segunda-feira, junho 23, 2008

Batatas e azeitonas

Outra de restaurante:

Estava, sem dúvida, lotado. Mas, a despeito da balbúrdia que detesto, deixei-me estar ali com uma amiga, bebericando e mordiscando, pedindo ora um chope para mim, ora outro para ela, ora uma porção de batatas fritas, ora uma de azeitonas, ora outro chope para mim, ora outro para ela, um para mim, outro para ela...

Certamente açodado pela avalanche de pedidos com que aquela montoeira de fregueses o acossava, o garçom que nos servia fez o que não cabia: perdeu a compostura e, exasperado a ponto de altear a voz, dirigiu-se a mim da seguinte forma:

GARÇOM (claramente irritado): — NÃO DÁ PARA O SENHOR PEDIR DE UMA VEZ O QUE O SENHOR QUER, EM LUGAR DE FICAR PEDINDO TODA HORA UMA COISA???!!!

LC: — Ô, amigo, me desculpe! Não sabia que lhe incomodava. Não se preocupe, não vai acontecer mais.

E afastou-se, com marcha firme, quase prussiana, aparentemente cheio da satisfação de se haver vingado do que lhe fizera o domingo. Continuei mordiscando, bebericando e conversando, até que, esvaziado meu copo – o de minha companheira estava ainda cheio – quis outro chope. Levantei-me, fui até o balcão, onde um dos proprietários do restaurante comandava o caixa, e dirigi-me a ele:

LC: — Eu queria mais um chope, um “garotinho” (giria carioca para chope pequeno), por favor.

PROPRIETÁRIO: — Onde está o garçom? Ele vai servi-lo!

LC (nisso, o garcom, com cara algo assustada, se aproximara do balcão e começara a ouvir a conversa): — De forma nenhuma! Seu garçom não gosta que se peçam chopes e aperitivos um de cada vez, e eu faço questão de não incomodá-lo.

PROPRIETÁRIO: — Mas, doutor...

LC (peremptório, para desespero do garcom): — Faço questão!

E, para radical desespero do garçom e profundo compungimento do dono, passei toda a noite levantando, indo ao balcão, pedindo uma batatinha, um chopinho, uma calabresa, um chopinho, uma batatinha...

Hoje em dia, quando entro naquele restaurante e esse garçom me vê, desaparece pelas entranhas da cozinha ou, quando não há escapatória, desdobra-se em rara gentileza e solicitude.

Comentários loganalíticos - psicanalíticos? Bem, como dizia Freud, via de regra, (a) as pessoas NÃO TÊM INTERESSE em contestar a validade de COMPORTAMENTOS BEM-SUCEDIDOS, por mais absurdos que sejam e (b) tentar fazer PERCEBER O ÓBVIO a alguém que NÃO O QUER PERCEBER é fazer PAPEL DE OTÁRIO.

Tornar absolutamente MALSUCEDIDO seu comportamento com pessoas das quais, afinal das contas, provém o seu sustento, deu pelo menos àquele garçom a oportunidade de se repensar.

Se tirou proveito dela não sei.

Lingüiças e salsichas

Uma de restaurante:

Em um restaurante que eu regularmente freqüentava, costumava pedir uma porção de lingüiça calabresa bem frita, como aperitivo para acompanhar meu chope. Ocorre que, desde uns bons trinta anos para cá, a qualidade – por vezes, também a quantidade – do que é servido em nossos templos gastronômicos vem decaindo de forma deplorável. Serve de testemunha a história de belos couverts em que se viam, por exemplo, opulentas azeitonas pretas apimentadas e que as viram substituídas por umas coisinhas mirradas, embora ainda pretas, que mais nos lembram cocô de cabrito.

Desse processo de decadência participou a calabresa, que, como outras lingüiças, foram sutilmente transformando-se em salsichas. Quando, pela primeira vez, fui vítima dessa mutação, chamei o garçom:

LC: — Amigo, isso não é lingüiça, isso é salsichão.

GARÇON: — Não, isso não é salsichão, isso é lingüiça!

LC: — Então, o senhor faz o seguinte: leve esta lingüiça com gosto de salsichão e me traga um salsichão com gosto de lingüiça!

O garçon escafedeu-se e, pouco depois, apareceu-me o gerente:

GERENTE: — Ô, doutor Luís César, desculpe! O senhor sabe: realmente, os fornecedores estão deixando decair a qualidade dos produtos que entregam. Mas a gente ainda tem da lingüiça que o senhor gosta, e ela já está sendo preparada para o senhor.

E o episódio, portanto, teve um final feliz: terminei por comer uma lingüiça com gosto de lingüiça...

Mas haveria algum comentário a ser feito, do ponto de vista da Loganálise (filhote da psicanálise)? Sem dúvida.

Nossa cultura tenta tapar nossa boca com QUATRO tipos de argumento. Um deles diz respeito a contestar a RACIONALIDADE, VERACIDADE, COERÊNCIA ou que o valha do que estamos falando, em situações que o que interessa é o que estamos SENTINDO ou QUERENDO.

Eu claramente não queria comer AQUILO – fosse um “nabo”, fosse “feijão”, “salsicha” ou “lingüiça” – e não me deixei cair na estúpida armadilha de ficar discutindo sobre a “real natureza” de algo que, simplesmente, não me apeteceu.

Incluído no Preço

Na hora de ajudar um paciente a colocar em palavras o que se passa dentro de si, um pouco de criatividade é algo bastante bem-vindo. Vejamos um exemplo:

PACIENTE: — Tô querendo falar uma coisa, mas estou com medo de ser injusta com você.

LC: — Tá incluído no preço, pode continuar.

PACIENTE: — Bem, eu estou achando que eu fiz blá, blá, blá, blá, blá, blá..., que me ferrou, porque me deixei influenciar por seu comentário de que blá, blá, blá, blá, blá, blá... Acho que, se você não tivesse falado aquilo, eu não tinha feito a besteira que fiz, e fico culpando você, embora, na verdade, você tenha dado apenas um exemplo. Talvez, se você não tivesse dado aquele exemplo, eu não tivesse agido daquela forma, mas, afinal das contas, você não me disse para eu FAZER nada, fui eu, não você, quem tomou a decisão e agiu de uma maneira que me prejudicou. A culpa, na verdade, é minha, mas eu fico culpando você.

LC: — Bem, mas você acha provável que, se eu não tivesse feito aquela intervenção, você não tivesse feito blá, blá, blá, blá, blá, blá..., o que lhe prejudicou, certo?.

PACIENTE: — Certo.

LC: — Gostaria de fazer dois comentários a respeito. Posso fazer agora, ou vou atrapalhar suas associações?

PACIENTE: — Pode fazer agora.

LC: — Obrigado. São os seguintes. Primeiro, temos uma certa tendência, em nossas relações interpessoais, de, frente ao fato de que 1+ 6= 7, e sete é algo indesejável, tentar descobrir que é o responsável pela ocorrência do 7, o 1 ou o 6. Ocorre que, por mais que 1 seja muito menor do que 6, a verdade, é que, sem ele, tanto quanto sem o 6, o 7 não teria ocorrido. Acho que é muito mais produtivo que o 1 e o 6 reconheçam sua participação no resultado final e, em vez de pedir que o outro deixe de entrar na equação, se encarregue cada um de ele próprio não o fazer. Essa é uma boa regra para nossas relações cotidianas e, por isso, a menciono aqui. Segundo, nossa relação não é uma relação cotidiana. A Psicanálise ocorre em um espaço VIRTUAL, não em um espaço REAL. Nesse espaço, que eu e você optamos por estabelecer, você tem todo o direito de achar que eu sou culpado ou inocente – seja eu ou não – seja incompetente ou competente – seja eu ou não – etc., etc., ao infinito. Por isso afirmei, algo galhofeiramente, que você me achar culpado “está incluído no preço”, na verdade, está incluído em nossa combinação.

PACIENTE: — Bem, isso me fez lembrar que blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Note-se que, além de haver conseguido fazer a paciente – tratava-se de uma mulher – retomar seu fluxo de comunicação, eu também transmiti a ela – quando lhe pedi licença para fazer meus comentários – que, para mim, é importante que esses comentários não interrompam tal fluxo, se ele já foi recuperado. Com efeito, freqüentemente, informo ao paciente de que gostaria de fazer algum reparo, mas que vou esperar o momento em que ele considere adequado que eu o faça. E note-se também o valor dado pela técnica *loganalítica (de loganálise filhote da psicanálise) à dimensão PEDAGÓGICA da relação: um paciente que entende melhor a natureza do processo psicoterápico – e meu comentário sobre a VIRTUALIDADE do espaço em que esse último ocorre visava a tornar mais preciso esse entendimento – é um paciente muito mais capaz de colaborar para o sucesso de seu tratamento.

SERVIÇO

Primeira aula gratuita do curso de Formação de Psicanalistas de Orientação Loganalítica

Treino

Eu já era graduado em Psicologia e, portanto, conhecia bastante a Psicanálise do ponto de vista teórico – especializei-me nela, terminando por ensiná-la na faculdade em que me formei (PUC-RJ) – quando fui procurar minha análise pessoal.

Passei por cinco psicanalistas, todos internacionalmente sacramentados, antes de encontrar um capaz de ouvir realmente seu paciente. Desses, três – repito, todos membros regulares de instituições psicanalíticas internacionalmente reconhecidas, eram totalmente surdos. Só sabiam repetir como papagaios interpretações absolutamente estereotipadas.

Como conhecedor da Psicanálise, logo detectei isso e naturalmente caí fora, com pena dos vários leigos que terão certamente ficado vários anos com eles, em tratamentos absolutamente estéreis. Já outro era extremamente capaz: fiquei sete anos em análise com ele, à razão de cinco sessões por semana. O restante... bem, esse, se não era um robozinho de interpretações prêt-à-porter, tampouco sempre escutava. Segue-se um exemplo dessa má escuta, ocorrida em uma sessão com esse último psicanalista, após uma pequena introdução sobre as circunstâncias em que essa sessão transcorreu.

Sempre levei profundamente a sério o processo psicanalítico. Ora, eu sabia que a tarefa do paciente era descrever, o mais honestamente possível, tudo que durante a sessão, venha a sua consciência, sem o quanto possível, proteger-se de seus pensamentos e, particularmente, SEM PRECISAR DELES PROTEGER O ANALISTA. O diálogo a seguir é de minha primeira sessão com esse analista em tela, a quem chamarei de Carlos.

LC (logo ao deitar no divã): — Caramba, você é feio pra burro!

CARLOS: — A função de analista não é ser bonito, é saber analisar.

Imagino que os que me acompanharam até aqui são capazes de avaliar como a resposta de Carlos foi inadequada e como teria sido muito mais produtivo algo do tipo:

LC (logo ao deitar no divã): — Caramba, você é feio pra burro!

CARLOS: — Qual a sua relação com a feiúra?

Mas o que pretendo particularmente enfatizar aqui é o que venho enfatizando em todos os meus escritos, conferências, etc., ou seja, que essa ABORDAGEM MAIS PRODUTIVA não deve ser RESERVA DE MERCADO de psicanalistas, mas ao contrário, ser empregada por todos nós nas relações não formais de nosso cotidiano, o que nos tornaria a todos regulares promotores de nossa saúde mental e da daqueles que nos cercam.

Os diálogos a seguir ilustram o emprego em nosso dia-a-dia, dos ensinamentos mais fundamentais da Psicanálise. Comecemos como os

Diálogos promotores de doença psicológica (recalcantes)

FILHO (de sete anos, falando de forma enfática): — Você NÃO GOSTA DE MIM!

MÃE: — Gosto sim, meu amor. Você é a coisa mais linda da mamãe!

Ou:
FILHO (de cinco anos, falando de forma enfática): — Você NÃO GOSTA DE MIM!

PAI: — Como não gosto de você! Quem é que trabalha o dia inteiro para você poder ter tudo que você tem: casa, roupa, comida, brinquedos? Que absurdo! Nunca mais repita isso!

E prossigamos com os:

Diálogos promotores de saúde psicológica psicológica (DESrecalcantes)

FILHO (de sete anos, falando de forma enfática): — Você NÃO GOSTA DE MIM!

MÃE: — Ah, é, filho? E por que você acha isso?

FILHO: — Porque blá, blá, blá, blá, blá, blá...!

MÃE: — Entendi.

FILHO (de sete anos, falando de forma enfática): — Mas você gosta ou não gosta?!

MÃE: — Bem, se não gosto, não percebo, mas vou pensar sobre o que você falou. Quem sabe você possa ter alguma razão?

FILHO: — Acho bom você pensar mesmo.

MÃE: — Combinado.

