uma linguagem bastante accessível: saúde mental é a capacidade de ter suficiente jogo de cintura para juntar o útil ao agradável. Vamos a alguns exemplos.
O primeiro ilustra as conseqüências de uma excessiva ênfase no agradável poder prejudicar o útil. Os chamados "quadros maníacos" fazem isso. Conheci um jovem diretor de cinema que sofria de crônicas dificuldades financeiras e que teve imenso prazer em lançar ao mar R$50.000,00 que havia recebido de seu primeiro filme de sucesso! Por outro lado, há quadros neuróticos, mormente pertencentes à categoria dos Transtornos Obsessivos Compulsivos (TOC), cujos representantes são capazes de trabalhar operosamente em uma profissão que detestam, colocar religiosamente a cada mês em uma poupança 20% de seus salários, ter seguro de vida, de saúde e já haverem comprado a própria sepultura, enfim, viver uma vida dentro de parâmetros da maior segurança, mas, por outro lado, de um tédio mortal.
A pessoa saudável consegue harmonizar funcionalidade (= segurança) com prazer. Mas por que a neurose (como todos os demais quatro grandes grupos de doença psicológica, porém é sobre ela que nos concentraremos aqui) impede que essa harmonia ocorra? Para que, no que diz respeito a prazer e funcionalidade, possamos, em nossa vida, otimizar a relação custo/benefício é necessário, antes de tudo, que não sejamos ALIENADOS. Lembram-se de Machado de Assis e de sua obra "O Alienista"? Pois é, há cerca de cem anos atrás, chamavam-se "alienistas" os médicos que tratavam dos doentes (= alienados) mentais. A alienação - estado em que a pessoa está alheia, de si mesmo e do mundo - é a essência da doença mental. Prevenir a doença mental, ou tratá-la, é evitar que a alienação ocorra ou ser capaz de dissolvê-la. Essa alienação, no caso de uma demência, é devida à destruição concreta de tecido cerebral, e não há leigo que possa intervir para sustar ou eliminar esse processo. Já no que diz respeito à neurose, a causa é mais accessível à intervenção de qualquer pessoa - profissional ou não - bem informada. A alienação, na neurose, é causada porque, àquela pessoa, FALTAM PALAVRAS. Querem um exemplo? Lá vai. Recebi um paciente, na casa de seus vinte anos, cuja mãe havia sofrido muito sob a tradição judaico-cristã de induzir culpa nos que são por ela influenciados. Revoltou-se contra isso e, com intenção de proteger seu filho dessa danosa influência, pontificou: "Culpa não existe, não passa de uma invenção judaico-cristã. Você pode se sentir responsável, nunca culpado!" E ele ficou proibido de usar a palavra "culpa" e seus cognatos. Por melhor que fossem suas intenções, ela roubou de seu filho uma palavra. Não existe ser humano que, com razão ou sem ela, não tenha, em certos momentos de sua vida, sentido culpa. E o processo saudável - não alienado - exige que, ao sentir qualquer sentimento, culpa ou qualquer outro, o ser humano seja capaz de expressá-lo verbalmente. Com suas boas intenções - mas mal informada -, a mãe de meu paciente havia-lhe roubado uma palavra. Ele tinha sido proibido, por ela, de expressar verbalmente seus sentimentos de culpa, quando, com razão ou sem ela, os experimentava. O que nasceu daí? Nasceu uma neurose, a inescapável filha da ausência de uma - ou mais - palavras. Quais os sintomas? Meu paciente era compulsiva e exageradamente "certinho". Tão certinho que - entre dezenas de outros exemplos que não me delongarei a citar -, se tinha quatro horas para estudar para uma prova, passava três delas arrumando o seu quarto, pondo cada coisa em seu perfeito lugar, antes de poder começar a estudar, apresentando, ao final, um resultado acadêmico muito aquém do que seria capaz de produzir. Chegado à terapia, pude explicar-lhe que, por mais que sua mãe estivesse querendo ajudá-lo, ela não entendia muito de Psicologia, e, ao impedir-lhe de falar frases como "eu estou me sentindo culpado" (fosse ou não culpado), ela estava lhe fazendo mal. O paciente, que, inclusive, havia lido meu livro, "A Nova Conversa", era bastante inteligente e logo entendeu o que lhe expus. Não vou entrar em detalhes aqui, mas, na medida em que foi capaz de enunciar o sentimento de culpa (repito, fosse culpado ou não), quando o experimentava, viu-se livre de uma série de sintomas que entravavam gravemente sua vida cotidiana.
Se a alienação é o núcleo da doença psicológica, os dois tipos de literatura que atualmente pretendem ajudar o cidadão comum a lidar com seus problemas cotidianos fazem exatamente o contrário do que seria desejável. A maioria esmagadora dos chamados livros de "auto-ajuda" só faz alimentar a alienação, propondo que o indivíduo se esforce para ter um "pensamento positivo", ou seja, se ele está triste, deve fingir que está alegre, se está com raiva, deve fingir que está cheio de amor. Há mais alienação do que isso? O outro tipo de literatura à disposição do grande público é de inspiração psicanalítica. Não faz tanto mal quanto o primeiro, mas, de qualquer forma, consegue ser gloriosamente inútil. Se a literatura chamada de "auto-ajuda" propõe uma alienação mediante a superficialidade, a literatura psicanalítica propõe a alienação mediante a profundidade. Uma de minhas pacientes, que passou, e decepcionou-se com eles, por esse dois tipos de "receitas existenciais", comentou: "Quando me livrei daquela porcaria de literatura de auto-ajuda que mandava eu ficar feliz quando eu estava p... da vida, caí numa psicanálise que me fornecia explicações mirabolantes sobre as razões de eu estar assim, sem me dar qualquer orientação sobre o que eu deveria fazer para sair de maneira decente do estado em que eu me encontrava."
Qual, então, o tipo de literatura que poderia ser, de fato, útil para superarmos o impasse criado por aqueles dois tipos de receita. Publicarei, neste blogue, uma série de postagem - em particular algumas entituladas "DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS" - que tem por objetivo exemplificar que literatura é essa. Uma exposição mais ampla encontra-se, naturalmente, em meu livro "A Nova Conversa".

