quinta-feira, novembro 02, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXI: O PROBLEMA DO NEURÓTICO

Mais de uma vez recebi pacientes perturbados por “previsões” de astrólogos incapazes de processar de maneira adequada as informações com que trabalham. Recentemente, tive que lidar com a compreensível preocupação de uma mãe a quem foi dito, com base na análise do mapa astrológico de seu filho, que ela ou ele tinha que sair de casa, porque um dos dois iria matar o outro! Casos como esse levaram-me a ministrar, em um curso de formação de astrólogos, uma cadeira com o título de “Cuidados na Transmissão da Informação Astrológica”. Assisti a algumas cadeiras ministradas nesse curso e, numa delas, ouvi um diálogo inesquecível:

PROFESSOR (logo no início da aula): — O neurótico tem um problema, blá, blá, blá, blá, blá, blá.
ALUNA (passados já uns quarenta minutos do início da aula): — Mas, professor, afinal das contas, qual o problema que tem o neurótico?
PROFESSOR: — Não, minha filha, você não entendeu. O neurótico tem UM problema, as pessoas saudáveis tem vários...

Raramente eu tinha ouvido um comentário que recobrisse de maneira tão perfeita minha experiência clínica. Com efeito, quanto mais neurótica, mais a pessoa é escrava de UM problema, que ocupa tal espaço em sua vida que os demais problemas deixam de receber a atenção que merecem. Uma paciente, por exemplo, vem a uma primeira sessão e diz que se sente extremamente rejeitada porque não agüenta o fato de que seu ex-marido, mal separou-se dela, já tenha iniciado uma relação estável com outra pessoa, relação que, desconfia ela, talvez já até existisse mesmo antes da separação; vem a uma segunda sessão e diz que que se sente extremamente rejeitada porque não consegue suportar o fato de seu ex-marido, mal separou-se dela, já tenha iniciado uma relação estável com outra pessoa, relação que, desconfia ela, talvez já até existisse mesmo antes da separação; vem a uma terceira sessão e fala que se sente extremamente rejeitada porque é realmente inadmissível que seu ex-marido, mal separou-se dela, já tenha iniciado uma relação estável com outra pessoa, relação que, desconfia ela, talvez já até existisse mesmo antes da separação; vem a uma quarta sessão...

Pois é, o professor de Astrologia tinha razão: a pessoa neurótica tem UM problema, as pessoas saudáveis tem vários. Se, um belo dia, essa paciente esquece como se sentiu rejeitada pelo marido e chega dizendo que se sentiu rejeitada pela irmã, já acho que está melhorando; se diz que tem a impressão de que talvez ela paciente rejeite o síndico de seu prédio, está melhor ainda; se diz que talvez tenha inveja de uma amiga, ainda melhor; se raiva de seu dentista, também. Daqui a pouco, vai ter tantos problemas quanto qualquer pessoa saudável.

Não é curioso que minha função, como psicoterapeuta, seja a de AUMENTAR o número de problemas das pessoas?

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XX: INDIVIDUALIDADE

Eu e mais três amigos, jantando. Embora o clima da conversa estivesse mais para o jocoso, Carlos – evidente que todos os nomes aqui, menos o meu, são fictícios – puxou a conversa para um tom mais sério, começando a falar sobre problemas pessoais, mormente relativos a sua vida sexual e a seu casamento.

CARLOS (casado já há 15 anos): — Uma das coisas que vêm me aborrecendo é que tenho cada vez mais perdido o tesão por minha mulher...
LUÍS CÉSAR: — Há quanto tempo isso vem acontecendo?
CARLOS: — De uns cinco anos para cá, mas, neste último ano, a coisa piorou mesmo.
ANDRÉ: — Caramba, cara, eu também já passei por isso! Não é mole, não. Principalmente, quando você gosta da sua mulher...
MAURÍCIO (um gosador incurável): — Que é isso, Carlos?! Não estou entendendo! Você, com sua experiência de executivo, não saber qual a solução correta para um problema como esse!
CARLOS: — E que diabos de solução é essa?
ANDRÉ: — Eu também não sei que solução é essa!
LUÍS CÉSAR: — Nem eu!
MAURÍCIO: — Ué, terceiriza!!!

Como se sabe, existe “terceirização”, quando uma empresa, com o objetivo de otimizar o exercício de determinadas atividades, transfere para outra(s) pessoa(s) física(s) ou jurídica(s) atividades antes por ela própria desempenhadas. Embora, durante o jantar, a pândega de se propor que Carlos “terceirizasse” o “setor sexual” de sua função de marido tenha recolocado nosso papo no trilho da gaiatice, eu, chegando a casa, fui assomado por uma série de reflexões bastante sérias provocadas pelo diálogo acima e relativas ao conceito de individualidade.
Ora, “indivíduo”, ipsis litteris, significa “não passível de ser dividido”. Mas será, mesmo, que o “indivíduo” não é divisível? Ele é uma espécie de “átomo existencial”, é “um”? Mas, se ele é um, porque, ao organizar as pastas de nossos arquivos, rotulamos uma delas de “documentos de terceiros”? Por que há outra pasta com o rótulo de “documentos de segundos”? Não, não há. E quando uma empresa “terceiriza”, é porque ela já tinha “secundarizado”? Também não. Mistério! Essas divagações levaram-me espontaneamente a outras. Primeira: Por que, quando pretendo que um indivíduo se caracterize de forma que eu possa DIFERENCIÁ-LO dos demais, eu não peço que ele se “DIFERENCIE”, mas, sim, que se “IDENTIFIQUE”? Segunda: se uma pessoa é indivisível, una, como ela pode “cair em si”: o “si” já não era o “ela”? E como pode estar “fora de si”: como “ela” pode estar “fora dela”?
Sou tentado a concluir que todos nós sabemos – embora nem sempre saibamos que sabemos – uma série de coisas. Primeiro: que somos dois – o “minzão” e o “minzinho” – podendo esses dois serem graficamente representados por um círculo menor – o “minzinho” – dentro de outro maior – o “minzão” (círculos que, no jargão psicanalítico, mereceriam ser respectivamente chamados de “o eu” e “o isso”). Segundo: que, quando meu comportamento é comandado pela área pertencente apenas ao círculo maior, estou “fora de mim” e quando ele volta a ser comandado pela parte da figura que pertence simultaneamente aos dois círculos, eu “caí em mim”.
Ora, se sei, ainda que obscuramente, que sou dois, nada mais razoável que os documentos dos outros sejam, não “de segundos”, mas “de terceiros”. Por outro lado, se apenas na área do “minzinho” as áreas dos dois círculos são IDÊNTICAS, nada mais razoável que, só quando essa área está operando, eu tenha sensação de IDENTIDADE e sinta que estou “em mim”. De passagem, é a interação recíproca dos conhecimentos próprios a cada um desses dois setores de nosso psiquismo que merece o nome de “co-ciência”, conhecida mais comumente em nosso léxico sob o nome de “consciência”. Mas isso é papo para outra hora...

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XIX: ESTA HUMANIDADE!

Pouco conheço de Marx, mas uma de suas frases ficou indelevelmente registrada em minha memória: “A crítica arrancou as flores que enfeitavam os grilhões, não para que o homem os arraste sem esperança ou consolo, mas para que os rompa e se aposse da flor viva”.
Em minha última contribuição para essa coluna, ousei afirmar que a máxima cristã “Amai-vos uns aos outros” tem algumas conseqüências bastante perniciosas. O argumento exposto compunha-se de quatro pontos principais:
1) O sentimento de amor não pode ser produzido por um comando de nossa vontade;
2) É totalmente incabível ordenar a um indivíduo que dê origem a algo que escapa a esse comando;
3) Ordens que o fazem geram indivíduos:
a. Que fingem ter cumprido o que não podem cumprir;
b. Que fazem tentativas pateticamente fadadas ao fracasso de conseguir o que não podem;
c. Que desperdiçam tempo e energia que poderiam ter sido empregados em tarefas desejáveis e POSSÍVEIS de serem realizadas.
4) Esses tempo e energia desperdiçados na tarefa inglória de se tentar estabelecer, à custa de vontade e esforço, o “amor universal” entre os homens seriam muitíssimo mais bem empregados se aplicados à tarefa POSSÍVEL E ALTAMENTE DESEJÁVEL de se estabelecer, não o amor, mas, sim, o “respeito universal” entre os homens.
Uma freqüentadoras de minha clínica leu uma cópia do escrito em que expus originalmente essa argumentação. Quando encontrei-me com ela, travamos o seguinte diálogo:
LUÍS CÉSAR: — Então? Soube que você leu o rascunho do meu “Amai-vos uns aos outros”. Que tal achou?
CATARINA: — Bem, primeiro, achei que sou meio assim mesmo, de achar que as pessoas devem amar uns aos outros; segundo, não pude discordar de sua argumentação de que, enquanto os indivíduos se dedicam a tentar fazer o impossível, deixam de fazer o possível; terceiro, vou continuar tentando fazer o impossível mesmo.
LUÍS CÉSAR (surpreso e curioso): — Ah, é! E por quê?
CATARINA: — Ora, se você coloca sua meta em algo que pode, em princípio, fazer e não consegue, a culpa é sua e você ainda vai se sentir pequeno diante dos que conseguem. Por outro lado, se coloca essa meta em algo impossível, a culpa de não conseguir não é sua – é impossível mesmo! – e como ninguém tampouco consegue, você não vai se sentir menor do que ninguém.
LUÍS CÉSAR (perplexo): — É, não deixa de ter a sua lógica...
As colocações de Catarina remeteram-me de imediato ao comentário sobre meu livro que mais me fez refletir e que em seguida transcrevo:
LUÍS CÉSAR: — Sua mulher me disse que você está lendo meu livro. Está gostando?
ALBERTO: — Só li umas trinta páginas e parei.
LUÍS CÉSAR (tão surpreso e curioso quanto fiquei com Catarina): — Ah, é! E por quê?
ALBERTO: — Estava tudo ficando tão claro que eu ia ter que fazer alguma coisa.
Coitado de Marx e da sua “flor viva”...
[1] A ser postado no saite www.vyaestelar.com.br

sábado, setembro 16, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XVIII: AMAI-VOS UNS AOS OUTROS