Ou:

FILHO (de sete anos, falando de forma enfática): — Você NÃO GOSTA DE MIM!

MÃE: — Puxa, deve ser chato achar que nosso pai não gosta da gente!

FILHO: — É chato, sim.

MÃE: — Imagino.

Via de regra, após diálogos desse segundo tipo, passa-se um tempinho, e a criança volta, leve leve, mostrando algum sinal de carinho em relação ao pai ou à mãe, como se dissesse: “Desculpe, mas eu estava precisando encenar a situação em que alguém não gosta de mim, para aprender a lidar com ela. Obrigado por ter entendido e não ter atrapalhado, O.K.?”

Hoje em dia, contudo, graças a cultura alienada em que vivemos, é muito pouco provável encontrarmos tanta sabedoria em um pai ou em uma mãe. Antes que tal ocorra, será necessário que os ensinamentos da *Loganálise se difundam sobre este surrado planeta, cujos abundantes recursos estão sendo malbaratados e destruídos pela incompetência dos que o ocupam.

*Loganálise: filhote da Psicanálise: pretende mostrar como o cidadão comum, em seu dia-a-dia, pode tirar proveito de conceitos como repressão, fixação, trauma e outros para promover sua própria saúde psicológica e a daqueles com quem se relaciona.

CURA

Eu tinha um paciente com intensa fobia de sair à rua. Tanta que, atendi-o algumas vezes em sua casa, antes de atendê-lo em minha clínica, para a qual ele vinha sempre acompanhado. Após cerca de quatro meses de atendimento, à razão de duas vezes por semana, chego na recepção e vejo que ele está sozinho. Subimos e transcorre o seguinte diálogo:

LC: — Não vi ninguém com você hoje na recepção.

CARLOS: — É, hoje eu vim sozinho.

LC: — E a fobia.

CARLOS: — Ué, passou. Desde depois da última sessão, na quinta-feira, até hoje, terça, que eu estou saindo pra todo canto, sozinho, sem sentir fobia nenhuma. Fiquei bom.

LC: — Ah, pode ficar doente outra vez.

CARLOS: — O quê?

LC: — Pode ficar doente outra vez. Em uma terapia que não é apenas paliativa, é reconstrutora, como a que fazemos aqui, existe uma correlação palpável entre a quantidade de trabalho feito – de associações, sonhos, lembraças produzidos – e o nível de melhoria. Esse desaparecimento radical e súbito de um sintoma intenso como era a sua fobia está totalmente desproporcional à quantidade de trabalho analítico que fizemos até agora. Esse tipo de melhoria ocorre quando estamos chegando perto de algo com que o paciente tem particular dificuldade de lidar. O sintoma desaparece, o paciente sai da análise e volta algum tempo depois porque o sintoma retornou, por vezes intensificado. Claro que eu dizer para você “ficar doente outra vez” não passou de uma maneira dramática de chamar sua atenção para isso. A conduta correta, no momento, é ficarmos quietos, esperando o que vai acontecer e nos prepararmos para uma série de sessões sem sonhos e sem lembranças e em que só virão à tona assuntos banais. Logo veremos se tenho ou não razão.

Li, uma vez, que um hospital canadense para pacientes com paraplegias de origem neurológica de origem neurológica pegou fogo. Algo como 5% dos pacientes ficaram subitamente curados e saíram correndo. Uma vez postos a salvo, a paraplegia voltou outra vez. O diagnóstico diferencial estava feito: a paralisia daqueles 5% era de origem histérica, não neurológica.

Esse tipo de mecanismo psicológico é a explicação para o comportamento de pessoas que “deixam tudo para a última hora”. Quando fica claro que não há alternativa: ou fazem o que têm o que fazer ou o prejuízo será, de fato, grande e inevitável, o MEDO de que isso ocorra faz entrar em ação forças defensivas que estavam quiescentes que bloqueiam as vias sintomáticas e desviam as energia psicológicas para o canais de uma ação adequada. Terminada a “emergência”, o sintoma volta outra vez.

É óbvio que, se o desaparecimento de um sintoma está baseado no medo (como, em nosso exemplo, o medo de morrer em um incêndio) basta passar o medo, que o sintoma volta outra vez. Como vimos no caso de Carlos, isso também acontece como resultado do próprio processo analítico: ao aproximar-se de recuperar fragmentos de sua experiência vital que provocam medo, o paciente fica subitamente curado e sai da análise. Passado o “perígo analítico”, o sintoma volta outra vez. Cabe ao terapeuta alertar seu paciente para isso.

Demissão

Mônica, a funcionária de minha clínica que já foi protagonista de um de nossos diálogos (clique aqui e leia), tanto aprontou, que acabei optando por demiti-la.

Foi assim:

LC: — Mônica, mandei o contador preparar os papéis de sua demissão.

MÔNICA: — Mas o que é que eu fiz de errado?

LC: — Nada.
MÔNICA: — Então por que é que eu estou sendo demitida?

LC: — Por causa disso. Todo mundo erra nesta clínica, só você, não. Isso está criando uma série de dificuldades de relacionamento entre membros da equipe e, naturalmente, é mais simples e razoável despedir você do que a todos que normalmente erram, o que, aliás, implicaria despedir também a mim.

Como efeito, ficou impossível trabalhar com a Mônica: era impossível conseguir que Mônica reconhecesse algum deslize no cumprimento de suas obrigações, sendo que, muitas vezes, ainda tentava transferir a culpa de seus desmandos para outro(s) funcionário(s) ou, até, para mim, o que, de fato, provocaca conflitos desnecessários nas relações entre os membros da equipe.

Ainda assim, minhas colocações no diálogo acima eram um teste. Eu não a despediria se, por exemplo, o diálogo tivesse continuado da seguinte forma:

MÔNICA: — Bem, na verdade, eu também, às vezes, faço algumas coisas erradas.

LC: — Ah, sim? Por exemplo?

MÔNICA: — Bem, eu blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Mônica ser recusava terminantemente a reconhecer o óbvio: que ela, como todo mundo, cometia erros. Frente a tal radical recusa, não tinha sentido perder meu tempo, tentando fazê-la ver os erros que ela cometia e que, não os reconhecendo, não podia tampouco os corrigir. Ela, como fizera outras vezes, iria levar horas tentando se explicar e provar que estava certa e eu, errado.

Freud dizia que, se alguém perde seu tempo tentando fazer alguém que se recusa a reconhecer o óbvio a reconhecê-lo, estamos diante de um sonso e de um ótario. Eu não estava com vontade de fazer o papel de otário. Foi mais fácil dizer a Mônica que ela estava sendo despedida porque era certa demais.

Orgulho

Acho que fiz bastantes coisas boas em minha vida, mas, na verdade, só me lembro de haver duas vezes sentido orgulho de mim. A primeira, foi quando, após quinze anos trabalhando sobre meu livro, A Nova Conversa, consegui chegar a uma forma final que me satisfez. A segunda, ocorreu durante o episódio que passo a relatar.

Eu estava ministrando uma série de palestras sobre Loganálise na UNIRIO e havia uma aluna, vou chamá-la de Mariza, que adorava me provocar. Numa dessas palestras eu havia dito NÃO CONSIDERAR PRODUTIVO ficar dizendo para adolescentes o que é CERTO e o que é ERRADO, nem o que eles DEVEM ou NÃO DEVEM fazer. Acontece que eu havia esquecido que o Leo, meu filho de dezesseis anos, estava sentado na primeira fila da platéia, assistindo à palestra. Mariza, que estava sentada na última e sabia ser ele meu filho, bradou lá de trás:

OUVINTE: — Leo, é verdade esse negócio aí que seu pai está dizendo, ou isso é só papo furado pra conferência e em casa é diferente? Ele não diz pra você o que é certo e o que é errado, nem o que você deve ou não fazer?

LEO (peremptório): — NUNCA DISSE! Ele chega pra mim e diz: “Leo, na minha experiência, se você age desse jeito, vai haver essa ou aquela conseqüência. Se você quiser usar essa informação, ótimo. Se quiser assumir o risco de aprender por você mesmo, boa sorte!”

Foi essa a segunda e única outra vez em que, de fato, senti orgulho de mim. Meu filho estava confirmando a dedicação e seriedade com que encaro e aplico em minha vida os princípios que esposo em minhas conferências e em meus escritos. Um reconhecimento desses por um filho de dezesseis anos soa-me mais puro e mais autêntico do que o representado por um Nobel! E, se me imagino recebendo um, não consigo me imaginar sentindo mais orgulho de mim do que senti naquele instante...

Quanto ao resultado da aplicação do princípio que eu soube tão zelosamente empregar na relação com meu filho, posso afirmar que, pelo menos até agora, ele é o adolescente mais sensato, equilibrado e centrado dentre os que até hoje conheci – e conheci muitos – não tendo eu detetado nele nenhum sinal da famosa “crise da adolescência”, que, desde muito antes de ele haver nascido, eu seguidamente denunciei como um fenômeno artificial, criado por uma inépcia pedagógica cultural generalizada que, naturalmente, formata a pedagogia familiar. E a sensatez, equilíbrio e centramento de meu filho não implica ele achar o máximo – o que eu, aliás, detestaria – aprove todos meus comportamentos ou não tenha certos ressentimentos em relação a mim: significa apenas que ele é centrado, equilibrado e sensato, o que lhe vai servir muito mais na vida do que ter uma imagem idealizada do pai.

Quando afirmo que a saúde mental de meu filho é efeito de eu haver aplicado na relação com ele os princípios da *Loganálise – que, aliás, parecem estar entranhados em mim – muitos riem e comentam “Santo de casa não faz milagre!”, ao que respondo “A Loganálise nada tem a ver com milagre, tem a ver com ciência”. E, aqui entre nós, teria algum cabimento esperar que um antibiótico aplicado por pais, ou tios, ou primos não funcionasse, enquanto mantém sua eficácia se aplicado por um enfermeiro? Presta atenção!

*Loganálise é um filhote da Psicanálise: pretende mostrar como o cidadão comum, em seu dia-a-dia, pode tirar proveito de conceitos como repressão, fixação, trauma e outros para promover sua própria saúde psicológica e a daqueles com quem se relaciona.

"ABUTRES EXISTENCIAIS"

Há pessoas que perguntam se você vai bem, com a esperança de ouvir que você vai mal. Chamo essas pessoas de “abutres existenciais”. Alimentam-se do sofrimento do próximo. Em sua esmagadora maioria, não têm consciência disso e podem ser pessoas perfeitamente boas que, caso se dessem conta do que estão fazendo, ficariam sinceramente chocadas.

Há alguma coisa no TOM com que perguntam se estamos bem que as diferencia daquelas que, ao perguntar como estamos, querem apenas saber isso, e, na verdade, preferindo até ouvir que estamos bem. Não creio ser capaz, por meio de um texto impresso, descrever esse tom. Muitos de meus leitores devem conhecê-lo e estar, agora mesmo, lembrando de alguém que o emprega. Mas posso até tentar: há nesse tom alguma coisa de apreensivo, de cavernoso, a voz parece ficar mais grave, o ritmo fica mais lento e o “bem” final parece prolongar-se mais do que o normal, tudo transmitindo um matiz de gravidade à pergunta, à que se junta um sutil elemento de ameaça, como se não devessemos OUSAR responder que sim, que estamos bem. Se temos coragem de o fazer, podemos ouvir de volta um muchocho que veicula veladamente a desconfiança de que estamos mentindo, a desconfiança de que, na verdade, estamos mal. Essa rapina existencial me incomoda e tenho uma maneira algo vingativa – sinto um pouco de vergonha ao confessá-lo – de responder a tal tipo de avanço. Cá está:

ABUTRE EXISTENCIAL: — Ôi, Luís César. Vai tudo BEEEEM...?

LC: — Desculpe, vai sim! Mas pode ficar tranqüilo(a), logo que estiver tudo mal, eu ligo e aviso!

ABUTRE EXISTENCIAL: — Ih, Luís César, que absurdo! Até parece que eu estava querendo que você estivesse mal!

LC: — Ah, desculpe. Tive essa impressão, mas devo ter-me enganado.

ABUTRE EXISTENCIAL: — Eu, hein!

LC: — E você, como está?

E quando PACIENTES me perguntam, ao entrar na sessão, se tudo vai bem? Bem, dentro do contexto terapêutico, eu ajo da maneira TECNICAMENTE CORRETA e, não, segundo meus impulsos pessoais. E qual seria essa maneira tecnicamente correta?