6 comentários:

Anônimo disse...

Vou aguardar ansiosa o próximo post.
Muito sábio de sua parte assinalar que os manuais de auto-ajuda mais alienam do que ajudam. Esses autores não querem ajudar ninguém, querem é vender livro. A promoção de saúde mental está para muito além dessas abobrinhas que, curiosamente, vendem e vendem nas livrarias.

Anônimo disse...

Acho muito importante que se perceba que tanto o que o Mainardi chama de "a picaretagem macroscópica da literatura de auto-ajuda", como também a literatura de difusão da Psicanálise acabam sofrendo do mesmo defeito: não estão onde o sujeito está, uma por ser por demais superficial e a outra por ser por demais profunda.

Anônimo disse...

"A mão que joga pedra é a mesma que apedreja"..diria a filosofia "fast-food" de um livro de auto-ajuda.

Espero o próximo post, Luís César.

Abraço,

Anônimo disse...

Acabei de me lembrar da história de um sujeito que encontra um amigo em estado de total desconsolo. Perguntado sobre o que estava acontecendo, o tristonho acabou por confessar que sofria, há anos, de enurese noturna o que muito o constrangia e humilhava.
O amigo, solidário, sugeriu que ele procurasse um terapeuta e o outro agradecido, concordou em tentar.
Meses depois o sujeito encontra novamente o amigo mas desta vez em estado de absoluta euforia.
_ Que bom te ver tão animado! Resolveu o problema? Não faz mais pipi na cama?
- Resolver, não resolvi, mas por conta da terapia, agora me orgulho disso!!!
Obviamente, o terapeuta nada sabia sobre a Nova Conversa...

Anônimo disse...

Em "medo do palco", a utilização do "a gente" lembrou-me Heidegger e o seu "Todos nós, ninguém". O filósofo denuncia a ausência de pessoalidade no discurso alienado. Creio que, neste ponto, a loganálise esteja alinhada com Heidegger. Independentemente disso, aduzo que acredito piamente na necessidade da pessoalidade nesse sentido em que o termo foi utilizado. A loganálise atrai muito a minha atenção.
Outro ponto de destaque é o desejo de palavra, como você diz, independentemente de seu valor de verdade. Este é um ponto chave na minha opinião. Nós precisamos superar a interdição do significante( isso nada tem a ver com Lacan, falo do som interno da palavra mesmo, o que inclui a fala audível por outros, supondo que a imagem acústica interna necessariamente está presente)

Anônimo disse...

Nicolau,

Considero essencial a contribuição da Filosofia. Desde o “conhece-te a ti mesmo” dos primórdios gregos, até as contribuições de Nietzsche — gloriosamente distorcidas, aliás — que a Filosofia tem apontado caminhos que, no meu entender, levam à saúde psicológica. A grande, enorme, contribuição da Psicanálise, contribuição que a Loganálise tenta sofisticar, é mostrar o COMO trilhar esses caminhos. Convenhamos, dizer para alguém “conhece-te a ti mesmo”, dar-lhe um tapinha nas costas e mandá-lo embora é muito pouca ajuda. Freud foi o primeiro a propor TÉCNICAS ESPECÍFICAS para instrumentar o objetivo filosófico do autoconhecimento, mas essas técnicas foram idealizadas para ser empregadas por terapeutas profissionais com seus pacientes. As técnicas loganalíticas têm-se demonstrado empregáveis pelo leigo em seu dia-a-dia e é essa sua grande contribuição. No meu próximo post, vou falar um pouco sobre essas técnicas. Deve entrar no site na segunda que vem.

Abraço.

Luís César.