Durante cerca de um ano, a relação entre Fernando e Júlia havia sido um mar de rosas. A partir daí, o comportamento de Júlia começou a se alterar.

FERNANDO: — Pelo amor de Deus, Júlia! Nós éramos tão felizes! De um tempo para cá você vem infernizando nossa vida! Vive me perseguindo com perguntas absurdas, passou a duvidar de minhas respostas, a me impedir de trabalhar direito por me chamar dezenas de vezes por dia no telefone de meu escritório, a me seguir para saber aonde eu estou indo, a me agredir verbalmente e nem sei o que mais! Que diabos está acontecendo com você para você mudar tanto assim?
JÚLIA: — É porque antes eu não te amava e AGORA EU TE AMO!
FERNANDO (depois de alguns segundos de perplexidade): — Daria, então, para você me fazer um favor?
JÚLIA: — Qual?
FERNANDO: — Daria para você virar o canhão do seu amor na direção do meu maior inimigo?

Amor não é algo que se produza por um ato de vontade. Espontaneamente, ocorre ou não. Se é assim, quais as conseqüências de uma cultura, de inspiração essencialmente cristã, que faz uma maciça apologia do amor, bombardeando quotidianamente o indivíduo com o refrão de que ele DEVE AMAR?
A primeira dessas conseqüências é a igualmente maciça produção de “factóides de amor”, como o ilustrado no diálogo acima, a ponto de o objeto de tal amor “fake” preferir que tão nobre sentimento seja dirigido ao vizinho...
O que ocorre, na verdade, é que, preso na armadilha de uma cultura que entende amar como algo que deve ser obrigatóriamente dispensado de forma universal, o indivíduo, temendo ser pego em flagrante não fazendo uma coisa que, na verdade, não pode mesmo fazer, traveste desejo de amor, mas – alguém se surpreende com isso? – vemo-lo tratar seus seres “amado” como se fossem bifes. E monta-se uma verdadeira “churrascaria existencial” com nome de ONG filantrópica...
O ótimo é inimigo do bom. Seria ótimo se todos nos amássemos uns aos outros, não? Pois é, mas, se a primeira conseqüência do imperativo de amar é uma endêmica perversão do uso da palavra amor, a segunda das conseqüências desse imperativo é a de ele funcionar como uma espécie de “boi para piranha” – aquele que os boiadeiros jogam em um lugar do rio para que, enquanto as piranhas o devoram, o resto da manada passe a salvo ao largo dali. Com efeito, enquanto os indivíduos estão ocupados com tentar entregar o que não podem – ou seja, amarmo-nos todos uns aos outros – não podem ocupar-se de entregar o que poderiam – ou seja, respeitarmo-nos todos uns aos outros.
Sobre esse segundo ponto, foi publicado, no exemplar de 8 de janeiro de 2003 da revista VEJA, uma interessante crônica de Stephen Kanitz, entitulada “Respeitai-vos uns aos Outros”. Encerro este “DIÁLOGO” transcrevendo alguns trechos retirados dali:

“ ‘Amai-vos uns aos outros’ (João 13, 34) é um comando religioso claro e inequívoco, mais conhecido do que os dez mandamentos. É um mandamento exigente, difícil de cumprir. Se a paz mundial depender da incorporação desse valor, o futuro não será muito otimista. ... Respeitar as nossas diferenças como seres humanos, nossas culturas, nossas religiões e nossos tiques nervosos é bem diferente de amar a cultura, a religião e os tiques nervosos do próximo. ... Nunca ouvi um líder negro exigir ou pedir o amor dos brancos. O que ouvimos das lideranças é um pedido de mais respeito.” E, após haver salientado que “podemos perfeitamente respeitar uma pessoa diferente e estranha” sem que, para isso, precisemos amá-la, o autor termina: “Vamos começar o ano de 2003 com uma meta mais light, menos exigente. Vamos começar respeitando-nos uns aos outros”. Assino embaixo, mas parece que mal começamos...

De passagem, o diálogo acima é real. Aconteceu comigo.

sexta-feira, setembro 08, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XVII: DEMISSÃO

O diálogo que segue ocorreu de fato. Travou-se entre mim e uma funcionária de minha clínica:

LUÍS CÉSAR: — Mônica, não estou satisfeito com o fato de que você XYZWJ.
MÔNICA (funcionária, bastante eficiente, mas também bastante malcriada): — Se o senhor não está satisfeito com o meu trabalho, então, me despeça.
LUÍS CÉSAR: — Você está com vontade de pedir demissão?
MÔNICA: — Eu, não!
LUÍS CÉSAR: — Então, vamos combinar assim: quando você estiver com vontade de pedir demissão, você vem falar comigo e pede demissão; quando eu estiver com vontade de demiti-la, eu chamo você e a demito. Por enquanto, estou apenas com vontade de lhe dizer que não estou satisfeito com o fato de que você XYZWJ. Fui claro?

E minha eficiente, embora todo-orgulhosa funcionária, saiu mansa e parou de XYZWJ.

O que podemos aprender aqui?

No diálogo intitulado “Maionese”, o quinto publicado nesta coluna, assinalei que um dos princípios da comunicação adequada havia sido enunciado por Nerso da Capitinga, personagem da Escolinha do Professor Raimundo, de maneira concisa e eficaz: “Eu é eu e o sinhorr é o sinhorr”!

Vivemos em uma cultura com excessiva “promiscuidade existencial”, em que pessoas se dão ao direito de dizer aos outros (detalhe: sem serem perguntadas) o que devem ou não fazer. E não é raro que, numa situação como a relatada acima, a pessoa que sofreu a invasão, sentindo-se agredida, reaja de maneira irracional, agindo, não segundo a sua vontade, mas em função da provocação do outro. Eu não queria – pelo menos naquele momento (mais tarde, acabei preferindo fazê-lo) – demitir a Mônica, mas poderia tê-lo feito, se tivesse reagido de maneira impulsiva a sua tentativa de tomar para si uma decisão que só a mim cabia. Fico satisfeito de, naquele momento de confrontação, ter sido capaz de distinguir com clareza quem era eu e quem era ela.

Aliás, o que será que queremos dizer quando afirmamos que fulano é uma pessoa distinta? Sou inclinado a acreditar que, conscientes ou não disso, queremos é dizer que tal pessoa é capaz de distinguir – ou seja, diferenciar – quem é ela e quem são os demais, não invadindo o espaço de decisão que pertence aos outros, nem permitindo que invadam o seu.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XVI: RESISTÊNCIA E RESISTIDO (II)

Afirmei anteriormente que deveríamos evitar reagir a comunicações do tipo:

FULANO: — Estou com dificuldade de dizer uma coisa para você... (hesitante)

Com respostas do tipo:

BELTRANO: — Ué, pode falar!!!... (seguro e enfático)

E por quê? Porque insistir para que a pessoa fale o que declarou estar com dificuldade de falar gera tensão e mutas vezes, confusão, já que estamos sugerindo que ela atropele sua dificuldade (a resistência) para nos comunicar o que deseja (o resistido). A despeito disso, a reação de BELTRANO é absolutamente corriqueira em nossa cultura e, dificilmente, encontraremos um BELTRANO que nos responda dizendo: “Você tem idéia de que por que você está com essa dificuldade”?
Aliás, bem ao contrário. Freqüentes vezes tive pacientes cujas dificuldades de, durante suas sessões, se expressar franca e livremente eram provenientes de haverem passado por experiências do tipo:

FILHO (com jeito de assustado, acordando o pai em plena madrugada): — “Pai, eu tive um problema e preciso falar com você, mas estou com dificuldade...”
PAI: — “Puxa, meu filho, você pode falar pra mim qualquer coisa, que esteja afligindo você! Sem problema! Eu sou seu pai e estou aqui pra lhe dar apoio e lhe ajudar. Pode falar!”
FILHO (violentando sua própria resistência): — Bem, pai, eu peguei seu carro na caragem, saí nele com meus amigos, e dei uma batida no carro de uma dona...
PAI (aos berros): — “P. Q. P.! EU JÁ LHE DISSE QUE EU NÃO QUERO QUE VOCÊ DIRIJA AQUELE CARRO SEM EU ESTAR AO SEU LADO! BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ, BLÁ,BLÁ, BLÁ, BLÁ!...”