Mas uma vez, cabe fazer distinções. Há os pacientes que perguntam se estou bem de maneira totalmente casual, sem grandes cargas emocionais. Nesse caso, respondo simplesmente “tudo bem”, e seguimos adiante. Mas há também, o paciente que, como o abutre existencial referido acima, ao perguntar se eu estou bem, iria ficar satisfeito com ouvir que eu estou mal, e um outro tipo, que, na verdade, está ASSUSTADO com a possibilidade de eu estar mal. Ajo da mesma forma com esses dois. Vejamos:

PACIENTE: — Tudo bem?

LC: — Algumas coisas vão bem, outras vão mal.

Assim, evito a prática de alguns analistas de simplesmente não responder a esse tipo de pergunta, o que me parece desnecessariamente grosseiro, e mantenho a ambigüidade indispensável para que o paciente possa, se quiser, trabalhar analiticamente com as duas possibilidades.

“Atrasofobia”

No mais das vezes, chegar pontualmente a uma sessão de análise é a maneira mais objetiva de se tirar o máximo proveito dela. Mas todo o analista sabe que há pacientes que são pontuais por essa razão prática e outros que o são por fobia de atrasar, o que, naturalmente, produz um compulsão de ser pontual. Mas como fazer o paciente compulsivamente pontual reconhecer como SINTOMA um comportamento que, do ponto de vista objetivo, é totalmente desejável?

A comparação entre as sessões de dois pacientes, Antônio e Horácio, num dia em que um engarrafamento monstro forçou ambos a chegarem atrasados, vai nos ajudar a resolver a questão.

A reação de Antônio

ANTÔNIO: — Pô, doutor, desculpe o atraso.

LC: — Tudo bem.

ANTÔNIO: — Está um engarrafamento infernal em toda a N.S. de Copacabana.

LC: — Eu soube.

ANTÔNIO: — Bem, vamos ver se eu aproveito o que resta da sessão. Como eu estava dizendo da última vez, blá, blá, blá, blá, blá, blá...

A reação de Horácio

HORÁCIO: — Pô, doutor, desculpe o atraso.

LC: — Tudo bem.

HORÁCIO: — Esta cidade está ficando um inferno. Será que, agora, a gente vai ter que sair sempre uma hora antes para chegar pontualmente a um lugar a que a gente chegava em vinte minutos? Isso é problema desse prefeito, que só faz reformas de maquiagem, e também dessa população de idiotas, que não sabem votar. Esse negócio de chegar atrasado é um inferno, porque eu tinha uma porção de coisas para falar hoje e, agora, não vai dar mais, inclusive porque estou com tanta raiva de me haverem feito chegar atrasado que não consigo pensar em outra coisa. E não tenho nenhuma possibilidade de reagir! O que vou fazer? Matar o prefeito? Assassinar esse eleitor brasileiro que é um babaca? Blá, blá, blá, blá, blá, blá...

LC: — Horácio, acho que seria produtivo se nós falássemos um pouco sobre o papel da pontualidade e do atraso em sua vida. Parece ser um ponto particularmente sensível para você.

HORÁCIO: — Ué, não consigo ver nenhum problema aí! Não é normal que a pessoa queira chegar na hora em sua sessão de análise e que fique frustrado quando isso não acontece?

LC: — Supernormal. Ocorre apenas que você não parece simplesmente frustrado, mas, sim, traumatizado por seu atraso e isso, sim, merece nossa atenção.

HORÁCIO: — Por que você está dizendo que eu fiquei traumatizado e não, frustrado?

LC: — Vários pacientes chegaram atrasados hoje. Os frustrados com isso mencionaram ligeramente o assunto e aproveitaram o resto da sessão para dar continuidade ao que vinha sendo tratadoem suas análises. Os traumatizados com o fato não conseguiram, como você, parar de falar no assunto, e, nesse caso, o mais produtivo é esquecermos o resto, e aprofundarmos o problema do atraso.

HORÁCIO: — Bem, minha mãe sempre chegava atrasada quando ia me buscar na escola. Todo mundo já tinha ido embora e eu ficava lá, esperando..., esperando... Era horrível!

Horácio fizera uma CONTRA-IDENTIFICAÇÃO: tinha FOBIA de repetir em sua vida o comportamento que o traumatizara e, a partir daquela sessão, pudemos começar a trabalhar isso.

GATOS

Ando escrevendo diálogos muito longos. Vou escrever um bem pequeno para todo mundo descansar a cabeça. Ou a vista.

PATRÍCIA: — Já trouxe minha mãe aqui, e ela melhorou muito. Agora, quero trazer meu namorado. Ele também está precisando mudar em algumas coisas.

LC: — Sabe que tipo de imagem você me traz à cabeça?

PATRÍCIA: — Não, não tenho a mínima idéia.

LC: — Você me faz pensar em uma PATRÍCIA que procura um alergista e, depois de submeter-se a uma série de testes, ao receber do médico a notícia de que ficou demonstrado que a causa da alergia é o pêlo de gato.

PATRÍCIA retruca: “Ótimo, doutor, quando vamos começar a MATAR OS GATOS”? O que é que você quer dizer com isso?

LC: — Olha, eu me disponho a conversar com qualquer pessoa que o paciente deseje trazer aqui: pai, mãe, companheiro, amigos, etc.. Mas não a ponto de se inverter – ou perverter – minha relação com o paciente de forma que o objetivo da análise deixe de ser a mudança do paciente, para passar a ser o de mudar o mundo para que ele se adapte ao paciente. Sinto que a vinda dessas pessoas aqui está deixando de ser um COMPLEMENTO de sua análise para se transformar em um SUBSTITUTO de sua análise. Não estou disposto a compactuar com isso.

Sem muita motivação para fazer análise – tinha sido a mãe que a havia pressionado para tal – e sem minha colaboração para FINGIR que estava fazendo análise, a paciente, pouco mais de um mês depois, abandonou o tratamento. Menos mal. Minha relação com ela cumpriu seu objetivo: permitiu à verdade da paciente aparecer.

domingo, junho 15, 2008

OS DEMÔNIOS E A PALAVRA

"No hiduísmo, os demônios são designados pelo nome de asuras, isto é, SERES DESPROVIDOS DE PALAVRAS" (Olavo de Carvalho, em seus comentários a "Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão", de Arthur Schopenhauer. A maiusculação é minha).

sexta-feira, junho 13, 2008

O que é Psicanálise?

Como uma exposição sobre o que seja a “mente” e o “mental” pode tornar-se extremamente complexa e sofisticada, arriscando afugentar o leitor leigo, optei por introduzir o assunto falando sobre o que é a Psicanálise, deixando que o aprofundamento do tópico ocorra a partir dos comentários que sejam eventualmente feitos a ele. Comecemos, pois:

Antes de tudo, lembremos que dizer que a Psicanálise é "uma teoria e forma de tratamento psicológicos criados por Sigmund Freud" é uma péssima - e freqüente - maneira de se tentar defini-la. Tanto, na verdade, quanto seria tentar definir "avião" como "tipo de objeto voador inventado por Santos Dumond". Esse tipo de "definição" indica apenas que se "jogou a toalha", desistindo de encontrar para um certo "definiendum" um adequado "definiens".

Desse tipo de definição canhestra, de qualquer forma, aproveita-se que a Psicanálise existe em dois grandes registros: (1) como teoria psicológica e (2) como forma de tratamento a partir dela fundamentado. Exploremos isso:

(A) Que traço comum têm duas teorias psicológicas que mereçam ser chamadas de "psicanalíticas", por mais que, sob vários aspectos, possam diferenciar-se e, até mesmo, divergir, traço comum que nos permita legitimamente falar em "várias Psicanálises", p. e., em Psicanálise Freudiana, Existencial, Sullivaniana, Lacaniana, Loganálise etc.? Esse traço é o seguinte:

(1) uma especial definição do que seja o PSICOLÓGICO, desde sempre empregada por Freud (embora nem mesmo ele tivesse muita clareza sobre isso) e herdada de Franz Brentano, ou seja, a de que "psicológico" é sinônimo de "intencional". Ou seja, onde há intencionalidade há psicológico e onde há psicológico há intencionalidade, sendo a Psicologia Psicanalítica a ciência que estuda as intenções em (a) seus propósitos, (b) em suas intensidades e (c) nos conflitos que estabelecem entre si; e

(2) o reconhecimento de que tais intenções podem operar mesmo quando não conectam suas representações não verbais com suas representacões verbais, estabelecendo, por meio dessa conexão, uma "co(ns)ciência (= "co-ciência" = “ciência dupla”, verbal e não verbal);

Concluindo: sempre que uma TEORIA apresente as duas características que acabei de listar, ela merece ser designada como Psicanálise.

(B) Já enquanto TRATAMENTO PSICOTERÁPICO, uma técnica merece ser considerada como legítima representante da Psicanálise, se essa técnica, não importa quais seus procedimentos, tem por objetivo (1) estabelecer conexões inexistentes, ou (2) reestabelecer conexões anteriormente existentes, entre representações verbais e não verbais.

A clareza conceitual sobre o que seja a Psicanálise, em seus registros técnico e teórico, fere os interesses corporativos dos que pretendem ser os únicos "verdadeiros representantes" dela. Essa a razão da bruma que, até hoje, tem-se mantido sobre sua conceituação.

Quem tiver interesse de aprofundar-se sobre a identificação freudiana entre "psíquico" e "intencional", consulte meu artigo "O Conceito Freudiano de Psicológico", clicando no 'bottom' LOGANÁLISE PRO, do site www.loganalise.com)

Fundamentos lógicos e empíricos do conceito de inconsciente

Sobre o autorA hipótese da existência de fatores inconscientes determinando o comportamento humano é, naturalmente, tão velha como a história. Na época de Freud, entretanto, dominava a postura de que esses fatores eram de natureza neurológica. O grande mérito de Freud foi sustentar a natureza psicológica desses fatores, fazendo uso, para isso, (1) de dados empíricos à disposição de qualquer um a de (2) um conceito específico de psicológico, emprestado de Franz Brentano. Se não, vejamos:

(1) A experiência pós-hipnótica que relato a seguir pode ser reproduzida ad nauseam por quem quer desejar fazê-lo e é um acabado exemplo do tipo de dados empíricos a que acabo de me referir:

Um voluntário, sob hipnose, em uma sala em que se encontram ele, o hipnotizador e mais quatro pessoas, recebe a ordem pós-hipnótica de que, ao sair do transe, não mais verá uma delas. Com efeito, saído do transe, ao ser perguntado pelo hipnotizador sobre quem são as pessoas que se encontram no aposento, indica a presença de todos, menos daquele que está hipnoticamente impedido de ver. O hipnotizador, então, pede que o voluntário caminhe na direção dele, tendo antes se colocado de forma que, entre ambos, fique a pessoa para aquele "invisível". O sujeito hipnotizado segue em linha reta na direção do hipnotizador, mas - espanto! - pouco antes de colidir com a pessoa postada entre os dois, hesita um pouco e termina por desviar-se dela, só então continuando seu percurso para o local pretendido.Perguntado sobre as razões de haver feito tal desvio, dá as mais variadas respostas, menos a de que foi para evitar a colisão com a pessoa interposta e que continua a não ver.

(2) Nada, contudo, no episódio acima, impediria que os contrários à hipótese freudiana continuassem afirmando serem meramente neurológicos os fatores que levaram o voluntário da experiência a desviar-se do obstáculo humano com que, não fora tal desvio, iria fatalmente colidir. Fatores, portanto, que deveriam continuar estranhos ao campo de estudo da Psicologia. Aqui, contudo, entra Franz Brentano, filósofo alemão, a cujas aulas assistiu Freud, a partir de 1874, ou seja, exatamente a partir do ano em que aquele filósofo publicou seu mais famoso livro, "A Psicologia de um Ponto de Vista Empírico". Nessa obra, na seção intitulada “A Distinção entre os Fenômenos Físicos e os Mentais”, Brentano defende o conceito - perfeitamente legitimado pela história da Filosofia - de que a existência de intencionalidade é o critério que permite a diferenciação entre o psicológico e o não psicológico.

Ora, convenhamos, se

(a) dados empíricos como os observados na experiência pós-hipnótica relatada demonstram a existência de intenções - no caso, evitar uma colisão - que podem ditar comportamentos humanos, a despeito de ter impedida sua entrada na consciência; e se,

(b) como assumiu Freud - seguindo o critério de Brentano sem jamais declinar seu débito a ele - onde há intencionalidade, existe o psicológico, é rasteiro exercício dedutivo concluir

(3) a legitimidade lógico-empírica da postulação de um inconsciente psicológico.

Postulação que permitiu o nascimento de uma nova Psicologia - a Psicanálise - que abrangeu em seu campo de estudo tanto a intencionalidade consciente quanto a inconsciente. Não reconhecer o inconsciente como objeto legítimo da investigação psicológica só pode ser sinal de ignorância, burrice, má-fé ou de alguma perniciosa combinação desses fatores. O último deles, provavelmente - sorry, periferia – de natureza inconsciente.

