sexta-feira, junho 13, 2008

O conceito de doença mental: natureza e função - pt 4

Skinner – se bem entendi Robson Faggiani, que afirma segui-lo nisso – entende que não vale a pena nos cansarmos para tentar distinguir conceptualmente o neurológico do psicológico.
Um singular episódio ocorrido dezenas de anos atrás em uma clínica neurológica do Canadá pode auxiliar-nos a refletir sobre essa postura. Vejamos:

A tal clínica pegou fogo. Frente a esse apuro, um seleto grupo de pacientes paralíticos ali internados milagrosamente “curou-se”, saiu correndo e escapou dele, enquanto os menos afortunados lá ficaram, à mercê das chamas. Findo o episódio, concluiu-se que as paralisias daquele seleto grupo eram de natureza psicológica – mais exatamente, histérica – não neurológica, tendo sido eles conseqüente – e, diga-se, mui adequadamente – derivados para outro tipo de tratamento. Psicoterápico, é claro.

Pergunto: de fato, não parece aos que sustentam a postura “anti-classificatória” atribuída por Robson a Skinner – e nele seguidor dela – que ficaria melhor tentarmos desenvolver instrumentos de diagnóstico diferencial entre o psicológico e o neurológico mais sofisticados do que pôr fogo em clínicas?

Se Robson e Skinner acham que não, eu, tentando ser eufêmico, os consideraria, no mínimo, muito corajosos...

Uma digressão: “cognição” como um substituto tímido de “consciência”

Freud privilegiou o inconsciente como sendo “o” psicológico, os existencialistas continuaram privilegiando o consciente, os behavioristas o comportamental. A Psicologia só vai libertar-se das distorções produzidas por essas posturas enviesadas, quando se reconhecer – e parece-me que Freud foi o que mais perto chegou disso – que o psíquico transcende a área em que se expressa, algo que deixo explícito em minha próxima contribuição, que fala dos fundamentos lógicos e empíricos do conceito de inconsciente.

Perigo em dizer bobagem – o que não me assusta, já que, havendo alguém mais douto do que eu, deverá estar pronto a corrigir-me – mas abrigo a impressão de que os psicólogos comportamentais já estão começando – embora de forma envergonhada – a perceber a bobagem que fizeram em alijar a consciência como objeto de seus cuidados e debatem-se para tentar “sutilmente” reintroduzi-la, mediante o uso da palavra “cognitivo”.

Com efeito, recebi propaganda de um grupo de behavioristas dessa “cepa arrependida” que oferece um curso de formação de psicoterapeutas em “Psicologia Cognitiva”. Só – e timidamente – em alguns dos itens do curso vê-se a palavra “comportamental”, mas, para quem sabe ler, fica óbvio que esses “acertos verbais” apenas indicam que estão tentando livrar-se (o que é bom) disfarçadamente (o que é feio) da “objetividade idiota” implicada em pretender teorizar – não “a partir de” – mas “apenas sobre” o observável.

Esmiuçando tal impressão eu diria que os comportamentistas:

estão regredindo à velha Psicologia da consciência;

vão acabar se enrolando

porque entre o que “é dito” (o observável: p.e., um pastor da Igreja Universal diz que quer o seu dinheiro para ajudar a você) e o que “é cognoscido” (o inferido: p.e., que esse pastor da Igreja Universal tem perfeita consciência de que quer seu dinheiro para ajudar não a você, mas a si próprio); e, mais ainda, e

porque tal pastor pode estar “cognoscendo-se” como veraz (= consciência) enquanto a si próprio engana (= inconsciente); e, já que

tanto as “cognoscências” conscientes e quanto as inconscientes (se tiverem suficiente engenho e arte, eles chegam lá) são inferidas e só se assumissem que inferem – o que seu positivismo jurássico não lhes permite – é que os levaria manejar corretamente os critérios metodológicos necessários para diferenciar (Haeckel) quando estão inferindo bem de quando estão inferindo mal.