Poderia o pai haver respondido de maneira mais adequada, quando defrontado inicialmente com a hesitação do filho em falar? Sim, haveria. Algo do tipo:

PAI: — “Está bem, filho. E por que você está com essa dificuldade?”

Ao que poderia seguir-se um diálogo do seguinte tipo:

FILHO: — “Porque eu acho que eu fiz uma grande besteira e você vai me dar uma tremenda bronca!”
PAI: — “Bem, pelo que estou vendo, é possível mesmo. O que houve?”

Óbvio que o desenlace não poderia ser o que chamamos de “agradável”, mas não ficaria marcada, no filho, a lembrança de que, quando se diz que “está tudo bem”, na verdade, “está tudo mal”.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XV: CEIA DE NATAL

PACIENTE : — Tive a maior briga com minha sogra e avisei a minha filha que não vou convidar a avó dela para nossa ceia de Natal!
LOGANALISTA: — Não entendi muito bem o “espírito da coisa”... Nós estamos em abril e você já está avisando a sua filha que não vai convidar a avó dela para a ceia de Natal?!
PACIENTE : — Claro! Ela é apaixonada pela avó, que mora em outra cidade, e quase só a vê quando ela vem passar o Natal conosco. Então, é bom que fique preparada para não vê-la!
LOGANALISTA: — Bem, eu acho que bastam os problemas que o mundo nos causa. Não tem sentido ainda nos causar mais.
PACIENTE : — Como assim? Eu tinha que deixar minha filha preparada!
LOGANALISTA: — Entendo e me parece razoável. Mas, para preparar sua filha, você não precisava se colocar em uma posição vulnerável.
PACIENTE : — Que posição vulnerável?
LOGANALISTA: — Você está bem aborrecida com sua sogra, não é?
PACIENTE : — Muito!
LOGANALISTA: — E é por estar aborrecida com ela que não quer vê-la em sua ceia de Natal, não é?
PACIENTE : — Evidente!
LOGANALISTA: — E como você pode ter certeza de que, daqui a oito meses, você ainda estará aborrecida?
PACIENTE : — Bem...
LOGANALISTA: — Não pode, não é?
PACIENTE : — É, não posso.
LOGANALISTA: — Digamos que, quando dezembro chegar, hajam ocorrido mudanças, internas ou externas, que dissolvam seu aborrecimento e que lhe seja perfeitamente possível convidar sua sogra, deixando sua filha feliz.
PACIENTE : — De fato, poderia acontecer isso...
LOGANALISTA: — Mas, da maneira radical que você abordou o problema com sua filha, ou, para provar que você faz o que diz, você não convida sua sogra e se sente culpada por estar fazendo sua filha sofrer desnecessariamente com a ausência da avó, ou passa por cima do que havia dito, convida sua sogra e fica passível de ouvir sua filha dizer “Ué, você não disse que não ia convidar a vovó?”, com uma carinha de quem faz pouco de sua capacidade de fazer o que diz.
PACIENTE : — Então, como eu poderia tê-la protegido, sem ficar nessa tal de “posição vulnerável”?
LOGANALISTA: — Vou dar uma sugestão. Que tal: “Minha filha, tive uma briga feia com a mãe de seu pai e estou muito aborrecida com ela. Como eu sei que você gosta muito dela, quero ir avisando você de que, se, quando chegar o Natal, eu ainda estiver me sentindo assim, não haverá condições de eu convidá-la para cear conosco”? Acho que, assim, você teria “preparado” sua filha, sem prejudicar seu “espaço de manobra” em sua relação com a mãe de seu marido.
PACIENTE : — É verdade, eu teria ficado com mais “espaço de manobra”.
LOGANALISTA: — Você poderia ter sido firme, sem ser radical.
PACIENTE : — Gostei. Aliás, estou começando a me lembrar de várias outras situações em que teria sido mais confortável para mim colocar-me dessa maneira. Uma vez, por exemplo, no meu trabalho...

E a paciente passou a relatar vários outros episódio de sua vida em que teria sido mais vantajoso usar o tipo de comunicação que seu loganalista lhe sugeriu.

domingo, julho 23, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XIV: ESCÂNDALO, INDIFERENÇA E NATURALIDADE.

Fragmento de uma sessão de psicoterapia familiar:

FILHO (dirigindo-se à mãe, em tom de protesto): — Mamãe, o que me deixa irritado é sua maneira escandalosa de reagir diante da mínima coisa que eu faça de errado! E muitas vezes na frente de outras pessoas que não têm nada que participar disso!
MÃE: — Ah, é? Faço isso porque eu me importo com você! Mas você prefere que eu não me importe, não é?! Pois então fique sabendo que não vou mais me importar! Daqui pra frente, você pode fazer a besteira que você quiser, que eu não vou falar nada!

Os primeiros automóveis tinham uma marcha – no máximo, duas – para frente e uma – quando tinham – para trás; as primeiras batedeiras e os primeiros liquidificadores elétricos tinham apenas as teclas de “liga” e de “desliga”. Atualmente os automóveis possuem até oito marchas para frente (será que mais?) e até duas (será que mais?) para ré e as batedeiras e liquidificadores apresentam uma infinitude de velocidades de operação. E qual o significado disso? O seguinte:

EVOLUÇÃO IMPLICA GRADAÇÃO DE RESPOSTA.

Respostas do tipo “tudo ou nada” são respostas primitivas, isso tanto em nível meramente mecânico, quanto em todos os demais níveis, incluído o nível psicológico.

“Eu bebo todas ou não bebo nenhuma”, “eu faço escândalo ou fico indiferente” são indicadores de funcionamento psicológico pouco maduro. E, note-se, nada impede que essas áreas não evoluídas de uma personalidade, funcionando segundo o Princípio do Tudo ou Nada coexistam com outras, em que encontramos perfeita gradação. Que fazer?

A experiência em clínica psicoterápica tem demonstrado que as dimensões de nossa personalidade que funcionam de acordo com o o Princípio do Tudo ou Nada são áreas em que o a pessoa atingida apresenta DEFICIENTE EXPRESSÃO VERBAL.

Ou seja, se sou CAPAZ DE FALAR com desenvoltura sobre o espectro de sentimentos que vai desde a mera cordialidade até o mais profundo amor, sou capaz de me comportar de maneira adequadamente gradual nessa dimensão de minha existência; por outro lado, se não tenho tal capacidade no que diz respeito ao espectro que vai da mera irritação ao profundo ódio, meu comportamento não é devidamente graduado no que diz respeito a essa dimensão.

E um “bom menino”, cuja educação e cordialidade era admirada por todos, pode subitamente – e para surpresa de todos que o conheciam – tornar-se um assassino de massa, como os retratados por Cooper no aclamado “Tiros em Columbine”...

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XIII: HOJE, EU VOU FALAR!

Roberto irrompeu de maneira inusitadamente violenta em meu consultório, vociferando:

Roberto: — Hoje eu vou falar!
Luís César: — Não sei se eu quero ouvir! – respondi, enfático.
Roberto: — Não??? – retrucou paciente, surpreso e murcho.
Luís César: — Pelo jeito, você já vem querendo falar isso há algum tempo.
Roberto: — É verdade.
Luís César: — Mas existe alguma coisa dentro de você não querendo que você faça isso.
Roberto: — É verdade.
Luís César: — Não me parece que “estuprar” um bloqueio desses dê bons resultados psicanalíticos...
Roberto: — Não?
Luís César: — Não. Dá rebote. Você entra aqui, corajosíssimo, violenta as partes suas que não querem que você fale, vai embora e, entre esta e a próxima sessão, ou tem um ataque de angústia, ou de depressão, ou se defronta com o agravamento de algum sintoma.
Roberto: — É sempre assim?
Luís César: — Vezes suficientes para que não me pareça inteligente arriscar.
Roberto: — Que fazer, então?
Luís César: — Falar sobre o que vem impedindo que você fale. Se você falar o suficiente sobre que obstáculo é esse, vai, de repente, perceber-se falando o que quer falar de forma espontânea e natural, sem ter que fazer nenhum ato de coragem.
Roberto: — Bem, é verdade que o que eu tenho para falar me faz sentir humilhado, blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Esse trecho de uma sessão real ilustra o princípio técnico-psicanalítico de que “a abordagem da resistência deve ter prioridade em relação à abordagem do resistido”. E daí? O que tem o leigo a ver com isso? Tem a ver com o fato de que nossas comunicações ficariam muito mais azeitadas se evitássemos no dia-a-dia, diálogos como o seguinte:

FULANO: — Estou com dificuldade de dizer uma coisa para você... (hesitante)
BELTRANO: — Pode falar!!!... (seguro e enfático)

Esse tipo de diálogo gera tensão e, fartas vezes, confusão, porque o sujeito que disse “pode falar” acaba, no fim das contas, se revelando incapaz de ouvir. É perfeitamente possível empregarmos em nosso dia-a-dia o que a prática ensinou aos bons terapeutas. Assim, por exemplo:

FULANO: — Estou com dificuldade de dizer uma coisa para você... (hesitante)
BELTRANO: — Você tem idéia de que dificuldade é essa?