O conceito de doença mental: natureza e função - pt 4

Skinner – se bem entendi Robson Faggiani, que afirma segui-lo nisso – entende que não vale a pena nos cansarmos para tentar distinguir conceptualmente o neurológico do psicológico.
Um singular episódio ocorrido dezenas de anos atrás em uma clínica neurológica do Canadá pode auxiliar-nos a refletir sobre essa postura. Vejamos:

A tal clínica pegou fogo. Frente a esse apuro, um seleto grupo de pacientes paralíticos ali internados milagrosamente “curou-se”, saiu correndo e escapou dele, enquanto os menos afortunados lá ficaram, à mercê das chamas. Findo o episódio, concluiu-se que as paralisias daquele seleto grupo eram de natureza psicológica – mais exatamente, histérica – não neurológica, tendo sido eles conseqüente – e, diga-se, mui adequadamente – derivados para outro tipo de tratamento. Psicoterápico, é claro.

Pergunto: de fato, não parece aos que sustentam a postura “anti-classificatória” atribuída por Robson a Skinner – e nele seguidor dela – que ficaria melhor tentarmos desenvolver instrumentos de diagnóstico diferencial entre o psicológico e o neurológico mais sofisticados do que pôr fogo em clínicas?

Se Robson e Skinner acham que não, eu, tentando ser eufêmico, os consideraria, no mínimo, muito corajosos...

Uma digressão: “cognição” como um substituto tímido de “consciência”

Freud privilegiou o inconsciente como sendo “o” psicológico, os existencialistas continuaram privilegiando o consciente, os behavioristas o comportamental. A Psicologia só vai libertar-se das distorções produzidas por essas posturas enviesadas, quando se reconhecer – e parece-me que Freud foi o que mais perto chegou disso – que o psíquico transcende a área em que se expressa, algo que deixo explícito em minha próxima contribuição, que fala dos fundamentos lógicos e empíricos do conceito de inconsciente.

Perigo em dizer bobagem – o que não me assusta, já que, havendo alguém mais douto do que eu, deverá estar pronto a corrigir-me – mas abrigo a impressão de que os psicólogos comportamentais já estão começando – embora de forma envergonhada – a perceber a bobagem que fizeram em alijar a consciência como objeto de seus cuidados e debatem-se para tentar “sutilmente” reintroduzi-la, mediante o uso da palavra “cognitivo”.

Com efeito, recebi propaganda de um grupo de behavioristas dessa “cepa arrependida” que oferece um curso de formação de psicoterapeutas em “Psicologia Cognitiva”. Só – e timidamente – em alguns dos itens do curso vê-se a palavra “comportamental”, mas, para quem sabe ler, fica óbvio que esses “acertos verbais” apenas indicam que estão tentando livrar-se (o que é bom) disfarçadamente (o que é feio) da “objetividade idiota” implicada em pretender teorizar – não “a partir de” – mas “apenas sobre” o observável.

Esmiuçando tal impressão eu diria que os comportamentistas:

estão regredindo à velha Psicologia da consciência;

vão acabar se enrolando

porque entre o que “é dito” (o observável: p.e., um pastor da Igreja Universal diz que quer o seu dinheiro para ajudar a você) e o que “é cognoscido” (o inferido: p.e., que esse pastor da Igreja Universal tem perfeita consciência de que quer seu dinheiro para ajudar não a você, mas a si próprio); e, mais ainda, e

porque tal pastor pode estar “cognoscendo-se” como veraz (= consciência) enquanto a si próprio engana (= inconsciente); e, já que

tanto as “cognoscências” conscientes e quanto as inconscientes (se tiverem suficiente engenho e arte, eles chegam lá) são inferidas e só se assumissem que inferem – o que seu positivismo jurássico não lhes permite – é que os levaria manejar corretamente os critérios metodológicos necessários para diferenciar (Haeckel) quando estão inferindo bem de quando estão inferindo mal.

Até serem capazes de reconhecer tudo isso vão ter que recorrer a muitos malabarismos verbais – a “cognição” é o carro chefe disso, seguida de perto por se estarem nomeando de “analistas” e pretenderem ser “profundos” – para tentar reintroduzir a consciência e o inconsciente (que já está na fila) como objeto da Psicologia, enquanto fingem que não o estão fazendo.

Feita essa digressão, voltemo-nos sobre a tentativa de construir conceitos de doença e saúde mentais menos “monstruosos” do que os paridos pela Psicologia Comportamental.

A criança que merece não ser jogada fora junto com a água suja da banheira

Defendemos até aqui que um conceito de “doença mental” que

(1) não diferencia “neurológico” de “psicológico” e

(2) identifica “doença” com “desvio”

é uma verdadeira “catástrofe teórica” e que pessoas, como Robson, que, se não cuidam de melhorá-lo, pelo menos se esforçam por livrar-se dele, não fazem mais do que mostrar seu bom-senso.

Mas, será possível tal melhoria? Haverá um conceito de doença psicológica que, formulado, auxilie, em vez de dificultá-la, nossa atividade como psicoterapeutas? Haverá, nessa banheira, uma criança se mereça separar (Haeckel) da água suja?

Creio que sim e passo a declinar esse conceito, embora o faça, para não cansar meus leitores, de maneira algo grosseira, a espera de contestações que me levem a refiná-lo. Vamos a isso.

Se algo nos parece desejável, vale a pena conceituá-lo de forma ”ideal”. Não é senão por isso que a Física abriga o conceito de “motor sem atrito” – algo que obviamente inexiste – a Química o de “gás ideal” – também assim – a Economia o de “mercado perfeitamente accessível” – assim também – etc..

Para que servem tais conceitos sobre o “inexistente”? Para

(1) ao escoimar o conceito das imperfeições da realidade, pôr a claro quais são seus elementos essenciais;

(2) ordenarmos o existente relativamente a seu afastamento desse inexistente ideal;

(3) decidirmos o quanto, nas circunstâncias em que nos encontramos, tal afastamento é aceitável ou merece ação que pretenda reduzi-lo.

Se entendemos, portanto, que “saúde mental” é algo desejável, devemos idealizá-la e, a partir disso, determinar qual nível de afastamento dessa metal ideal passaremos a considerar digno de intervenção corretiva, chamando-o de “doença”.

A criança que não existe e, a despeito disso, não merece ser jogada fora junto com a água da banheira

Construamos, portanto, a seguinte “idealização”:

Saúde mental = capacidade de, dentro dos limites impostos pelo entorno, otimizar prazer e sobrevivência.

[quase disse capacidade de “cognoscer o que otimiza prazer e sobrevivência”, mas achei que era implicância demais]

Quaisquer afastamentos dessa meta que um determinado momento de uma determinada cultura considerar relevantes será considerado “doença mental”. Como bem assinalou Robson Faggiani – ou Paulo Abreu, não me recordo bem – a homossexualidade já foi considerada um afastamento relevante do ideal de saúde e, portanto, nomeada como doença, sendo que, hoje, já não é mais.

Dentro da visão, derivada de Haeckel, de que uma entidade conceptual evolui na exata medida em que se diferencia e integra os elementos diferenciados, o conceito de “doença mental (ou psicológica)” diferenciou e integrou os seguintes conceitos:

Sintoma – a menor unidade de análise nosológica (“nosos”, em grego, significa “doença”, donde “nosologia”, por direito, significa o estudo delas; a palavra “patologia”, normalmente empregada para isso, serve, por razões sobre as quais não me estenderei aqui, bastante mal a seu propósito, pelo que não a empregarei). A taquicardia, aceleração excessiva do ritmo de batimentos cardíacos, é exemplo de sintoma;

Síndrome – conjunto de sintomas que tendem a ocorrer simultaneamente. Seve de exemplo a Síndrome de Pânico, que abrange, para além da citada taquicardia, outros mais como vivências paroxísticas de ansiedade, tremores, tensão muscular, sudorese, tonturas, dispnéia, dispepsia, polaciúria etc.

Etiologia – a causa da doença. A síndrome de pânico, por exemplo, pode ocorrer, entre outras, na doença mental – “entidade nosográfica” em termos técnicos – classificada na última versão (a décima) do capítulo (o quinto) do Código Internacional de Doenças (CID-10) com o registro de F10, sob a denominação de “Transtornos Mentais e de Comportamento decorrentes do Uso de Álcool”. A causa – ou etiologia – aqui é, na verdade, a abstinência, não o uso, dessa substância psicoativa.

Patogenia – o processo interveniente entre a causa e a produção da síndrome (Robson, em uma de suas colaborações, define, a meu ver enganosamente, como etiologia o que, na verdade, é patogenia). Exemplifiquemos: o álcool é uma substância depressora no que diz respeito ao funcionamento do sistema nervoso. Seu uso exagerado e contínuo leva esse sistema a, numa tentativa de contrapor-se a tal influência, aumentar cronicamente a produção de substâncias químicas naturalmente estimulantes (como a serotonina e a noradrenalina, “parentes” químicos da adrenalina). Quando o “freio” alcoólico é retirado pela abstinência, essa superprodução adrenalinomimética continua, tendo por resultado o aparecimento da hiper-estimulação típica da síndrome em questão.

Pois bem, o que acontece quando, seguindo propostas behavioristas como as de Skinner – apud Robson – optamos por dispensar o conceito de doença mental, com as diferenciações que acabamos de arrolar? Acontece o seguinte:

As dimensões diagnósticas

Sei que a formação de psicólogos no Brasil é de qualidade deplorável. Mas, a despeito de sabê-lo, não estava preparado para o que me relatou um de meus pacientes, estudante de Psicologia. Disse-me que, em uma das provas a que foi submetido, encontrava-se a questão:

“Síndrome de Pânico” é sinônimo de ...

A resposta correta, segundo o professor da matéria, seria “Transtorno de Pânico”.

A ignorância sobre a natureza, etiologia e patogenia da aludida síndrome são tão universais que, imagino, a maior parte de meus leitores leigos não terá entendido o porquê de meu escândalo frente ao que me foi relatado. Com o que já falamos até aqui, posso trazê-lo à luz.

“Síndrome” – conjunto de sintomas que, como definimos acima, soem ocorrer simultaneamente – não é, de modo algum, sinônimo de “transtorno”, que, no vocabulário especializado – que, obviamente é o que cabe usar em um exame acadêmico – corresponde a “doença”, entidade que, diferentemente de “síndrome”, tem compromissos – hipotéticos que sejam – patogênicos e etiológicos.

Quais as conseqüências práticas de que se perca tal diferenciação?

São graves. Para os pacientes, não para os psicoterapeutas ou para a indústria farmacêutica, mas, para bem avaliar essas conseqüências, vale diferenciar e integrar os vários níveis em que ocorre um psicodiagnóstico, já que a gravidade delas atinge a certos níveis mais do que a outros. São eles:

Macrodiagnóstico – neste nível – seja por técnicas mais sofisticadas, que reconhecem a importância do conceito de doença mental e são capazes de diferenciá-las, por exemplo, das neurológicas, seja por técnicas mais primitivas como, por exemplo, pôr fogo em clínicas – decidimos se, por exemplo, uma paralisia é de natureza psicológica (histérica) ou neurológica;

Mesodiagnóstico – tendo-se decidido – mediante incêndios ou outras técnicas – que uma doença é de origem psicológica, e, portanto, deve ser tratada psicoterapicamente, cumpre decidir se a abordagem mais adequada é “rasa” (de índole comportamental) ou “profunda” (de índole psicanalítica). Não exporei aqui os critérios que determinam tal decisão, mas posso adiantar, grosso modo, que, quanto maior a gravidade da doença, tanto mais “rasa” deve ser tal abordagem. Note-se, também, que o curso do tratamento poderá requerer a mudança de uma abordagem “rasa” para uma abordagem “profunda” ou vice-versa. E também que, ao tratar pacientes mais graves, soi-disants psicanalistas trabalham em nível patentemente comportamental (no que fazem bem), embora escondam isso (no que fazem mal).

Microdiagnóstico – Ainda estagiário, evitei que um menino de 6 anos, com grave dislalia, fosse enviado, na clínica da PUC-RJ, para tratamento psicoterápico, porque, contrariando minhas duas supervisoras, insisti que ele padecia (“paciente” não significa, como parece supor Robson, “aquele que é passivo”, mas sim “aquele que padece”, ou seja, “sofre”) de uma doença de natureza neurológica e não, como queriam elas, de natureza psicológica.