Até serem capazes de reconhecer tudo isso vão ter que recorrer a muitos malabarismos verbais – a “cognição” é o carro chefe disso, seguida de perto por se estarem nomeando de “analistas” e pretenderem ser “profundos” – para tentar reintroduzir a consciência e o inconsciente (que já está na fila) como objeto da Psicologia, enquanto fingem que não o estão fazendo.

Feita essa digressão, voltemo-nos sobre a tentativa de construir conceitos de doença e saúde mentais menos “monstruosos” do que os paridos pela Psicologia Comportamental.

A criança que merece não ser jogada fora junto com a água suja da banheira

Defendemos até aqui que um conceito de “doença mental” que

(1) não diferencia “neurológico” de “psicológico” e

(2) identifica “doença” com “desvio”

é uma verdadeira “catástrofe teórica” e que pessoas, como Robson, que, se não cuidam de melhorá-lo, pelo menos se esforçam por livrar-se dele, não fazem mais do que mostrar seu bom-senso.

Mas, será possível tal melhoria? Haverá um conceito de doença psicológica que, formulado, auxilie, em vez de dificultá-la, nossa atividade como psicoterapeutas? Haverá, nessa banheira, uma criança se mereça separar (Haeckel) da água suja?

Creio que sim e passo a declinar esse conceito, embora o faça, para não cansar meus leitores, de maneira algo grosseira, a espera de contestações que me levem a refiná-lo. Vamos a isso.

Se algo nos parece desejável, vale a pena conceituá-lo de forma ”ideal”. Não é senão por isso que a Física abriga o conceito de “motor sem atrito” – algo que obviamente inexiste – a Química o de “gás ideal” – também assim – a Economia o de “mercado perfeitamente accessível” – assim também – etc..

Para que servem tais conceitos sobre o “inexistente”? Para

(1) ao escoimar o conceito das imperfeições da realidade, pôr a claro quais são seus elementos essenciais;

(2) ordenarmos o existente relativamente a seu afastamento desse inexistente ideal;

(3) decidirmos o quanto, nas circunstâncias em que nos encontramos, tal afastamento é aceitável ou merece ação que pretenda reduzi-lo.

Se entendemos, portanto, que “saúde mental” é algo desejável, devemos idealizá-la e, a partir disso, determinar qual nível de afastamento dessa metal ideal passaremos a considerar digno de intervenção corretiva, chamando-o de “doença”.

A criança que não existe e, a despeito disso, não merece ser jogada fora junto com a água da banheira

Construamos, portanto, a seguinte “idealização”:

Saúde mental = capacidade de, dentro dos limites impostos pelo entorno, otimizar prazer e sobrevivência.

[quase disse capacidade de “cognoscer o que otimiza prazer e sobrevivência”, mas achei que era implicância demais]

Quaisquer afastamentos dessa meta que um determinado momento de uma determinada cultura considerar relevantes será considerado “doença mental”. Como bem assinalou Robson Faggiani – ou Paulo Abreu, não me recordo bem – a homossexualidade já foi considerada um afastamento relevante do ideal de saúde e, portanto, nomeada como doença, sendo que, hoje, já não é mais.

Dentro da visão, derivada de Haeckel, de que uma entidade conceptual evolui na exata medida em que se diferencia e integra os elementos diferenciados, o conceito de “doença mental (ou psicológica)” diferenciou e integrou os seguintes conceitos:

Sintoma – a menor unidade de análise nosológica (“nosos”, em grego, significa “doença”, donde “nosologia”, por direito, significa o estudo delas; a palavra “patologia”, normalmente empregada para isso, serve, por razões sobre as quais não me estenderei aqui, bastante mal a seu propósito, pelo que não a empregarei). A taquicardia, aceleração excessiva do ritmo de batimentos cardíacos, é exemplo de sintoma;

Síndrome – conjunto de sintomas que tendem a ocorrer simultaneamente. Seve de exemplo a Síndrome de Pânico, que abrange, para além da citada taquicardia, outros mais como vivências paroxísticas de ansiedade, tremores, tensão muscular, sudorese, tonturas, dispnéia, dispepsia, polaciúria etc.