Isso tornaria nosso cotidiano menos tenso e melhor.

segunda-feira, junho 26, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XII: ESTRATÉGIAS PSICOTERÁPICAS.

Para bem entender este diálogo, travado via Internet, é necessário ter lido o anterior, “O Caminho do Meio”. Em seqüência ao imeil ali transcrito, recebi outro, que igualmente transcrevo. Passarei a chamar a missivista de Fátima.

“Vejo que é fã de Freud. Quanto aos cérebros, se eu falar sobre eles com uma pessoa que desconhece totalmente o assunto "mente humana", taxam-me de louca, de doida, mas o certo é que trata-se de 2 cérebros trabalhando em conjunto, digamos que um é "meu" e o outro um invasor que tenta se apoderar do meu. As imagens passam muito rapidamente, de tal forma que não as consigo captar bem. Antes, isso me dava muito medo, pavor mesmo. Hoje, quando esse “outro cérebro vem, o que está espaçando cada vez mais, já não sinto tanto medo. Pelo contrário, tento mantê-lo, porque sinto que é algo da infância. Só digo uma coisa, passei a viver realmente minha própria vida de 2 anos para cá. Foi ai que despertei e começou outro pesadelo ainda maior.Numa outra oportunidade lhe escrevo e relato minha infância, aí com toda certeza vai compreender. Abraços mil. Fátima.” [Mais uma vez, para facilitar o entendimento e sem alterar o conteúdo, melhorei o estilo e eliminei alguns erros de pontuação e gramática do original].

Respondi assim:

“Fátima, o que lhe posso relatar a partir de minha experiência como loganalista é que esse seu "segundo cérebro" guarda memórias, emoções, desejos etc. que têm tido impedido seu acesso à palavra, em virtude de uma oposição provinda do "cérebro principal". Sua atual psicoterapia, como qualquer psicoterapia eficaz, deve estar aumentando a tolerância desse seu "primeiro cérebro" àquelas memórias, emoções etc, dando legitimidade ao gradual acesso desses conteúdos ao reino da palavra, razão pela qual as intrusões "terroristas" do “segundo cérebro” deverão, como já está ocorrendo, diminuir em freqüência e intensidade. Parabéns a você e a sua atual terapeuta. Abraço. Abraço. Assinado: Luís César.”.

Como exponho no capítulo oitavo de meu livro, “A Nova Conversa” – embora, ali, eu tenha usado outras denominações – há três grandes estratégias de atendimento psicoterápico: a de doutrinação, a catártica e a reconstrutora.
A primeira objetiva impedir que o paciente tenha certos pensamentos, substituindo-o por outros, de natureza oposta. Por exemplo, a um paciente com idéias suicidas tenta-se – usando uma variedade de técnicas, inclusive a hipnose – fazer que ele pare de pensar em dar cabo da própria vida, levando a pensar nas vantagens de ficar vivo. Essa estratégia, embora possa ter cabimento em situações muito especiais, tem muitos efeitos colaterais indesejáveis, essencialmente porque os pensamentos “expulsos” continuam ativos no inconsciente, podendo, de lá, produzir uma série de sintomas, inclusive o próprio suicídio. Esta estratégia também é empregada por não-profissionais, que nos tentam convencer a não pensar desta ou daquela maneira, mas sim da maneira que eles consideram “correta”.
A segunda cria situações especiais durante as quais o paciente descarrega, com grande intensidade emocional, os pensamentos perturbadores. O problema, aqui, é que, quando a terapia se limita a essa estratégia, embora possa oferecer um temporário alívio, deixa o paciente na eterna dependência de novas sessões de catarse, jamais recuperando de forma estável seu equilíbrio psicológico. Também essa estratégia, que por vezes chamo de “dos Festivais”, ocorre em ambientes não-profissionais, o mais das vezes grupais, como, por exemplo, disputas esportivas de grande carga e emocional, nos carnavais ou em encontros de natureza religiosa, como sessões de umbanda e assembléias chamadas “carismáticas”. Há situações de emergência em que, em contextos laicos ou profissionais, o “descarrego” catártico é indicado.
A terceira – essa dificilmente empregada pelo leigo – é a única que permite uma verdadeira reconstrução do psiquismo perturbado. Embora possa ser implementada mediante uma imensa variedade de técnicas, essa estratégia consiste essencialmente em permitir e incentivar o paciente a fazer uma aproximação “vacinal” dos conteúdos psicológicos perturbadores, de forma a adquirir gradual imunidade a eles, passando a conscientemente administrá-los. Essa, ao que tudo indica, é a estratégia que está sendo empregada, com sucesso, no tratamento a que Fátima está sendo submetida.

O QUE É UMA "NEUROSE" E A NECESSIDADE DO PSICOSSANITARISMO

Foi Freud quem "popularizou" o termo "neurose", distinguindo as "vegetoneuroses" (com outro nome, mais infeliz, é verdade) das "psiconeuroses". Entre essas últimas - que acabaram por monopolizar a denominação de "neurose" - são clássicas a neurose fóbica, a histeria e a neurose obsessivo-compulsiva.

O essencial desse tipo de doença psicológica é o que Freud chamou de "defesa":   por essa ou aquela razão, o sujeito tem interditada a expressão verbal (= repressão) de uma experiência emocionalmente relevante e tal experiência passa a ser expressada por meios não verbais (= sintomas psiconeuróticos).

O tratamento dessas afecções psicológicas, naturalmente, corresponde a fazer que o paciente recupere a enunciação verbal interditada, o que elimina a necessidade da expressão não verbal (= sintomática) da experiência.

Simplérrimo, não? Mas se é possível complicar, por que simplificar?  Se tudo ficar claro, podemos acabar sendo forçados a fazer alguma coisa...

Inclusive investir, através de entidades governamentais e não governamentais, no que deliberei compreensivelmente chamar de  PSICOSSANEAMENTO, ou PSICOSSANITARISMO, formando AGENTES DE SAÚDE PSICOLÓGICA, que, mediante ação pedagógica, ensinariam a população a EMPREGAR SUA FALA DE FORMA NÃO REPRESSORA, emprestando inestimável colaboração para a prevenção e tratamento de uma série interminável de sintomas - físicos e psicológicos - que têm origem na neurose. 

A contribuição de Freud não deve ficar restrita ao que ocorre dentro das quatro paredes de um consultório.  Como ele próprio afirmou, a maior missão da Psicanálise é tornar-se uma "Pastoral Leiga". 

A Nova Conversa, é uma tentativa de contribuir para que algo seja feito nessa direção.

sexta-feira, junho 16, 2006

NOSSOS SONHOS

Cumpre diferenciar entre dois tipos de sonhos: aqueles que nos satisfazem pelo simples fato de terem sido ou de estarem sendo sonhados e aqueles que só irão nos satisfazer no dia em que deixarem de ser o que são para se tornarem realidade. Sem fazer essa diferença, é difícil saber como lidar com eles.

sábado, junho 10, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XI: JÁ NO RASO...

Há cerca de um mês, recebi, via ORKUT, o seguinte imeil, com o título “Corrija se estiver errado”:

“Trabalho com saúde. Faz uns dois anos tive uma experiência bastante desagradável. Tive a sensação de que havia em mim 2 cérebros trabalhando em conjunto: um era o meu eu e o outro era um invasor que passava muito rápido, dando a impressão que queria invadir o meu eu. Isso me desesperou muito, achei q/ ia ficar louca e iniciei uma psicoterapia. Resultado: a psicóloga encaminhou-me a um psiquiatra, que me disse que isso é natural, que temos dois cérebros que trabalham juntos [nota minha: possível referência a nossos dois hemisféricos cerebrais], mas eu não acreditei e ainda não acredito. Esse cérebro, às vezes, ainda volta a invadir,mas com a psicoterapia aprendi a conviver com ele ,embora dificulte a minha vida em todos os sentidos. Assinado: Fulana de Tal.” [Nessa transcrição, para facilitar o entendimento, mas sem alterar o conteúdo, melhorei o estilo e eliminei alguns erros de pontuação e gramática do original]