Eu tinha razão: o menino apresentava uma forma frustra da paraplegia espasmódica familiar de Strümpel, o que lhe brindara com um véu palatino escavado, responsável por sua dislalia. Seu atendimento prioritário, obviamente, era o fechamento de sua fenda palatina e não o resgate de suas profundidades edipianas ou a rasa aplicação de reforços positivos, quando falasse bem e negativos, quando falasse mal.

Mas suponhamos que, por mero acaso ou por haver encontrado alguém capaz de separar neurológico de psicológico e distinguir quem necessita de psicoterapias rasas em vez de profundas, um paciente (repito, “aquele que padece”, não “aquele que é passivo”) tenha caído nas mãos do tipo de terapeuta que, de fato, a ele mais serviria e esse é, digamos, um terapeuta viciado em ser “profundo”. Para tratá-lo bem, ele deverá fazer microdecisões – microdiagnósticos – optando por privilegiar o debate sobre esse e não aquele dentre os vários materiais ventilados em uma sessão.

Tais “microdiagnósticos”, evidentemente, implicam – como enfatiza Robson – o conhecimento da história daquele particular sujeito, embora – do que parece discordar Robson – o conhecimento de histórias de outros pacientes – por que será que ser um terapeuta “experiente” é um valor? – seja importante instrumento para que possamos criar hipóteses quanto às direções em que aquela história deve ser preferencialmente investigada.

Sobra, contudo, um problema: pacientes que caem nas mãos de terapeutas que só se dedicam a fazer “microdiagnóstico” arriscam-se a ser tratados por abordagens que não lhes servem. Querem ver?

A tal “síndrome de pânico”

A síndrome (= conjunto de sintomas) de pânico pode ocorrer, no mínimo, em três tipos de transtorno (= entidade nosográfica, ou, mais vulgarmente, doença), quais sejam:

1. Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substância psicoativa (classificados de F10 a F19 no capítulo V da décima versão do Código Internacional de Doenças);

2. Transtornos fóbico-ansiosos (F40 daquele código);

3. Transtorno de pânico (F41.0 do mesmo)

Pois bem, para quem apresenta de F10 a F19 o tratamento prioritário é medicamentoso, para quem apresenta F40 o tratamento preferencial é psicoterápico profundo, para quem apresenta F41.0 é comportamental.

Só quem emprega uma teoria suficientemente sofisticada para diferenciar transtorno (= doença) de síndrome, de sintoma, de etiologia, de patogenia é capaz de encaminhar corretamente esses pacientes.

À indústria farmacêutica, que, via alprazolam, só trata da síndrome, não da doença, não interessa nem um pouco que se façam tais diferenciações.

Vimos que tarefas simples como posicionar um guarda-sol na praia pode – na verdade deve – dispensar o uso de teorias astronômicas mais sofisticadas como o heliocentrismo, servindo-se melhor do simples, bom e velho geocentrismo. Mas não, naturalmente, tarefas mais complexas, como a de fazer pousar uma sonda em Marte. Fazer psicoterapia estará mais para a simplicidade da primeira ou para a complexidade da segunda?

O conceito de doença mental: natureza e função - pt 3

Responder à pergunta:

“Para o contexto em que trabalha um psicoterapeuta e para o bom cumprimento da tarefa a que ele se propõe, vale a pena dispensar o conceito de doença – e, naturalmente, de seu correlato saúde – mental?”

Implica considerá-la sob dois ângulos, um específico, outro geral. Sob o primeiro, já que esta série de postagens são contraponto a um trabalho de Robson Faggiani, a questão se torna:

“Para o contexto em que trabalha um psicoterapeuta e para o bom cumprimento da tarefa a que ele se propõe, VALE A PENA DISPENSAR O CONCEITO DE DOENÇA – e, naturalmente, de seu correlato saúde – MENTAL segundo os conceitua Faggiani?”

Pergunta a que respondo com um entusiasmado “SIM, VALE A PENA!”, já que o conceito de doença mental que a escola comportamental construiu é tão ruim, que, para se redimirem de tal tropeço, só resta a seus adeptos a saída de dispensá-lo.

Sob o segundo desses ângulos, a questão se fraseia assim:

“Para o contexto em que trabalha um psicoterapeuta e para o bom cumprimento da tarefa a que ele se propõe, VALE A PENA DISPENSAR TODO E QUALQUER CONCEITO DE DOENÇA – e, naturalmente, de seu correlato saúde – MENTAL?”

Pergunta a que respondo com um enfático “NÃO, NÃO VALE A PENA!”, acrescentando que possuir uma conotação de “doença mental” que recubra adequadamente o universo de entidades consensualmente denotadas por essa expressão permite-nos evitar graves enganos no cumprimento da atividade psicoterápica.

Começo abordando o “SIM, VALE A PENA!”


Construindo e dispensando um “monstro conceitual”

Em seu comentário à primeira de minhas contribuições sobre o assunto em tela, escreve Faggiani:

“César, suas críticas partem de um pressuposto: o de que a mente (psicológico) e o corpo (neurológico) são coisas distintas.”

Ficou-me a impressão de que, através dessa frase, o autor entende que eu sou vítima do ingênuo erro dualista de Descartes, tão criticado por Damásio. Esse não é o caso e passo a mostrar por quê:

(1) metateoricamente sou um monista materialista que considera o sistema nervoso – como o digestivo, o respiratório, o circulatório, etc. – um dentre os vários sistemas em que se subdivide o organismo (“corpo”), sendo aquele sistema que pode operar de forma a produzir tanto fenômenos psicológicos – por exemplo, os histéricos – como neurológicos – por exemplo, os epiléticos; e

(2) considero tão pouco prático deixar de diferenciar o digestivo do respiratório quanto o é deixar de diferenciar o psicológico do neurológico, pela rasteiríssima razão de se evitar que se vá tratar de uma úlcera com um pneumologista, uma tuberculose com um gastroenterologista, uma epilepsia com um psicoterapeuta, uma histeria com um neurologista.

Acontece, contudo, que, quando comportamentistas como Robson paradeiam uma suposta evolução em sua teoria, por estarem superando um dualismo metafísico à la Descartes, estão, a meu ver, tentando fazer da necessidade virtude, como raposas frente a uvas que não podem alcançar. Com efeito, dizem estar desinteressados em separar o psicológico do neurológico, mas a verdade é que, se quisessem fazê-lo, não teriam como. Isso simplesmente porque, se, para delimitar o aparelho digestivo temos que saber o que é digestão, para delimitar o respiratório o que é respiração e assim por diante, os comportamentistas não tem nenhum critério que lhes permita dizer o que é “psicação”. Nisso, estão certamente piores do que Freud, que operava – embora o escondesse dos outros e, em certa medida, até de si próprio – com um critério tão sofisticado de “psicológico” que pôde categorizar algumas idéias, emoções e desejos, não obstante conscientes, como sendo apenas neurológicos, ficando fora do escopo da Psicanálise.

Se Robson – seguindo Skinner e esse, seguindo Watson – pretende marcar a natureza “científica” de sua atividade mediante um viés positivista que o impede e o desinteressa de diferenciar (cf. Haeckel) o “mental” ou “psicológico” do “neurológico” e, se eu, seguindo Haeckel e Mill, considero essa uma inexpediente involução teórica, só posso considerar qualquer conceito de “doença mental” que se apóie em tal fundamento uma igualmente indesejável regressão, cujas conseqüências nocivas irei detalhar.

Com ainda um problema: se, preocupados em demonstrar que são cientistas e não filósofos, os behavioristas tentaram escapar

(1) da Metafísica, buscando refúgio em um conceito “mental” que não o diferencia do “neurológico”, e

(2) da Axiologia – o ramo da Filosofia que estuda e propõe valores – buscando refúgio em um conceito igualmente regredido de “doença”, que não a diferencia de “anomalia”, a escola conseguiu com essa dupla façanha, construir, no que diz respeito à “doença mental”, “monstruosidades conceituais” como as que seguem:

Primeiro, ouçamos Sawrey e Telford:

“Os desvios extremos ou extensos do comportamento normal ou usual são classificados, de um modo corrente, como doenças mentais.” (Sawrey, J. M. & Telford, C. W. Psicologia do Ajustamento. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 478).

Em seguida, a Ludin:

“Neurótico é um termo tradicionalmente aplicado a uma classe de comportamentos descritos como desviados do modo convencional de responder” (Lundin, R. W. Personalidade. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1974, p. 527) ... “Quando essas modificações parecem ser mais marcadas e tornam-se muito mais desagradáveis e perigosas, o comportamento é, costumeiramente, denominado psicótico”? (Id., p. 577)

Como diz o brocardo inglês, “there’s no foolproof rules”, não há regras a prova de tolos.

A metateoria da Psicanálise, que legitima a construção do conceito de inconsciente, arrisca produzir o que chamo de “idiotas da subjetividade”, capazes de, em sua preocupação de ser “profundos”, nos perguntar “o que queremos dizer com isso” se lhes damos bom dia.

As do behaviourismo favorecem a produção de “idiotas da objetividade” (Nélson Rodrigues), como Sawrey, Telford e Ludin, capazes de, a partir de uma visão jurássica da imparcialidade científica, tentar fugir dos inescapáveis compromissos axiológicos do conceito de doença, buscando proteção na suposta “objetividade” da estatística e, a partir disso, identificando doença mental com anomalia.

O incabível dessa identificação é talvez ainda mais óbvio do que o da perda de diferenciação entre o psicológico e o neurológico. Se alta freqüência estatística fosse sinônimo de higidez, carie dentária indicaria saúde odontológica e a falta delas doença. “Anormalidade” ou “anomalia” é critério axiologicamente neutro, podendo havê-las “positivas” – como as representadas pelos talentos de um Da Vinci, de um Bach e de um Shakespeare – “indiferentes”, como a dos portadores de dextrocardia, com corações anomalamente situados no lado direito da caixa torácica, mas nem por isso menos saudáveis – ou “negativas” – como uma ectromelia, a ausência parcial ou completa de membros torácicos ou pélvicos.

Faggiani, em seu artigo, parece preso entre, por um lado, sua lealdade escolástica, que o leva a, em certo passo, escrever “desvio OU doença mental”, acolhendo a deplorável identificação entre ambos os conceitos e, por outro, seu bom senso, que lhe sopra aos ouvidos o absurdo dela. Cai, como resultado, em um pseudo-dilema, qual seja, optar entre (1) empregar um conceito totalmente inaceitável de doença psicológica ou (2) não empregar conceito nenhum.

Termina – de maneira algo hesitante, é verdade, pois chega a chamar o conceito de doença psicológica de “útil”, mas “dispensável” – por adotar a segunda alternativa, a qual, para mim, significa que, junto com a água suja da banheira, jogou fora a criança.

Vejo alternativa melhor, qual seja: explicitar a “conotação” correspondente ao universo das entidades “denotadas” como “doenças mentais”, escoimando-a de suas vinculações com o conceito de anomalia e com uma visão que não diferencia o neurológico do psicológico.

Passo a fazê-lo no próximo fragmento desta série.

O conceito de doença mental: natureza e função - pt 2

Em resposta à primeira postagem da minha série de contribuições sobre a natureza e função dos conceitos de saúde e doença mentais, Robson Faggiani escreveu: “Talvez fosse melhor defender as classificações antes de utilizá-las para falar de um texto [o dele] ‘anti-classificações’.

Ele tem razão. No que segue, passo a contemplá-la.

Sofisticações teóricas possíveis e sofisticações teóricas desejáveis

Haeckel (1834-1919), o zoólogo, biólogo e filósofo alemão, afirmava que toda evolução implica necessariamente diferenciação e integração das partes diferenciadas.

Esse critério, que eu subscrevo, pode ser aplicado não apenas a seres vivos – o que me leva a classificar uma barata como menos evoluída do que um ser humano – mas também a sistemas de pensamento – o que me leva a classificar como menos evoluídos, sistemas de pensamento pouco diferenciados, no que diz respeito a:

Mensuração - A Física derivada de Galileu é mais evoluída do que a de Aristóteles porque, entre outras coisas, enquanto a desse último trabalhava com classes – propondo, por exemplo, uma teoria para o frio e outra para o calor – a do primeiro trabalha com contínuos – integrando, em uma só teoria, as infinitas gradações do contínuo temperatura;

Vocabulário – O vocabulário dos esquimós, no que diz respeito a “neve”, é mais evoluída do que as demais, pois tem mais de uma dezena de termos para indicar diferenciações passíveis de serem reconhecidas no fenômeno ao qual outras linguagens se referem empregando um só; a linguagem técnica da Medicina, analogamente, só para lidar com o fenômeno “doença”, tem um número de palavras igual ou maior do que a dos termos não técnicos do idioma a que pertence, sendo, portanto, no que diz respeito àquele fenômeno, mais evoluída do que seu vernáculo;

Teoria – a Astronomia de Einstein é mais evoluída do que a de Newton, essa do que a de Kepler, essa do que a de Galileu, essa do que a de Copérnico, essa do que a de Ptolomeu. Cada um desses ‘saltos evolutivos’ corresponde à introdução de mais diferenciação e de mais integração dos dados diferenciados, sendo, por isso, capazes de explicar fenômenos dos quais o estágio evolutivo anterior não sabia dar conta.