Etiologia – a causa da doença. A síndrome de pânico, por exemplo, pode ocorrer, entre outras, na doença mental – “entidade nosográfica” em termos técnicos – classificada na última versão (a décima) do capítulo (o quinto) do Código Internacional de Doenças (CID-10) com o registro de F10, sob a denominação de “Transtornos Mentais e de Comportamento decorrentes do Uso de Álcool”. A causa – ou etiologia – aqui é, na verdade, a abstinência, não o uso, dessa substância psicoativa.

Patogenia – o processo interveniente entre a causa e a produção da síndrome (Robson, em uma de suas colaborações, define, a meu ver enganosamente, como etiologia o que, na verdade, é patogenia). Exemplifiquemos: o álcool é uma substância depressora no que diz respeito ao funcionamento do sistema nervoso. Seu uso exagerado e contínuo leva esse sistema a, numa tentativa de contrapor-se a tal influência, aumentar cronicamente a produção de substâncias químicas naturalmente estimulantes (como a serotonina e a noradrenalina, “parentes” químicos da adrenalina). Quando o “freio” alcoólico é retirado pela abstinência, essa superprodução adrenalinomimética continua, tendo por resultado o aparecimento da hiper-estimulação típica da síndrome em questão.

Pois bem, o que acontece quando, seguindo propostas behavioristas como as de Skinner – apud Robson – optamos por dispensar o conceito de doença mental, com as diferenciações que acabamos de arrolar? Acontece o seguinte:

As dimensões diagnósticas

Sei que a formação de psicólogos no Brasil é de qualidade deplorável. Mas, a despeito de sabê-lo, não estava preparado para o que me relatou um de meus pacientes, estudante de Psicologia. Disse-me que, em uma das provas a que foi submetido, encontrava-se a questão:

“Síndrome de Pânico” é sinônimo de ...

A resposta correta, segundo o professor da matéria, seria “Transtorno de Pânico”.

A ignorância sobre a natureza, etiologia e patogenia da aludida síndrome são tão universais que, imagino, a maior parte de meus leitores leigos não terá entendido o porquê de meu escândalo frente ao que me foi relatado. Com o que já falamos até aqui, posso trazê-lo à luz.

“Síndrome” – conjunto de sintomas que, como definimos acima, soem ocorrer simultaneamente – não é, de modo algum, sinônimo de “transtorno”, que, no vocabulário especializado – que, obviamente é o que cabe usar em um exame acadêmico – corresponde a “doença”, entidade que, diferentemente de “síndrome”, tem compromissos – hipotéticos que sejam – patogênicos e etiológicos.

Quais as conseqüências práticas de que se perca tal diferenciação?

São graves. Para os pacientes, não para os psicoterapeutas ou para a indústria farmacêutica, mas, para bem avaliar essas conseqüências, vale diferenciar e integrar os vários níveis em que ocorre um psicodiagnóstico, já que a gravidade delas atinge a certos níveis mais do que a outros. São eles:

Macrodiagnóstico – neste nível – seja por técnicas mais sofisticadas, que reconhecem a importância do conceito de doença mental e são capazes de diferenciá-las, por exemplo, das neurológicas, seja por técnicas mais primitivas como, por exemplo, pôr fogo em clínicas – decidimos se, por exemplo, uma paralisia é de natureza psicológica (histérica) ou neurológica;

Mesodiagnóstico – tendo-se decidido – mediante incêndios ou outras técnicas – que uma doença é de origem psicológica, e, portanto, deve ser tratada psicoterapicamente, cumpre decidir se a abordagem mais adequada é “rasa” (de índole comportamental) ou “profunda” (de índole psicanalítica). Não exporei aqui os critérios que determinam tal decisão, mas posso adiantar, grosso modo, que, quanto maior a gravidade da doença, tanto mais “rasa” deve ser tal abordagem. Note-se, também, que o curso do tratamento poderá requerer a mudança de uma abordagem “rasa” para uma abordagem “profunda” ou vice-versa. E também que, ao tratar pacientes mais graves, soi-disants psicanalistas trabalham em nível patentemente comportamental (no que fazem bem), embora escondam isso (no que fazem mal).