Não conheço a pessoa que me enviou essa mensagem, nem tenho condição de avaliar se se tratava de um trote – com a possível intenção de testar como eu responderia – ou se, não sendo, estaria destorcida a descrição que fez a missivista do comportamento do psiquiatra que a atendeu. Não me pareceu, contudo, haver nenhum prejuízo em responder da maneira que responderia caso não fosse uma brincadeira e a descrição estivesse correta. Nesse último caso, minha resposta poderia fazer algum bem, caso contrário, não iria fazer mal. Portanto, falei assim:

“Parece que esse psiquiatra que lhe atendeu passou ao largo do que é o seu real problema. Admitamos, para fins de argumentação, que tenhamos dois cérebros e, como disse ele, esses cérebros trabalhem juntos. Pois bem, tenhamos 2, 3, 4, 22, 407 ou 5000 cérebros, você já viu alguma pessoa afirmar que está se sentido “invadida” por um deles, que isso "a deixou desesperada", que "achou que ia ficar louca" ou que tal fato lhe "dificultasse a vida em todos os sentidos"? É óbvio que não! Se você vai ao médico e lhe diz que seus dois pulmões estão doendo, você vê algum cabimento em o médico lhe responder que "isso é natural” e que, realmente, “temos dois pulmões que trabalham em conjunto", dispensando-a em seguida com uma tapinha nas costas? Evidente que não! O problema, nesse caso, não é termos, ou não, dois pulmões. O problema é que eles ESTÃO DOENDO! Por isso, não desista de encontrar alguém que leve a sério sua dor e se disponha a lutar junto com você para vencê-la. Abraço. Assinado: Luís César.”

Continuemos supondo, ainda para fins de debate, que não se tratava de um trote e que o comportamento do profissional em pauta não foi distorcido. Tal suposição não seria absurda. Se vemos, na área da saúde física, ocorrerem operações em que se retira do paciente seu rim saudável, deixando-o com o doente, se vemos outras em que, após suturar o paciente, se deixam instrumentos cirúrgicos dentro dele, por que, na área da saúde mental, inexistiriam despautérios de igual porte? Despautérios da mesma estirpe que, em minha longa vida profissional como terapeuta, tive o desprazer de presenciar ou de ouvir relatados?
Mas o objetivo central deste meu texto é ilustrar como, para não ouvir alguém, à erro de sermos PROFUNDOS DEMAIS, abordada no “DIÁLOGO” anterior, podemos acrescentar outro, o de sermos RASOS DEMAIS.

sexta-feira, junho 02, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS X: NO FUNDO...

A nos inspirarmos em Nélson Rodrigues, podemos construir uma proveitosa classificação dos idiotas. Há-os de dois tipos: (a) o primeiro, de “idiota da objetividade”, foi proposto por aquele teatrólogo e (b) o segundo, de “idiota da subjetividade”, proponho eu. Exemplo do primeiro tipo:

FILHO: — Mãe, estou tão deprimido!
MÃE: — Meu filho, mas você ALMOÇOU DIREITO?

Para o “idiota da objetividade” há SEMPRE – e não é sua referência ao objetivo que o torna idiota, é o SEMPRE! – uma razão concreta – não ter almoçado, não ter dormido direito, estar com uma unha encravada etc. – para justificar nossas crises existenciais.
Passemos ao segundo tipo de idiota. Desse, a melhor ilustração que conheço encontrei em uma piada sobre psicanalistas. Dois deles se cruzam no pátio de uma instituição psiquiátrica:

PRIMEIRO PSICANALISTA: — Olá fulano, bom dia!
SEGUNDO PSICANALISTA: — “Bom dia?!” O que é que você QUER DIZER COM ISSO?

Aqui, a explicação é SEMPRE – e, mais uma vez, o problema não está na natureza da explicação, está no SEMPRE! – de tipo subjetivo – se “dermos mole”, é capaz de ocupar nosso tempo tentando nos tentar convencer que nossa unha encravada é conseqüência da ativação de nosso Complexo de Édipo. Como vemos, a idiotice nos ameaça por todos os lados. Com dizem os ingleses: “There’s no fool-proof rule”. Seja: não há regras à prova de idiotas. Mas há especializações. Cientes disso, cada um pode pôr-se em alerta contra o tipo de idiotice que mais tende a empregar: engenheiros (e homens!) estão mais expostos a se tornarem idiotas da objetividade; psicanalistas (e mulheres!) perigam sê-lo da subjetividade. Como meu problema não é a engenharia, voltemo-nos sobre a área a que me dedico, a Loganálise (uma variação da Psicanálise). Uma das preocupações dessa variação é repassar para o cidadão comum informações preciosas sobre o funcionamento da mente que ainda não foram devidamente absorvidas pelo público em geral. Seria extremamente útil que esse público fosse capaz de detectar quando o psicanalista incorreu no erro a que sua profissão mais lhe incita para que dele se possa defender. O caminho a percorrer é longo, mas, como ensina o Oriente, o início de uma longa caminhada é feito por um passo. Ensaiemo-lo.
O diálogo que segue é real. Ocorreu durante o atendimento psicoterápico de uma paciente que, desde menina, atraia o olhar concupiscente dos homens, tendo, à conta disso, sido por duas vezes vítima de estupro:

MÔNICA: — Estou cansada desse tipo de atração que eu exerço sobre os homens! Cara, eu não agüento mais! É um nojo! Não sei como me proteger disso!
TERAPEUTA: — Mônica, NO FUNDO, você se sente é vaidosa de atrair os homens.

Pronto, o analista não soube se proteger e caiu na esparrela de agir como um idiota da subjetividade, deixando de ouvir a emoção que, naquele momento, sua paciente tinha necessidade de comunicar! A paciente em tela, após aquela “interpretação”, foi tomada pela culpa, afastou-se do convívio social (“Eu me sentia como um caramujo”, disse ela) e terminou por abandonar a terapia. Uma terapia eficaz permite que o paciente experimente vívidamente as emoções que, a cada momento, estão na SUPERFÍCIE de sua consciência. Passada essa experiência, a que estava mais NO FUNDO vem para a superfície, para ser também experimentada. Ninguém VIVE no fundo de si mesmo!

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS IX: O CONCRETO E O FIGURADO

Atendi uma paciente de seus trinta anos que, entre várias queixas, tinha a de sentir câimbras na mão, que estavam se tornando cada vez mais fortes, quando se punha a escrever. Durante a análise, lembrou-se do seguinte episódio, até então de todo esquecido:
Quando Marília – chamemo-la assim – tinha por volta de 4 anos, sua mãe, ao passar pela pela sala, viu-a sentada no chão, rabiscando alegre e abundantemente a agenda de trabalho do pai. A mãe não lhe bateu. Apenas aproximou-se dela, tirou-lhe a agenda das mãos e, profetizou:

MÃE: — Minha filha, seu pai vai te matar!.

Em seguida, voltou para seus afazeres. Marília foi para o seu quarto e agachou-se em um canto. Tinha tomado à letra as palavras da mãe e ali ficou, petrificada, esperando a morte que ocorreria quando seu pai chegasse. Não ocorreu. Continuou esperando no dia seguinte. Não ocorreu. E no dia seguinte e no dia seguinte... Aos poucos deixou de esperar conscientemente o ataque do pai, mas havia-se transformado de uma criança extrovertida e leve em uma criança introvertida e pesada. A partir do resgate dessa memória – e do de outras experiências de medo que enfrentou – suas caimbras começaram a regredir até desaparecerem de todo, juntamente com outros sintomas – mormente de natureza claustrofóbica – que não analisarei aqui porque, hoje, meu objetivo é apenas ilustrar a extrema concretude que a escuta infantil pode atribuir a palavras que nós, adultos, empregamos em um sentido meramente figurado. Saber disso pode nos fazer evitar, em nossas comunicações com as crianças, determinados tipos de comentário. Exemplifico.
Quando ministrei uma série de palestras sobre Loganálise para o corpo docente de um CIEP situado em uma área extremamente conturbada do Rio, onde pais e mães, tratam seus filhos com extrema rudeza e violência, uma professora relatou seguinte diálogo, mantido com um menino que, no terreno baldio que circunda a escola, ela encontrou ajoelhado, ao lado de um cavalo, segurando uma de suas patas dianteiras, tentando fazê-lo com ela rabiscar o chão:

PROFESSORA: — Que é isso que você está fazendo, menino!
JOÃO: — Estou tentando ensinar este cavalo a escrever.
PROFESSORA: — Meu filho, animal não escreve!