Se válido esse critério – e caberia agora a Robson defender que ele não é – uma teoria capaz de diferenciar o neurológico do psicológico e saúde de doença, seria mais evoluída do que uma, como a de Skinner, incapaz de fazer isso. Fica, entretanto, um problema: ser mais evoluído equivale a ser melhor?

Defendo a tese de que tal superioridade só pode ser avaliada relativamente à tarefa que se tem em mãos e ao contexto em que ela deverá ser levada a cabo. Com efeito, corre que, se a tarefa é sobreviver e o contexto é uma explosão atômica, mais vale ser barata do que ser humano... Aquelas, menos ‘evoluídas’, sobrevivem à bomba, esses últimos não. Como fica isso no que diz respeito a sistemas teóricos, léxicos e de mensuração?

Consideremos o seguinte episódio, fictício, é claro: chego a uma praia e, para orientar-me quanto a como posicionar minha barraca, pergunto a alguém que ali encontro: “Por favor, em que sentido se põe o Sol?” E a pessoa me responde: “Amigo, o Sol não se põe. Na verdade, o movimento de rotação da Terra em torno de seu próprio eixo é que, enquanto ela traslada em relação à posição, tida como fixa, daquele astro, cria a ilusão de que ele se levanta e se põe. Portanto, o que o senhor quer, na verdade, é saber qual é, relativamente ao ponto que nos encontramos e a posição fixa do Sol, o sentido dessa rotação.” Pergunta-se: em tal contexto e para tal propósito, para que nos serve a superioridade teórica do heliocentrismo sobre o geocentrismo? Fácil de responder: para nada. Melhor: serve para amolar nossa paciência.

Salta analogamente à vista que, para o contexto em que vivo eu, um carioca, e face aos problemas meteorológicos que devo enfrentar, de pouco me serviria – ou melhor, muito me pesaria – possuir, no que diz respeito a neve, um léxico tão sofisticado quanto o dos esquimós. Da mesma maneira que, para concluir qual o tamanho adequado para a perna de uma calça, de pouco serviria – na verdade, atrapalharia – a um costureiro medi-la em mícrons.

E para bem exercer o ofício psicoterápico? Devo dispensar a sofisticação de classificações mais evoluídas, que separam o psicológico do neurológico, o saudável do que não é?

Robson e Skinner dizem que sim. Eu digo que não.

No próximo capítulo.

O conceito de doença mental: natureza e função - pt 1

O que é a doença mental? Os grandes teoricos da psicologia conseguiram definir este conceito de maneira satisfatória? Neste artigo, o autor analisa como Freud, através da psicanálise e Watson, com a psicologia comportamental, tentaram atingir este objetivo. Faz ainda uma análise da questão da "normalidade" e "anormalidade", a partir de artigo publicado em O Pensador Selvagem.

Mais uma vez, minha contribuição para O Pensador Selvagem foi inspirada por colocações de um colega da linha comportamental. Refiro-me, no caso, à postagem intitulada “É normal ser “anormal”: o entendimento da doença mental de acordo com a análise do comportamento”, de Robson Faggiani, postado nesse site em 07/01/08.

Dada a extrema relevância dos questionamentos existentes em torno do conceito, minha contribuição será extensa e, provavelmente, dividida em sessões.

Consideremos o seguinte trecho do trabalho de Robson:

“Para os analistas do comportamento, os manuais de diagnóstico e as noções de doença mental e desvio são úteis ... No entanto, esses conceitos podem ser dispensados, pois...” (grifos meus).

Tentarei expor, com a máxima clareza, minhas posições em relação aos seguintes questionamentos, provocados pelo conjunto do referido trabalho e, particularmente, sobre o trecho acima transcrito:

(1) cabe ou não postular diferença entre, por um lado, “saúde mental” e “normalidade”, e, por outro, entre “doença mental” e “anormalidade”?;
(2) para a prática do psicólogo clínico e do psiquiatra, os diagnósticos de “desvio” e de “doença mental” são ou não são úteis?
(3) devem ou não ser dispensados?
(4) Em caso afirmativo, quando caberia dispensá-lo(s)?

Ponhamos mãos à obra.

Definir

Definir bem não é tarefa fácil. A pré-história de uma definição começa quando começamos a agrupar intuitivamente objetos como sendo de mesma natureza, a ponto de, em um determinado momento, nos darmos ao trabalho de lhes atribuir um nome comum, digamos, “esfera”. Stuart Mill (1806-1873) chamou esse primeiro momento de “denotação”.

Mas passar da denotação dos objetos a que atribuímos o nome de “esfera”, para chegar a definir o que exatamente eles têm em comum, afirmando que

“Esfera” (= definiendum) → “sólido gerado pela rotação completa de um semicírculo em torno de seu diâmetro” (= definiens).

ou seja, no léxico de Mill, a “conotá-los”, ah, isso é difícil!

Pois bem, “doença mental” é um definiendum razoavelmente bem “denotado”. Conhecemos duas respeitáveis listagens, o CID-10 e o DSM-IV – devidamente citadas por Robson – das entidades a que esse definiendum se refere. Mas... , e sua “conotação”? Onde podemos encontrar um definiens consensual para ele, para, a partir disso, teorizarmos sobre a utilidade ou não do conceito?

Bem, para dar uma resposta satisfatória a essa pergunta, sugiro darmos um passeio até o século XIX, quando a Psicologia começou a se constituir como ciência.

A vontade de ser “ciência” e a redefinição do psicológico.

Os feitos intelectuais de homens como Galileu (1564 -1642), Newton (1643-1727) e Darwin (1809-1882) fizeram que, em um período de três séculos, a credibilidade da visão científica do mundo se avantajasse crescentemente frente às visões filosófica e religiosa rivais.

A partir do século XIX, a Psicologia, para poder usufruir dessa credibilidade, entregou-se com especial denodo à tarefa de provar que era, por direito próprio, uma ciência e não um mero ramo da Filosofia, vendo-se defrontada, ao tentar fazê-lo, com o que entendeu ser sério obstáculo para isso: o método científico exige dados objetivos e, até então, o escopo dessa nova candidata ao panteão científico estava definido como sendo os “dados de consciência”, algo altamente subjetivo, para cujo acesso se dependia de um “instrumento de coleta” tão pouco confiável quanto a introspecção.

Dois pensadores destacaram-se na solução proposta para esse problema, soluções que tinham algo em comum: entenderam, no que estavam corretos, que, para tornar a Psicologia um empreendimento científico, era necessário livrá-la da consciência como sendo seu objeto de eleição. Foram antípodas, entretanto, na maneira em que tentaram realizar esse propósito.

Os pensadores a que me refiro são o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) e o psicólogo americano John Watson (1878-1958). O primeiro, tentou livrar-se da consciência passando para além dela, chegando a propor explicitamente que “o inconsciente é o verdadeiro psíquico”1, o que, como logo veremos, é uma supina bobagem. O segundo, tentou livrar-se dela ficando aquém, propondo que “psíquico = comportamental”, o que, como logo veremos, é outra.

E por que são duas bobagens? Por mais de uma razão, das quais me limito, no momento, a assinalar apenas uma: livraram a Psicologia de seu atrelamento exclusivo aos dados de consciência, mas não resolveram o problema do que é o psíquico. Com efeito, apenas “empurraram a questão com a barriga”, deslocando-a para outras arenas, nas quais essa questão novamente se impõe. Querem ver?

Comecemos por Freud. Um evento eletroencefalográfico do tipo “complexo ponta-onda” de três ciclos por segundo”, característico de um ataque do “pequeno mal” epilético, com conseqüentes queda e perda de consciência, é de natureza inconsciente? Claro, ninguém tem “consciência” de um complexo ponta-onda. É “psicológico”? Não. O bloqueio, em um paciente histérico, da ativação eletroquímica de determinadas áreas do cérebro associadas por aprendizagem, capaz de gerar queda e perda de consciência, é de natureza inconsciente? Claro. Ninguém tem “consciência” desse tipo de bloqueio. É “psicológico”? Sim.

Ora, se processos de per si inconscientes podem ser ou não psicológicos, ser inconsciente não é definição adequada para delimitar o objeto da Psicologia.

Alguém poderia sugerir: ora, podemos estabelecer que os processos inconscientes derivados de lesão, de infecção, de intoxicação etc. são neurológicos, os derivados de aprendizagem, são psicológicos. Infelizmente, não iria dar certo. Um traumatismo crânio-encefálico pode dar origem a uma “psicossíndrome cerebral localizada”, quadro consensualmente arrolado – “denotado”, segundo Mill – entre os de natureza psiquiátrica, não neurológica; uma intoxicação por chumbo pode produzir processos fisiológicos de per si inconscientes, originando um quadro neurastênico, de natureza psicológica, não neurológica; o treponema pallidum, a bactéria causadora da sífilis, se penetrar no parênquima do sistema nervoso, produz uma doença de natureza psiquiátrica, se no mesênquima, de natureza neurológica.

Conclui-se inelutavelmente do supra-exposto que “ser inconsciente” não só é critério insatisfatório para determinar a natureza psicológica de uma ocorrência, como também é inútil tentar separar o inconsciente psicológico do meramente neurológico mediante a constatação da presença ou ausência de lesão anatômica, infecções ou intoxicações. Deixemos Freud e passemos a Watson.

Da mesma maneira que, ao deslocar a questão relativa à natureza do psíquico para a dimensão inconsciente, Freud ainda ficou-nos devendo explicitar o critério que distinguiria o psicológico do não psicológico, o fundador da Psicologia Comportamental, ao desviá-la para a dimensão do comportamento, ficou-nos igualmente devendo um tal critério: por que comportamentos como a queda e a perda de consciência, se sintomas de histeria, são de natureza psicológica e, se de um pequeno mal epilético, são neurológicas? Ou por que os comportamentos produzidos pela ação do espiroqueta causador da sífilis no mesênquima do sistema nervoso não são considerados de natureza psicológica, enquanto os causados pela presença dessa mesma bactéria no parênquima do sistema o são.

Em suma: as definições freudiana e watsoniana de psicológico, portanto, são ruins. São ruins porque um bom definiens abrange todos os entes denotados pelo definiendum e nada além deles. Ora, como, frente ao exposto, “inconsciente” e “comportamento” compreendem fenômenos que não são usualmente denotados como psicológicos, tais definiens abrangem mais do que deveriam e, portanto, não preenchem a segunda daquelas condições para que sejam considerados satisfatórios.

Como conheço Freud a fundo, posso-lhes dizer que ele tem uma desculpa – não das mais honrosas, é verdade – para a bobagem que disse. Não conheço suficientemente Watson para saber se também terá uma. A desculpa de Freud é a de que ele mentiu. Não sei se apenas para os outros ou se também para si mesmo, mas ocorre que a definição de psicológico que de fato usa em sua prática teórica não é a que ele diz usar. A que verdadeiramente emprega, embora escamoteadamente, é a aprendeu de Franz Brentano (1838-1917), a cujas aulas de Filosofia assistiu logo de sua entrada na faculdade de medicina, em 1874. Definição essa muitíssimo superior àquela que explicitamente assume, mas que, dado o lamentável hábito de não reconhecer seus débitos intelectuais, escondeu. Voltarei a isso em uma postagem intitulada “Os Fundamentos Lógico e Empírico do Conceito de Inconsciente”.

Óbvio que quaisquer tropeços em relação à natureza do objeto da Psicologia irão respingar sobre os conceitos de saúde e doença mentais. Como estes meus comentários pretendem ser um contraponto às colocações de Faggiani, um herdeiro de Watson, deixarei temporariamente de lado os maus passos freudianos, para concentrar-me sobre os que vejo na postura comportamental. Na próxima seção desta série.

1 S. Freud, “Algumas Lições Elementares de Psicanálise” (1940/1938); in ESB, 1975, vol. 23, p. 321.

Terapias "rasas" e "profundas"

Sobre o autorO que é uma terapia psicológica "profunda"? A quem se destina? A terapia profunda é melhor do que a rasa?

Os comentários que se seguem foram inspirados pelo artigo, recentemente postado em “O Pensador Selvagem”, “Existe Profundidade de Análise e Intervenção na Terapia Comportamental?”, de Paulo Abreu, um colega psicólogo de orientação não psicanalítica.