Microdiagnóstico – Ainda estagiário, evitei que um menino de 6 anos, com grave dislalia, fosse enviado, na clínica da PUC-RJ, para tratamento psicoterápico, porque, contrariando minhas duas supervisoras, insisti que ele padecia (“paciente” não significa, como parece supor Robson, “aquele que é passivo”, mas sim “aquele que padece”, ou seja, “sofre”) de uma doença de natureza neurológica e não, como queriam elas, de natureza psicológica.

Eu tinha razão: o menino apresentava uma forma frustra da paraplegia espasmódica familiar de Strümpel, o que lhe brindara com um véu palatino escavado, responsável por sua dislalia. Seu atendimento prioritário, obviamente, era o fechamento de sua fenda palatina e não o resgate de suas profundidades edipianas ou a rasa aplicação de reforços positivos, quando falasse bem e negativos, quando falasse mal.

Mas suponhamos que, por mero acaso ou por haver encontrado alguém capaz de separar neurológico de psicológico e distinguir quem necessita de psicoterapias rasas em vez de profundas, um paciente (repito, “aquele que padece”, não “aquele que é passivo”) tenha caído nas mãos do tipo de terapeuta que, de fato, a ele mais serviria e esse é, digamos, um terapeuta viciado em ser “profundo”. Para tratá-lo bem, ele deverá fazer microdecisões – microdiagnósticos – optando por privilegiar o debate sobre esse e não aquele dentre os vários materiais ventilados em uma sessão.

Tais “microdiagnósticos”, evidentemente, implicam – como enfatiza Robson – o conhecimento da história daquele particular sujeito, embora – do que parece discordar Robson – o conhecimento de histórias de outros pacientes – por que será que ser um terapeuta “experiente” é um valor? – seja importante instrumento para que possamos criar hipóteses quanto às direções em que aquela história deve ser preferencialmente investigada.

Sobra, contudo, um problema: pacientes que caem nas mãos de terapeutas que só se dedicam a fazer “microdiagnóstico” arriscam-se a ser tratados por abordagens que não lhes servem. Querem ver?

A tal “síndrome de pânico”

A síndrome (= conjunto de sintomas) de pânico pode ocorrer, no mínimo, em três tipos de transtorno (= entidade nosográfica, ou, mais vulgarmente, doença), quais sejam:

1. Transtornos mentais e de comportamento decorrentes do uso de substância psicoativa (classificados de F10 a F19 no capítulo V da décima versão do Código Internacional de Doenças);

2. Transtornos fóbico-ansiosos (F40 daquele código);

3. Transtorno de pânico (F41.0 do mesmo)

Pois bem, para quem apresenta de F10 a F19 o tratamento prioritário é medicamentoso, para quem apresenta F40 o tratamento preferencial é psicoterápico profundo, para quem apresenta F41.0 é comportamental.

Só quem emprega uma teoria suficientemente sofisticada para diferenciar transtorno (= doença) de síndrome, de sintoma, de etiologia, de patogenia é capaz de encaminhar corretamente esses pacientes.

À indústria farmacêutica, que, via alprazolam, só trata da síndrome, não da doença, não interessa nem um pouco que se façam tais diferenciações.

Vimos que tarefas simples como posicionar um guarda-sol na praia pode – na verdade deve – dispensar o uso de teorias astronômicas mais sofisticadas como o heliocentrismo, servindo-se melhor do simples, bom e velho geocentrismo. Mas não, naturalmente, tarefas mais complexas, como a de fazer pousar uma sonda em Marte. Fazer psicoterapia estará mais para a simplicidade da primeira ou para a complexidade da segunda?

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