Eu sabia que o menino estava enfrentando dificuldades em seu processo de alfabetização e confesso que não consegui escapar, dada a concretude da escuta infantil a que acabamos de nos referir, à não tão mirabolante hipótese de que, no ambiente inóspito em que vivia, frente a suas dificuldades de aprendizagem, aquela criança já teria ouvido algum comentário como “Você é um animal! Nunca vai aprender nada!” e que tentar “alfabetizar” o cavalo era uma tentativa original, não obstante canhestra, de testar se – ou de provar que – “animais” também aprendem a escrever. Essa minha hipótese pode ser uma grande bobagem e servir apenas como mais uma ilustração da aludida concretude. Mas ainda assim, por via das dúvidas, eu não lhe teria dito o que lhe disse a professora...

segunda-feira, maio 01, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS VIII: KÜBLER-ROSS

Elisabeth Kübler-Ross é um nome para não ser esquecido. Formou-se em medicina na Universidade de Zurique em 1957. Transferiu-se para os Estados Unidos no ano seguinte. Especializou-se em Psiquiatria. No hospital em que passou a trabalhar em Nova Iorque, ficou chocada com o tratamento que era dado aos pacientes terminais. Pouco mais do que dez anos depois escreveu um livro – On Death and Dying ( = Sobre a Morte e sobre o Morrer ). E o que dizia ali?
Por primeiro, dizia que os pacientes terminais eram ABANDONADOS pelos médicos. Sua interpretação de por que isso ocorria? A de que médicos odeiam perceber a própria impotência e que, por isso, fugiam dos pacientes que não podiam salvar.
Por segundo? Por segundo, dizia que os pacientes que iam certamente morrer AINDA ESTAVAM VIVOS e era totalmente incabível abandoná-los.
E por terceiro? Por terceiro, sentou-se com eles, para ouvi-los. O que ela ouviu e relatou tornou-se um clássico para quem se importa com isso. Um clássico para se entender o luto.
Luto implica perda. Haverá maior perda do que a da própria vida? E o que vão perder, senão a vida, os pacientes terminais? E o que Kübler-Ross aprendeu e ensinou? Que, frente a iminência de perder a vida, passamos por cinco etapas, das quais quatro, que me parecem as mais relevantes, discutirei aqui: a primeira, negação; a segunda, ódio; a terceira, depressão; a quarta, conciliação.
Segundo a autora – e minha experiência como terapeuta faz-me concordar por completo com ela – defrontados com a possibilidade de perder nossa vida – recebendo, por exemplo, o diagnóstico de sermos portadores do HIV – a maneira menos dolorosa de encarar o terrível impacto produzido por isso implica atravessarmos as seguintes etapas:
Na primeira, negamos, dizendo: “Não, não é verdade! O próximo exame mostrará que houve algum engano!”
Na segunda, nos enfurecemos, dizendo: “Mas por que eu? Aquele canalha do meu vizinho que trai a mulher, rouba o condomínio e não trabalha não pega HIV e eu sim!”
Na terceira, após esbravejar muito, nos deprimimos, dizendo: “Meu deus, não vou mais poder fazer aquele doutorado em Cambridge que era meu sonho! Nem etc., etc., etc..”
Na última, após negar, odiar e deprimir, nos conciliamos. Como é isso? É como nos ensinou Kübler-Ross. Pensamos: “Bem, já que estou aqui e ainda não morri, por que não leio aquele livro que sempre quis ler?” E passamos a aproveitar todos os prazeres que ainda podemos aproveitar.
Imagino que pouquíssimos de meus leitores sejam pacientes terminais. Então por que Kübler-Ross? Porque a clínica psicoterápica demonstra que o padrão que ela descobriu trabalhando com esses pacientes se aplica a TODA E QUALQUER PERDA. Você perdeu uma caneta? Então, provavelmente, primeiro vai não acreditar que perdeu, depois vai ficar enfurecido com isso, depois ficar triste, depois... Bem, se tiver atravessado todo esse processo, acho que vai comprar outra.
Agora se você impedir que tal processo ocorra, em vez de comprar outra caneta, vai ficar chorando o resto da vida pela que perdeu. Ou, então, fazer o papel idiota de dizer que sempre odiou canetas...
[1] A ser postado no saite www.vyaestelar.com.br

quarta-feira, abril 26, 2006

PSICANÁLISE E FARMÁCIA

A Psicanálise, no futuro, será substituída por medicamentos? Se o for, certamente serão também as escolas. Pois ambas, tanto as escolas quanto a Psicanálise, lidam com INFORMAÇÃO. Entraremos, um dia, em uma farmácia e pediremos pílulas que nos ensinem a falar francês e outras que nos livrem de nossas especiais fobias? Em tal caso, iríamos assim nos dirigir assim aos farmacêuticos: "Por favor, o senhor tem um curso de Direito em pílulas? Quanto custa? E o de Engenharia? E o curso que ensina a não ter alergia a sogras? É mais caro?" Fantástico, não? Infelizmente, por enquanto, os medicamentos só podem REDUZIR O NÍVEL com que nos assomam certas emoções, INDEPENDENTEMENTE DO ESTÍMULO QUE AS DESENCADEIA. Não são capazes, por exemplo, de reduzir meu nível de angústia frente a CAMISAS VERMELHAS, a cor, por "coincidência", da camisa da pessoa que me estuprou. Por outro lado, são perfeitamente capazes de REDUZIR SIGNIFICATIVAMENTE MINHA ANSIEDADE frente a QUALQUER ESTÍMULO, inclusive o de estar sendo estuprado por alguém com camisa verde!
A Psicanálise lida com a adequação ou não dos DESENCADEANTES de determinadas reações emocionais; os medicamentos, com essas reações emocionais DE PER SI, independentemente do que as desencadeia.
Será mesmo que os medicamentos chegarão ao ponto de cumprir a função que hoje a Psicanálise se propõe a cumprir? Quem viver, verá.

quinta-feira, abril 06, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS VII: LUTO

Faz pouco tempo, fui procurado em minha clínica por uma senhora de 82 anos, com quem entabulei o seguinte diálogo:

SENHORA: — Doutor, soube de algumas coisas que o senhor tem falado nas palestras que deu na UNIRIO e quis vir aqui lhe fazer uma pergunta.
EU: — Pois não, faça.
SENHORA: — Não. Antes quero relatar algumas coisas.
EU: — À vontade.
SENHORA: — Doutor, quando eu tinha sete anos de idade, morreu uma pessoa de minha família. Os parentes vestiram-se de preto e as demais pessoas mantiveram uma distância respeitosa dos que estavam de luto.
EU: — Sim.
SENHORA: — Depois, quando fiz dezoito, morreu outra. Percebi que poucos se vestiram de preto. A maioria dos homens, por exemplo, colocou apenas uma tarja preta na lapela de seus ternos. Mais uma dúzia de anos, e morreu outra. Aí, nem tarja na lapela. Pois bem, eu casei aos dezessete anos. Meu marido foi o único homem de minha vida e eu fui extremamente feliz com ele, que faleceu faz quatro meses. Um mês depois, nosso único filho se suicidou. E as pessoas estão me pressionando para que eu não fique triste, não chore, me distraia e “fique bem”. Agora eu posso fazer a pergunta.
EU: — Qual é a pergunta?
SENHORA: — É a seguinte: o que houve com as pessoas? Eu estou maluca ou TODO MUNDO FICOU IDIOTA?
EU: — Não, minha senhora, a senhora não está maluca, TODO MUNDO FICOU IDIOTA.
SENHORA: — Ah, eu já desconfiava. Só queria confirmar. Obrigado, doutor.
E a velhinha, que, por tudo que me relatou, havia vivido uma vida feliz e saudável, nunca mais voltou a meu consultório... E, no que diz respeito à própria saúde, ela tinha razão: só podendo sentir completamente a dor de nossas perdas podemos seguir inteiros nossa caminhada. Voltarei sobre isso.

terça-feira, março 14, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS VI: SISTEMA NERVOSO

Tive uma empregada – chamemo-la aqui de Regina – que, embora de todo iletrada, tinha lá suas vocações filosóficas. Uma vez, entrei na cozinha e ela, com uma batata semidescascada na mão, estava estática, olhar perdido no infinito. Ao perceber que eu havia entrado, iniciou o seguinte diálogo.

REGINA (recuperada do transe): — Doutor, todas as pessoas tem sistema nervoso?.
EU: — Sim, Regina, todas as pessoas.
REGINA: — E por que ninguém tem SISTEMA CALMO?
EU (tentando recuperar-me do impacto da pergunta): — Não sei, minha filha. Mas você tem razão. Seria bem melhor que as pessoas tivessem um sistema CALMO!

A que vem aqui esse diálogo? Vem a propósito do fato de que freqüentemente me perguntam o que é saúde mental. Essa pergunta pode ser respondida em vários níveis, uns mais sofisticados do que outro. Comecemos por um nível relativamente sofisticado e, em seguida, voltamos à Regina. Nesse nível relativamente sofisticado, eu falaria assim:

SAÚDE MENTAL (HUMANA) = capacidade de, mediante a interação harmônica de intenções passíveis de serem verbalmente representadas, orientar o próprio comportamento de forma a, dentro das limitações impostas pelo meio ambiente, obter o máximo possível de prazer e de funcionalidade.

Mas façamos a coisa mais accessível:

SAÚDE MENTAL = ter suficiente jogo de cintura para unir o útil ao agradável.