Desse artigo, parece-me seminal o trecho a seguir:

“Freqüentemente tenho ouvido de alguns colegas psicólogos não-analistas do comportamento comentários sobre a terapia comportamental de que ela não é profunda, ou seja, não foi desenhada para atentar para os problemas existenciais mais próprios do ser humano. Interessante notar que essas mesmas pessoas têm me encaminhado seus clientes mais difíceis por não terem tido êxito no tratamento.”

Esse trecho aceita o pressuposto se uma terapia ajuda um paciente, ela é “profunda”. Esse pressuposto é falso e, constrange-me dizer, tem origem na “tribo” psicoterápica a que pertenço – a dos psicanalistas - mas com a qual freqüentemente me atrito.

Vou defender aqui a hipótese de que, na verdade, quanto mais “difícil” um paciente, tanto mais será bem servido por um terapia “rasa”, em vez de sê-lo por uma “profunda”. Se esse ponto de vista estiver correto, em nada espanta que”, quando se defrontam com pacientes que consideram “difíceis”, terapeutas de orientação não comportamental recorram a terapeutas comportamentais, a despeito de não os considerarem “profundos”. Para sustentar essa afirmação, consideremos o caso seguinte:

X tem um surto psicótico e é internado. Sua mãe vai visitá-lo e, durante a visita, ele explicita que a odeia e tenta estrangulá-la. Submetido a tratamento, recebe de novo, tempos depois, sua mãe. Trata-a perfeitamente bem, mas diz tanto a ela quanto a outros, que ALGUÉM ESTÁ COM A INTENÇÃO DE AGREDI-LA.

Creio haver consenso sobre que, quando X estava consciente de seu ódio em relação à própria mãe e pulou em seu pescoço para estrangulá-la, estava mais “difícil” do que quando a tratou bem, embora abrigando a idéia delirante de quem alguém queria agredi-la.

Pergunta-se: naquela primeira fase desse paciente, que sentido haveria em um psicanalista interpretá-lo, dizendo: “NO FUNDO, o senhor estava sentindo raiva de sua mãe e querendo estrangulá-la”?

Que FUNDO? O paciente estava perfeitamente consciente de seu ódio pela mãe e de seu propósito de matá-la! Pacientes muito regredidos TÊM SEUS PRINCIPAIS PROBLEMAS NO RASO, não no fundo e, como tal, é o raso que tem que ser tratado, sendo muito mais indicadas intervenções objetivas, de tipo comportamental, do que interpretações psicanalíticas!

Está já mais do que na hora de que as várias escolas psicoterápicas comecem a reconhecer que suas técnicas são mais eficientes para UM DETERMINADO TIPO DE PACIENTE do que para outros. Freud tinha essa humildade. Boa parte de profissionais e não profissionais se esquecem ou deixam deliberadamente de lado o fato de que ele fazia “análises de prova” com os candidatos a serem atendidos por ele, para determinar se esse candidato era SUFICIENTEMENTE SAUDÁVEL para poder aproveitar de um tratamento “profundo”.

Acontece que a Psicanálise virou grife, grife vende bem e, como a Psicanálise é “profunda”, ser “profundo” passou ser algo valorizado por si mesmo. Arrematada sandice. Ser “profundo” é útil para determinado tipo de pacientes, não para todos, particularmente não para os mais graves. Acho que psicoterapeutas de orientação não psicanalítica, como Abreu, se defenderiam melhor dessa distorção, defendendo não a posição de que são “profundos”, mas o cabimento e necessidade de sermos “rasos” no tratamento de um sem número de distúrbios psicológicos. Principalmente no dos mais “difíceis”.

Toda Supermãe gera Infrafilhos...

Sobre o autorÉ de Millôr Fernandes a frase que encabeça este artigo. Índio morre de gripe, pois, por não ter sido exposto aos vírus que a produzem, carece de imunidade contra essa afecção. A maioria dos vinte milhões de indígenas sul-americanos que faleceram durante o período de menos de trinta anos que se seguiu à conquista do México, não pereceu à custa das armas espanholas, mas dos vírus e bactérias importados da Europa e contra os quais não possuíam defesas. Enquanto, até o século XIX, a falta de higiene era responsável por enorme parte da mortalidade humana, o establishment médico de nossos dias começa a externar sua preocupação com a quantidade de crianças que, tendo sido submetidas a um excesso de higiene, ficaram tão limpinhas, tão limpinhas, que não conseguem desenvolver imunidade contra micróbios incapazes de vitimar as gerações que as precederam.

A prática psicanalítica demonstra que análogo processo ocorre na dimensão psicológica. Digamos que uma mãe cujo filho acaba de lhe revelar seu medo de ser transferido para uma turma muito mais numerosa do que a em que anteriormente freqüentava reaja com um aparentemente benéfico comentário, do tipo: “Que bobagem, meu amor, você agora, em vez de poucos amiguinhos, vai ter muitos mais!” e que já outra reaja de modo diverso, respondendo o seguinte: “Ah, sim? O que exatamente lhe assusta na idéia de passar para uma turma maior?”.

A maior parte das pessoas não se dá conta de que a primeira dessas mães está dificultando que filho entre em contato com o próprio medo e, com isso, reduzindo sua capacidade de processá-lo psicologicamente, para, a partir daí, desenvolver as imunidades que lhe permitiriam lidar adequadamente com ele. Já a resposta da segunda, ao facultar esse contato, abre espaço para tal processamento, favorecendo o desenvolvimento dos repertórios que permitirão melhor manejo daquela emoção.

Com efeito, excesso de proteção contra o contato com emoções desagradáveis gera o que nós psicólogos chamamos de baixo limiar de frustração: uma falta de tolerância àquele tipo de emoções que leva o sujeito a ficar paralisado ou desorganizar seu comportamento quando defrontado com elas.

A incapacidade de suportar emoções desagradáveis tem, pelo menos, três grandes efeitos, que listo do mais freqüente até o relativamente raro (mas não menos alarmante).Ela produz:

a) personalidades neuróticas, principalmente fóbicas, incapazes de desenvolver suas potencialidades com plenitude;
b) toxicômanos potenciais, em particular adolescentes, tornados altamente vulneráveis ao apelo das drogas por lhes fornecerem elas uma temporária proteção contra o sofrimento, com toda a conhecida e lamentável pletora de conseqüências associadas a essa enganosa proteção;
c) assassinatos em massa, chocantes episódios nos quais alguém, o mais das vezes de classes privilegiadas, mas criado de forma a ser incapaz de tolerar as menores vivências de fracasso, sobe em plena luz do dia em uma torre e, sem nenhum ganho pecuniário nem de vingança pessoal, fuzila transeuntes desconhecidos para, em seguida, em vez de fugir, entregar-se à polícia ou atentar contra a própria vida.

Corre entre os judeus a estória de que Golda Meir, a famosa premier israelense, soía brincar, dizendo que Moisés tinha sido, de fato, um grande líder, pois tinha conseguido tirar os judeus do Egito e levá-los para o único lugar do Oriente Médio onde não havia petróleo... E que tem petróleo a ver com supermães – ou pais – e infrafilhos?

Para entendê-lo, façamos uso do seguinte trecho de entrevista concedida à revista Veja por José Murilo de Carvalho, um de nossos mais perpicazes historiadores:

“VEJA – Lula ainda teve a sorte da descoberta do campo de petróleo de Tupi...
Carvalho – ... É uma boa notícia, mas também representa um alto risco, porque o petróleo pode ser uma maldição. Se as reservas forem do tamanho previsto e puderem de fato ser exploradas, haverá uma tentação muito grande: a de se usarem os recursos para fins paternalistas dentro do Brasil e em projetos aventureiros fora dele, como faz Hugo Chávez. Temo pelo afogamento da República num mar de petróleo, quando penso nas conseqüências internas: ... um país transformado num imenso INSS, a antítese do ativismo cívico.” (Veja, ed. 2040, ano 40, n. 51, p. 15; grifos meus)

Penso que, se a nossas considerações sobre a frase de Millôr acrescentarmos as de Murilo de Carvalho e as que se atribuem a Golda Meir, chegaremos ao consenso de que não apenas supermães criam infrafilhos, como também superestados criam infracidadãos.

Parece que os fatos não comprovam o que o velho ditado latino quod abundat non nocet – o que abunda não prejudica – pretendia sustentar.

FUNDAMENTOS PSICOLÓGICOS DA DEMOCRACIA

Causa espécie, mas existe um fato candidato à posição de o mais significativo, dentre todos, para a história humana. O fato a que me refiro é a assombrosa ACELERAÇÃO DA EXPECTATIVA DE VIDA ocorrida nos últimos duzentos anos. Se causa espécie podermos apontar um único fato como o mais importante, entre todos, para o humano, mais espécie causa ainda quão pouco esse fato tem sido aproveitado para a compreensão das viscerais transformações ocorridas, por conta dele, na natureza da cultura.

Com o fito de preencher essa lacuna, lancemos mão de uma lei psicológica, tão inescapável quanto qualquer lei da Física, qual seja: “Redução de ameaça gera descentralização dos processos decisórios”. Certas coletividades primitivas, que só elegem chefe e a ele obedecem, em situação de guerra, são o exemplo mais gritante dessa lei.

Ora, o salto, em duzentos anos, nos países chamados desenvolvidos, de uma expectativa de vida de trinta e cinco anos (século XVIII) para uma de mais de setenta (século XX), queiram ou não os profetas do caos, implica, de forma inescapavelmente concreta, uma redução radical e inédita do nível de ameaça a que está concretamente sujeito o indivíduo humano, o que, segundo a lei psicológica supra-exposta, nos levaria a prever a ocorrência de uma maciça descentralização dos processos políticos ao longo do período em pauta.

Com efeito, se observamos os anos que medeiam duas datas de inegável carga simbólica – 1789, Queda da Bastilha, e 1989, Queda do Muro – período que, por representar um verdadeiro “turning-point” antropológico, chamarei de “Os Grandes Duzentos” – constatamos que, antes deles, eram regra as autocracias, hereditárias ou ideológicas, e, depois deles, as democracias, republicanas ou não.

A relação entre medo e centralização decisória é – de forma ora mais, ora menos, consciente – parte do conhecimento psicológico de todos nós. Qualquer ditador sabe como seus propósitos centralizadores são favorecidos pelo perigo e, se esse último cai por demais, ocupa-se imediatamente de tentar reintroduzi-lo, como recurso para se perpetuar no poder. Episódios de nossa história, como o da bomba no Rio-Centro e a igualmente frustrada tentativa de explodir o gasômetro, são exemplos disso e até o inocente papai ou mamãe que acena ao filho com o “bicho-papão” não está mais do que operando a partir de iguais premissas e propósitos. Ocorre, no entanto, que, à parte as tentativas dos autocratas de manter um nível de perigo que os sustente no poder, a própria descentralização, operada sem obediência a certas condições, é capaz de re-introduzir o perigo, provocando novo ciclo centralizador. Alegres “porres” democráticos são freqüentemente patrocinadores de tristes “ressacas” reacionárias. O exemplo mais próximo e exuberante disso foi o período de conservadorismo político-ideológico que se fez seguir ao clímax libertário de 68. De forma lamentavelmente irônica, os Charles De Gaulle e os Richard Nixon, são eternos beneficiários dos Jimmie Hendrix e das Jane Joplin...

Mas retornemos à linha básica de nossa argumentação. Se nenhum cataclismo planetário nos remeter globalmente de volta a níveis de expectativa de vida anteriores ao dos Grandes Duzentos, podemos, amparados na lei psicológica supramencionada, prever que o PROCESSO DESCENTRALIZADOR (1) veio para ficar e (2) está longe de se haver completado. Isso posto, seria de indiscutível bom alvitre que (3) tivéssemos clareza sobre quais são as condições necessárias para que essa transição possa ocorrer da maneira o menos dolorosa possível e que (4) alguma teoria nos ensinasse o que deve ser feito para que tais condições sejam preenchidas.
Quanto às condições necessárias para que o inevitável processo de descentralização apresente uma boa relação custo-benefício, elas, na verdade, resumem-se a uma só: se parcelas anteriormente centralizadas de poder decisório estão e continuarão sendo, cada vez mais, distribuídas pela massa dos indivíduos que compõem cada sociedade, a condição de sucesso dessa descentralização é o aperfeiçoamento da capacidade decisória desses indivíduos.

Estabelecida a condição, cumpre saber como implementá-la. Temos, no armazém das ciências humanas, alguma teoria que nos oriente sobre como fazê-lo? Bem, teríamos... “Teríamos”?