Mas ainda não chegamos à Regina. Tentemos fazê-lo. Comecemos assim: temperatura é uma coisa, termômetro – ou seja, medidor de temperatura – é outra. Saúde mental é uma coisa, indicadores de saúde mental são outras. Há QUATRO grandes indicadores de saúde mental, sobre os quais ainda falaremos, mas um deles, certamente, é a SERENIDADE. Mas existe um grande engano quando se coloca a FELICIDADE como indicador de saúde mental. Querem ver? Recentemente, no Pinel, dialoguei com uma paciente que me disse como estava feliz com o fato de a filha que tinha nos braços – na realidade, uma boneca – estar tão saudável. Sua filha real tinha morrido, ainda pequena, de leucemia. Alguém é capaz de achar saudável a felicidade dessa moça? Há pessoas que ficam estressadas e ansiosas com uma promoção profissional e outras que são capazes de sofrer intensamente, mas com serenidade, a morte de uma filha. E um dos principais fatores que determina que o processamento – do prazer ou da dor – seja sereno (no léxico da Regina, sistema CALMO) ou ansioso (no idêntico léxico, sistema NERVOSO) é a capacidade de expressarmos verbalmente de forma adequada o prazer e a dor. Esse é o objetivo da Nova Conversa.

domingo, março 12, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS V: MAIONESE

Freud dizia que a Psicanálise não era uma Weltanschauung, leia-se, uma visão do mundo. Essa afirmação precisa ser qualificada. Mal entendida, pode parecer que a Psicanálise não se fundamenta em nenhum tipo de Filosofia. Fundamenta-se, sim. E um dos trabalhos da visão loganalítica da Psicanálise é demonstrar isso. A Psicanálise tem três grandes pilares filosóficos que – além de por Nietzsche – foram claramente enunciados por três grandes filósofos brasileiros, nomeadamente:

Primeiro princípio: “Quem não se comunica, se trumbica” (filósofo brasileiro responsável: José Abelardo Barbosa de Medeiros, vulgo Chacrinha);
Segundo princípio: “Eu é eu e o sinhorr é o sinhorr” (filósofo – note-se, “filósofo”, não “gramático”! – brasileiro responsável: Nerso da Capitinga, distinto colaborador, não da Academia Brasileira de Letras, mas da Escolinha do Professor Raimundo);
Terceiro princípio: “Faish partshi”, normalmente grafado “faz parte” (filósofo brasileiro responsável: o Bambam, do Big Brother, que teve uma menor longevidade do que os anteriores em nosso cenário intelectual; note-se que também era só filósofo, não era gramático).

Pois bem, é a aplicação dos três princípios expostos acima que nos permite construir diálogos saudáveis. Voltaremos várias vezes a esses princípios, exemplificando seu emprego, em diálogos específicos, alguns, como o abaixo, inspirados em imeils que me têm sido enviados por leitores desta coluna.

PEDRO (com Maria, em um supermercado): — Podemos levar maionese, se você quiser.
MARIA: — Não sei se eu quero maionese.
PEDRO: — Mas, se você quiser, podemos levar. Você quer?
MARIA: — Já disse que não sei. Você quer?
PEDRO: — Eu estou perguntando se você quer.
MARIA: — Já disse que não sei! Você quer?
PEDRO: — Eu perguntei se VOCÊ queria maionese.
MARIA: — Eu ouvi perfeitamente você me perguntar sobre se EU queria maionese e lhe respondi que EU NÃO SEI SE QUERO MAIONESE. Então vou acrescentar o seguinte: não estou pensando em maionese, não quero pensar sobre maionese, se VOCÊ quiser levar maionese, VOCÊ leva a maldita maionese e se não quiser deixa a maldita maionese aqui. Aliás, acabei de chegar á conclusão de que EU odeio maionese, de que nunca mais vou comer maionese, nem conversar com pessoas que FALAM SOBRE MAIONESE! Está claro assim?

E Pedro, que não conseguiu assumir que ELE estava querendo levar a maionese, deixou-a no supermercado. A aplicação do princípio “eu é eu e o sinhorr é o sinhorr” teria poupado tal dissabor. Em tempo: “disSABOR”, aqui, significa mais do que FALTA DE MAIONESE.

segunda-feira, fevereiro 27, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS IV: O SENHOR PROCÓPIO

Temos falado sobre a QUALIDADE de nossos diálogos, em especial sobre o quanto eles promovem ou não a saúde psicológica. Falemos, hoje, sobre os CONTEXTOS em que esses diálogos ocorrem. Para isso, inventemos uma personagem, o Dr. Procópio, provecto e bem sucedido advogado. Aparelhados dele, inventemos também duas cenas.

CENA I

Dr. Procópio entra esbaforido no elevador do prédio onde há anos trabalha, elevador já quase repleto e preste a partir, no qual se trava o seguinte diálogo:

ASCENSORISTA: — Bom dia, Dr. Procópio! Tudo bem com o senhor?
PROCÓPIO (no repleto elevador): — Não! Nada bem! Descobri, esta manhã, que, há muito tempo, minha mulher está me traindo com o vizinho e que meu filho e todo o prédio em que eu moro sabem disso!

Pareceu bem? Imagino que não. E por quê? Devido ao princípio sustentado pelo seguinte dito popular: “Mal educada é a pessoa a quem se pergunta como ela vai ... E ELA RESPONDE!”

Mas não abandonemos Procópio. Passemos à segunda cena.

CENA II

Nela, o nosso protagonista, nesse mesmo dia, se desloca para uma sessão de análise, com jovem e guapa terapeuta, onde se trava o seguinte diálogo:

TERAPEUTA: — E então, quais são as novidades?
PROCÓPIO (avexado com a possibilidade de que a bela terapeuta, que lhe atrai enquanto mulher, o considere um otário): — Tudo bem! Estou só com um pouco de dor de cabeça... (e mantem-se em silêncio até o fim da sessão).

ANÁLISE

Comparemos as cenas I e II. Tudo errado? Sem dúvida, tudo errado. E por quê? Porque a comunicação eficiente exige, antes de tudo, que saibamos diferençar os CONTEXTOS INTERPESSOAIS em que estamos inseridos. Dr. Procópio não foi capaz de fazer isso: expôs sua vida íntima onde não deveria e encobertou-a onde deveria tê-la exposto. Coisa rara? Nem um pouco! E por quê? Bem, isso irá ficando claro ao longo destes “DIÁLOGOS”.

sábado, janeiro 28, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS III: 'ARE YOU OK?'

PEDRO (em um supermercado, visivelmente irritado, reclamando de uma falha na entrega de mercadorias): — Blá, blá, blá! Blá, blá, blá! Blá, blá, blá! ...
FUNCIONÁRIO DO SUPERMERCADO: — Mas doutor, o senhor NÃO PRECISA ficar chateado assim!
PEDRO: — Mas, SE EU QUISER, eu posso?
FUNCIONÁRIO DO SUPERMERCADO: — Claro! Claro!
PEDRO: — Então, EU QUERO! Blá, blá, blá! Blá, blá, blá! Blá, blá, blá! ...

É fundamental que defendamos o DIREITO INCONDICIONAL de nos aborrecermos. Um dos maiores cânceres culturais da atualidade é o tipo de literatura de auto-ajuda – aliás, o mais difundido dentre eles – que manda você estar sempre OK! Um conhecimento mínimo das descobertas da Psicanálise é capaz de nos fazer entender como a obrigação de estar sempre OK é a origem de um sem-número de sintomas, entre os quais se alinham – ao lado de úlceras, infartos, insônia, depressão, impotência sexual, distúrbios da aprendizagem etc. – os assassinatos em massa do tipo abordado em “Tiros em Columbine”, típicos dos EUA, país do OK!
Assassinatos em massa são um fenômeno que, de fato, merece análise. O perfil desse tipo de crime é absolutamente singular. A maior parte dos crimes é cometida à noite, os assassinatos em massa são cometidos de dia; a maior parte dos crimes são vendetas pessoais ou tem por objetivo o lucro material, os assassinatos em massa são grandemente impessoais e não geram lucro material; a maior parte dos crimes é cometida pela população de baixa renda, a maior parte dos assassinatos em massa é cometida por membros de uma população de renda bem mais alta (a família de um dos dois meninos assassinos de Columbine tinha sete carros em sua garagem!); cometido o crime, a maior parte dos infratores tenta escapar das mãos da justiça, os que perpetram assassinatos em massa ou se entregam (alguns com uma expressão claramente radiante) ou se suicidam! Acrescente-se que parentes, vizinhos e amigos costumam expressar grande espanto quando tomam conhecimento do massacre, pois são unânimes em afirmar: “Mas ele era um menino tão educado, tão bonzinho!”
Pois é! Esse menino “tão educado, tão bonzinho” não se permitia expressar seu aborrecimento em um supermercado! Estava sempre OK! Até que um dia...
Os episódios de assassinato em massa – assim como as já mencionadas úlceras, infartos, distúrbios da sexualidade, da capacidade de aprendizagem etc. – são rebentos perversos da obrigação de estar OK. Acho bom protegermos nosso direito de ficar aborrecidos. Estaremos protegendo não apenas a nós mesmos; estaremos protegendo também aos outros.

domingo, janeiro 15, 2006

LULA E A LITERATURA DE AUTO-AJUDA

(Entrevista dada a Cláudia Jones, da Rádio Roquete-Pinto, em 15/01/06)
O objetivo de meu livro, A Nova Conversa, é primeiro, criticar o que está sendo feito, na cabeça das pessoas, pela atual “literatura de auto-ajuda” e, segundo, mostrar o que deveria estar sendo feito. Mas como fazer isso de maneira simples e clara em uma entrevista de dez minutos? E, quando me pus essa pergunta, o que me veio à mente foram as palavras do prefeito de Águas Lindas, em Goiás, sobre a “Operação Tapa Buraco”, do governo Lula. Disse ele: “Isso é uma palhaçada. Fazem esse serviço porco e lambuzado e, quando der a primeira chuva, vai tudo embora.” Pois é isso que meu livro denuncia: a maioria esmagadora dos atuais livros de auto-ajuda não passa de uma gigantesca “Operação Tapa Buraco” psicológica: um mero recapeamento de otimismo artificial onde seria necessário mexer na estrutura da mente. E um livro pode ajudar ao leitor, por si só, a aperfeiçoar essa estrutura? Minha experiência tem demonstrado que nem a todos – algumas pessoas têm que recorrer à ajuda pessoal de um psicoterapeuta – mas a muitas pessoas, sim. E mesmo “turbinar” o ritmo de pessoas que se encontram em tratamento. Vou tentar ilustrar a natureza da parte “positiva” de meu livro, ou seja, aquela que não apenas critica mais sugere soluções. As queixas mais comuns de pessoas que procuram ajuda psicoterápica são angústia e depressão. Uma pessoa saudável, quando energizada por processos internos ou externos sente prazer e é estimulada a agir. A pessoa com bloqueios psicológicos, ao ser pressionada por essa energia, em vez sentir prazer e ser estimulada à ação, sente primordialmente angústia, e freqüentemente, mecanismos inconscientes seus tentam bloquear essa pressão, gerando uma dePRESSÃO e a alternância entre depressão e angústia a precipita no pior dos mundos. Se a tentativa de fugir à angústia é uma das principais fontes psicológicas da depressão (há, naturalmente, outras fontes, de natureza orgânica), poucas pessoas dão atenção ao fato de que a angústia está associada a um estreitamento da respiração (a palavra “stress” vem do latim “strictu”, seja, “estreito”) e, menos ainda, que bloqueios da fala, que depende nuclearmente do respirar, geram tal estreitamento, gerando angústia etc., etc.. Meu livro mostra técnicas que uma pessoa relativamente saudável, como são a maioria das pessoas, pode empregar para romper esses bloqueios. E isso não é mera Operação Tapa Buraco.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS II: O "É QUE".

CLÁUDIA (dirigindo-se, irritada, ao garçom, que já conhecia há tempos): — Caramba, João, fiquei chateada com o jeito que você jogou a pizza dentro de meu prato e do prato de meu marido!
JOÃO (que ficara desconcertado e inconformado com o conteúdo e o tom do comentário de Cláudia e que, depois de rodar meio sem rumo pelo restaurante, volta à mesa): — Sabem de uma coisa, eu É QUE fiquei magoado com a maneira que a senhora falou comigo. Afinal das contas, eu conheço vocês há muitos anos e sempre servi vocês com o maior carinho!
PEDRO (o marido): — Calma, cara! Sabe de uma coisa: tem mágoa suficiente para todo mundo! Podemos todos ficar magoados: eu, você, ela... Se o gerente também quiser vir aqui curtir uma magoazinha, também pode. Não vai faltar mágoa para ninguém.
JOÃO (algo perplexo e já mais calmo): — Bem..., então, desculpe.
CLÁUDIA (apaziguadora): — Está desculpado. Me desculpe também, se meu jeito de falar lhe magoou.

A expressão “É QUE” tem entradas absolutamente saudáveis e outras bastante doentias em nossa fala cotidiana. Nada há de errado em um diálogo como o seguinte:

FULANO: — Quem vai levar esta quentinha para o Dr. Roberto?
BELTRANO: — Ele É QUE vai!

Em outros momentos, contudo, como no diálogo entre Cláudia, Pedro e João, o “É QUE” comparecia com seu uso doentio. Como reconhecer isso e, coerentemente, desmanchar esse uso, como fez Pedro? O “É QUE” é empregado de maneira doentia quando, numa relação entre pessoas, tenta estabelecer um MONOPÓLIO do direito de expressar uma emoção ou um desejo: só uma pessoa, numa determinada relação interpessoal, É QUE terá o direito de sentir mágoa, raiva, inveja etc.. As outras, não. Sutilmente, existe a tentativa de se estabelecer um reinado: quem ganhar será o rei e poderá falar. Suas palavras serão a verdade, serão “reais” (em português, não diferençamos “royal” de “real”, como fazem os ingleses, ou de “réal”, como fazem os franceses, povos campeões da democracia); os outros, serão “súditos”, ou seja, serão “sub-ditos”, ou seja, SERÁ DITO A ELES O QUE TÊM DIREITO, OU NÃO, DE DIZER. Pois bem, se quisermos que a democracia penetre nossas relações cotidianas, teremos que combater esse uso fascista do “É QUE”. E, para isso, é necessário pôr em prática um princípio da Loganálise: o ser humano não tem o direito incondicional de FAZER, mas tem o direito incondicional de SENTIR e de EXPRESSAR VERBALMENTE o que está sentindo. Quando o “É QUE” tenta operar sob sua forma doentia, ele sempre tenta se estribar na RAZÃO: eu É QUE tenho RAZÃO de me sentir magoado, você não. E segue-se uma discussão estéril, embate micro-político, cujo objetivo é estabelecer quem é rei – cujas palavras são “reais” — e quem é “sub-dito”, quem é “súdito”. Deixemos os debates sobre ter ou não razão para avaliações sobre o direito de FAZER; numa relação democrática, para ter o direito de DESEJAR ou de SENTIR, não é necessário TER RAZÃO. Tenho atendido famílias em que apenas um dos membros tem direito ao uso de certo tipo de expressão verbal. Numa delas, nenhum dos filhos podia fazer qualquer tipo de reclamação porque, com o enfático suporte do pai, a mãe era a única que tinha direito de expressar sofrimento: ela “É QUE” se dedicava, ela “É QUE”´trabalhava, ela “É QUE” etc., etc., etc. Resultado: filhos fazendo anos de terapia para recuperar as palavras que, em sua infância, lhes foi interditado enunciar.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTiCOS I: O PROBLEMA DA SOPA

PEDRO: — Meu bem, esta sopa está fria!
CLÁUDIA: — Eu sei que tudo que eu faço é mal feito! Talvez fosse melhor para você que a gente se separasse!
PEDRO: — Eu preferiria que você esquentasse a sopa...

O objetivo de minhas contribuições a este espaço é voltar nossa atenção para detalhes das comunicações interpessoais que, por serem desatendidos, impedem um manejo mais produtivo das relações entre nós, humanos. O formato que, por ora, escolhi para essas contribuições é descrever um pequeno fragmento de diálogo representativo de dificuldades de comunicação freqüentes em nossa cultura e, em seguida, explicitar a natureza dessas dificuldades e sugerir como lidar com elas. Nesse espírito, voltemo-nos sobre o fragmento acima.Um bom diálogo interpessoal – refiro-me, naturalmente, aos que dizem respeito a nossas relações íntimas e cotidianas, não a que tipifica uma aula de Matemática – é MICROSCÓPICO e, não, MACROSCÓPICO. Exemplifico: Afirmação macroscópica: — Você NUNCA me amou!Afirmação microscópica: — ONTEM, NA FESTA DE ANIVERSÁRIO DA ANA, eu me senti rejeitada quando você não me apresentou a seu chefe. O grande problema das afirmações MACROSCÓPICAS é que elas não oferecem condições para nenhum manejo eficaz do problema supostamente em pauta. Na verdade, de maneira geral, uma pessoa que, frente a afirmação de que uma sopa está fria, reage dizendo que “Eu sei que TUDO que eu faço é mal feito!” está consciente ou inconscientemente agindo de maneira desonesta: está tentando desviar a conversa de um universo microscópico em que a sopa está fria – e que pede a óbvia providência de que se a esquente – para um universo macroscópico em que é difícil divisar algo que, de fato, possa ser feito. Essa é uma armadilha freqüente nos diálogos que habitam nosso cotidiano. Naquele – em verdade, fictício – que relatei acima, Pedro consegue não cair nessa armadilha. Percebe a matreira passagem do nível microscópico para o macroscópico e volta para o primeiro. Isso não é comum. O mais das vezes, a partir do “Eu sei que tudo que eu faço é mal feito! Talvez fosse melhor para você que a gente se separasse!”, o que ocorre é o início de uma discussão estéril e infindável, que se repete monotonamente – muita vez diante de cansados filhos – ao longo de anos e anos, para um indiscutível prejuízo de todos. E da sopa.