Somos, aqui, remetidos a um velho e bom dito de Oscar Wilde, qual seja: “os remédios dos homens são contaminados pelas próprias doenças que pretendem curar”. A teoria capaz de nos oferecer suporte científico para patrocinar um desdobramento azeitado do processo descentralização foi gerada no coração dos Grandes Duzentos, período em que a luta entre forças centralizadoras e descentralizadoras chegou a seu cume. Assim sendo, essa teoria terminou por tornar-se vítima do próprio processo antropológico-cultural que a gestou. A divulgação de suas descobertas foi de tal forma distorcida que ela se tornou inútil, quando não deletéria, para administrar a transição descentralizadora.

Examinemos isso: A doença mental é, em sua essência, uma disfunção dos processos decisórios. Se o sucesso da democracia depende do bom funcionamento desses processos, é rasteiro exercício dedutivo concluir que os regimes políticos descentralizados, como garantia de sua própria sobrevivência, deveriam ter como meta prioritária o combate à doença mental, a maior corruptora dos processos psicológicos de que devem se alimentar tais regimes. Essa afirmação exige ser qualificada.

As sociedades anteriores aos Grandes Duzentos – e todas aquelas que, ainda hoje, apresentam expectativas de vida características daquela época – organizam-se de acordo com o que chamei de “culturas de sobrevivência”: culturas politicamente centralizadas, aguerridas e, conseqüentemente, dominadas pelo macho, marginalizadoras do fraco, exaltadoras do sacrifício e da obediência. As posteriores àquele período – e que conseguiram duplicar, ou quase, sua expectativa de vida – começaram a organizar-se de acordo com a matriz antropológica a que denominei de “culturas de bem-estar”: politicamente descentralizadas, cooperativas, integradoras do feminino e do desvalido, valorizadoras da autonomia e do prazer.

Por que a Psiquiatria do século XVIII, clara expressão de uma “cultura de sobrevivência”, volta-se para a psicose e mal se interessa pela neurose, enquanto a do século XX – posterior à “pororoca antropológica” a que me venho referindo e fruto dos primeiros passos de uma “cultura de bem-estar” – reconhece a importância dessa última? A resposta é simples: a disfunção psicótica é suficientemente grave para perturbar até a função psicologicamente primária de reproduzir e obedecer, alto valor para uma “cultura de sobrevivência”, enquanto o neurótico, razoavelmente capaz de desempenhar tal função primária, apresenta principalmente atingidas a qualidade de sua autonomia decisória e a sua capacidade de ser feliz, traços centralmente relevantes apenas para sociedades que ascenderam a uma “cultura de bem-estar”.

Disse, acima, que “teríamos” uma teoria capaz de nos oferecer suporte científico para patrocinar um desdobramento azeitado do processo descentralização. Já nos encontramos aparelhados para desvendar esse “teríamos”. Produto típico do divisor-de-águas antropológico representado pelos Grandes Duzentos e operacionalizadora da “Umwertung aller Werte” (transmutação de todos os valores) que havia sido trovejada por Nietzsche, a Psicanálise anunciou, bem a meio daquele período, sua descoberta essencial: repressão causa neurose. Ora, sendo a neurose a mais universalmente difundida causa de perturbação dos processos decisórios, essa teoria deveria ter servido para orientar as políticas de saúde com o objetivo de alçar o nível de capacidade decisória da população.

E serviu? Não. Por quê? Por que, como adumbramos acima, o conceito de repressão foi, ao ultrapassar os limites do meio profissional onde foi gerado (e, em certa medida, mesmo dentro dele), de tal forma distorcido que se tornou inútil para cumprir a tarefa a que, por vocação, se destinava.

Com efeito, todo – sublinhe-se que eu disse todo – o cidadão comum (e alguns profissionais) a quem, até hoje, perguntei o que era “repressão”, “reprimir”, “reprimido”, etc. responderam-me com alguma variação da afirmativa de que reprimir é “impedir que alguém faça algo que está querendo fazer”. Esse tipo de compreensão, aplicado à afirmação freudiana – supostamente científica e, portanto, supostamente útil – de que “repressão causa neurose”, transforma-a na gloriosa asnice de afirmar que, para que uma pessoa não fique neurótica, é necessário que se permita a ela fazer o que bem entende.

Não é difícil prever que uma política de saúde mental assentada sobre tal compreensão deformada do conceito nos levaria, fatalmente, a múltiplos e orgásticos 68s, a múltiplos e lamentáveis óbitos por overdose e a múltiplos – e não de todo injustificados! – governos conservadores, por reação. Como é de conhecimento público, essa desastrosa distorção do mais fundamental dos conceitos psicanalíticos já deu fundamento a pedagogias que transformaram crianças em pequenos monstros e a tratamentos pseudo-psicanalíticos que confundiram saúde com falta de educação. Quando não pior...

Deixemos isto claro: permitir, na área psicológica, que repressão seja entendida – como vem sendo até agora – com “não poder fazer” é algo tão criminoso quanto seria, na área médica, permitir à população confundir micróbios com vitaminas. Faz-se mister que os profissionais da área da saúde mental iniciem uma ação concertada e sistemática para reparar a inércia com que têm aturado tal destruição da mais importante descoberta psicológica do século XIX. Todo “blá-blá-blá” atual relativamente à crise da Psicanálise nos seria poupado, fosse entendido que a verdadeira raiz dessa crise é a insidiosa degradação do conceito de repressão, que, corretamente entendido, nada mais designa do que a impossibilidade de expressarmos verbalmente o impacto que os estímulos internos e externos tem sobre nós.

A restrição da representação de nossa experiência em nível verbal acaba produzindo uma restrição de nossa inteligência, o que fatalmente atinge a qualidade de nossos processos decisórios. Dessa disfunção decisória, através de mecanismos psicológicos bem definidos, nascem todos os outros sintomas da neurose: obsessões, compulsões, fobias, conversões, etc., etc..

A liberação da palavra, contudo, também tem suas regras, mas regras suficientemente claras e simples para poderem ser postas ao alcance da população de forma a permitir que a Psicanálise saia dos consultórios e atinja seu verdadeiro objetivo, que é o de ser um agente catalisador do processo democrático, micro e macropoliticamente. Até o momento em que isso ocorra, a população, ávida de orientar-se em um mundo em que as regras de conduta não mais se resolvem por “tábuas da lei”, continuará a entupir-se de uma literatura de auto-ajuda dividida entre uma Psicologia do Faz-de-Conta que nos propõe acreditarmos estar bem, quando estamos mal, e uma Psicanálise interpretativo-masturbatória, que tudo explica, mas pouco resolve.

quarta-feira, janeiro 30, 2008

DIÁLOGOS : LVII. O NEGOCIÁVEL E O INEGOCIÁVEL.

MIGUEL: — Você está me achando chato?
LC: — Posso?
MIGUEL: — Não. Claro que não?
LC: — Por quê?
MIGUEL: — Ué, porque não! Eu não me sinto bem com a idéia de que você está me achando chato!
LC: — E você acha que essa análise irá sobreviver se você quiser optar por só ter, durante as sessões, idéias cujo conteúdo faz você se sentir bem?
MIGUEL: — Não vai dar certo, né?
LC: — Não, não vai.
MIGUEL: — Mas eu vim aqui para me sentir bem, não para me sentir mal.
LC: — Você sabe o que acontece, quando você processa verbalmente uma emoção desagradável?
MIGUEL: — Não.
LC: — Você sente alívio, paz. Esse é o tipo de PRAZER que se pode legitimamente querer obter de uma análise. Mas imagino que você também não saiba qual o tipo de DESPRAZER provocado por você tentar evitar o contato com uma emoção ou sentimento desagradável.
MIGUEL: — É, não sei.
LC: — Angústia, ansiedade e stress, que, por vezes, se transmudam em depressão. É disso que você pode se livrar tendo coragem de enunciar e processar verbalmente vivências desagradáveis. Já está disposto a enfrentar o incômodo de pensar que eu estou pensando que você é um chato?
MIGUEL: — Tá. Já. Me convenceu. Libero você para me achar chato.
LC: — Obrigado.
MIGUEL: — De nada.
LC: — Antes de você continuar, quero acrecentar alguns comentários ao que conversamos.
MIGUEL: — Tudo bem.
LC: — Quero assinalar dois pontos. O primeiro tem a ver com o que você acabou de falar: Você me “liberou” para lhe achar chato. É interessante saber que esse seu comentário diz respeito a uma das formas em que pode ser descrita a cura, qual seja, dizendo que o paciente idealmente curado, ou idealmente saudável, é aquele que liberou o terapeuta para pensar o que ele quiser. Isso porque, uma vez que o paciente libera o terapeuta, ele, paciente, sai liberado e não mais precisa ficar na situação de se impedir de expressar algo, pensando: “Não, se eu disser isso, ele vai pensar aquilo e eu NÃO QUERO QUE ELE PENSE ASSIM”. Na verdade, ao querer paralisar a mente do terapeuta, o tiro sai pela culatra, e é o paciente que fica paralisado. Certamente você adquiriu um pouco mais de liberdade para os seus pensamentos por me haver liberado para achá-lo chato. O segundo ponto que quero assinalar é que nossa cultura tem o pernicioso hábito de propor que certas emoções e sentimentos NÃO DEVEM SER SENTIDOS, que sentir raiva é “feio”, sentir ciúme é “feio”, sentir inveja é “feio” etc., etc. O que é importante não é sentir ou deixar de sentir ciúme, inveja ou raiva, o importante é saber se, ao experimentar esses sentimentos – ou quaisquer outros – é você que tem ciúme, ou O CIÚME QUE TEM VOCÊ, se é você que tem inveja, ou A INVEJA QUE TEM VOCÊ, se é você que tem a raiva, ou A RAIVA QUE TEM VOCÊ. Em suma: se, ao experimentar essas emoções, você é avassalado por elas, que passam a comandar sua maneira de agir, ou se você consegue agir da maneira mais adequada para o contexto em que você está inserido, a despeito de as estar experimentando. Aqui, por exemplo, em análise, a conduta adequada é você falar o que lhe está vindo à cabeça. Se você pensa, por exemplo, “O doutor deve estar me achando um chato, ENTÃO VOU MUDAR DE ASSUNTO” é o medo de ser considerado um chato que está mandando em você. Se você pensa que eu posso estar achando você um chato, mas considera, por exemplo, “Bem, isso não é agradável, mas quem mandou ele resolver ser analista e mandar eu dizer o que vem à minha cabeça? Vou dizer a ele que estou com medo que ele me ache um chato e, em seguida, continuar a dizer o que estava dizendo”, então é você que está mandando no medo, não ele que está mandando em você.
MIGUEL: — Caramba, gostei de entender isso! Acho que agora vai ser mais fácil fazer análise.
LC: — Legal.
Para finalizar, aproveitemos o diálogo acima para esclarecer um princípio da técnica freudiana cuja compreensão é freqüentemente distorcida. Refiro-me ao princípio de que o analista deve ser NEUTRO.
Comecemos pelas distorções. A maior delas é confundir “neutralidade” com “indiferença”, com “distância emocional”. É um absurdo que um analista se proponha a meta de NÃO SE IMPORTAR com o que acontece a seu paciente. E, como treinei vários estudantes e profissionais na técnica freudiana, sei que vários deles começam sua atividade clínica fazendo se propondo tal absurdo. Aqui, a meta é aquela que apontamos no fim de nosso diálogo com Miguel: o analista pode se dar ao direito de experimentar toda e qualquer vivência que o paciente desperte nele, mas cumpre ELE TENHA a vivência, não que ELA O TENHA. Ou seja, se uma emoção MANDA EM MIM, se, por exemplo, me estou condoendo com a dor de um paciente, posso ser levado a agir de forma a parar seu sofrimento – para parar o meu! – em um momento em que o tecnicamente indicado seria permitir que ele experimentasse sua dor até o fim; se eu, não minhas emoções, MANDO EM MIM, sou capaz de continuar agindo da maneira tecnicamente correta a despeito de manter-me capaz de reconhecer que a dor do paciente está-me atingindo também. A meta da neutralidade, portanto, nada tem a ver com indiferença.
Posto isso, podemos chegar a uma definição adequada de neutralidade: “é a capacidade de ouvir de receber de forma IGUALMENTE NATURAL todo o tipo de comunicação do paciente, agrade ela, ou não, ao analista”.
Neutralidade, portanto, significa não haver um tipo de TRATAMENTO PREFERENCIAL, em que as comunicações do paciente que agradam ao analista são bem acolhidas e as que não agradam são objeto de rejeição. Talvez, de forma sintética, pudéssemos definir a neutralidade psicanalítica como:
IMPARCIALIDADE DE ESCUTA..