sexta-feira, junho 13, 2008

O conceito de doença mental: natureza e função - pt 3

Responder à pergunta:

“Para o contexto em que trabalha um psicoterapeuta e para o bom cumprimento da tarefa a que ele se propõe, vale a pena dispensar o conceito de doença – e, naturalmente, de seu correlato saúde – mental?”

Implica considerá-la sob dois ângulos, um específico, outro geral. Sob o primeiro, já que esta série de postagens são contraponto a um trabalho de Robson Faggiani, a questão se torna:

“Para o contexto em que trabalha um psicoterapeuta e para o bom cumprimento da tarefa a que ele se propõe, VALE A PENA DISPENSAR O CONCEITO DE DOENÇA – e, naturalmente, de seu correlato saúde – MENTAL segundo os conceitua Faggiani?”

Pergunta a que respondo com um entusiasmado “SIM, VALE A PENA!”, já que o conceito de doença mental que a escola comportamental construiu é tão ruim, que, para se redimirem de tal tropeço, só resta a seus adeptos a saída de dispensá-lo.

Sob o segundo desses ângulos, a questão se fraseia assim:

“Para o contexto em que trabalha um psicoterapeuta e para o bom cumprimento da tarefa a que ele se propõe, VALE A PENA DISPENSAR TODO E QUALQUER CONCEITO DE DOENÇA – e, naturalmente, de seu correlato saúde – MENTAL?”

Pergunta a que respondo com um enfático “NÃO, NÃO VALE A PENA!”, acrescentando que possuir uma conotação de “doença mental” que recubra adequadamente o universo de entidades consensualmente denotadas por essa expressão permite-nos evitar graves enganos no cumprimento da atividade psicoterápica.

Começo abordando o “SIM, VALE A PENA!”


Construindo e dispensando um “monstro conceitual”

Em seu comentário à primeira de minhas contribuições sobre o assunto em tela, escreve Faggiani:

“César, suas críticas partem de um pressuposto: o de que a mente (psicológico) e o corpo (neurológico) são coisas distintas.”

Ficou-me a impressão de que, através dessa frase, o autor entende que eu sou vítima do ingênuo erro dualista de Descartes, tão criticado por Damásio. Esse não é o caso e passo a mostrar por quê:

(1) metateoricamente sou um monista materialista que considera o sistema nervoso – como o digestivo, o respiratório, o circulatório, etc. – um dentre os vários sistemas em que se subdivide o organismo (“corpo”), sendo aquele sistema que pode operar de forma a produzir tanto fenômenos psicológicos – por exemplo, os histéricos – como neurológicos – por exemplo, os epiléticos; e

(2) considero tão pouco prático deixar de diferenciar o digestivo do respiratório quanto o é deixar de diferenciar o psicológico do neurológico, pela rasteiríssima razão de se evitar que se vá tratar de uma úlcera com um pneumologista, uma tuberculose com um gastroenterologista, uma epilepsia com um psicoterapeuta, uma histeria com um neurologista.

Acontece, contudo, que, quando comportamentistas como Robson paradeiam uma suposta evolução em sua teoria, por estarem superando um dualismo metafísico à la Descartes, estão, a meu ver, tentando fazer da necessidade virtude, como raposas frente a uvas que não podem alcançar. Com efeito, dizem estar desinteressados em separar o psicológico do neurológico, mas a verdade é que, se quisessem fazê-lo, não teriam como. Isso simplesmente porque, se, para delimitar o aparelho digestivo temos que saber o que é digestão, para delimitar o respiratório o que é respiração e assim por diante, os comportamentistas não tem nenhum critério que lhes permita dizer o que é “psicação”. Nisso, estão certamente piores do que Freud, que operava – embora o escondesse dos outros e, em certa medida, até de si próprio – com um critério tão sofisticado de “psicológico” que pôde categorizar algumas idéias, emoções e desejos, não obstante conscientes, como sendo apenas neurológicos, ficando fora do escopo da Psicanálise.

Se Robson – seguindo Skinner e esse, seguindo Watson – pretende marcar a natureza “científica” de sua atividade mediante um viés positivista que o impede e o desinteressa de diferenciar (cf. Haeckel) o “mental” ou “psicológico” do “neurológico” e, se eu, seguindo Haeckel e Mill, considero essa uma inexpediente involução teórica, só posso considerar qualquer conceito de “doença mental” que se apóie em tal fundamento uma igualmente indesejável regressão, cujas conseqüências nocivas irei detalhar.

Com ainda um problema: se, preocupados em demonstrar que são cientistas e não filósofos, os behavioristas tentaram escapar

(1) da Metafísica, buscando refúgio em um conceito “mental” que não o diferencia do “neurológico”, e

(2) da Axiologia – o ramo da Filosofia que estuda e propõe valores – buscando refúgio em um conceito igualmente regredido de “doença”, que não a diferencia de “anomalia”, a escola conseguiu com essa dupla façanha, construir, no que diz respeito à “doença mental”, “monstruosidades conceituais” como as que seguem:

Primeiro, ouçamos Sawrey e Telford:

“Os desvios extremos ou extensos do comportamento normal ou usual são classificados, de um modo corrente, como doenças mentais.” (Sawrey, J. M. & Telford, C. W. Psicologia do Ajustamento. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 478).

Em seguida, a Ludin:

“Neurótico é um termo tradicionalmente aplicado a uma classe de comportamentos descritos como desviados do modo convencional de responder” (Lundin, R. W. Personalidade. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1974, p. 527) ... “Quando essas modificações parecem ser mais marcadas e tornam-se muito mais desagradáveis e perigosas, o comportamento é, costumeiramente, denominado psicótico”? (Id., p. 577)

Como diz o brocardo inglês, “there’s no foolproof rules”, não há regras a prova de tolos.

A metateoria da Psicanálise, que legitima a construção do conceito de inconsciente, arrisca produzir o que chamo de “idiotas da subjetividade”, capazes de, em sua preocupação de ser “profundos”, nos perguntar “o que queremos dizer com isso” se lhes damos bom dia.

As do behaviourismo favorecem a produção de “idiotas da objetividade” (Nélson Rodrigues), como Sawrey, Telford e Ludin, capazes de, a partir de uma visão jurássica da imparcialidade científica, tentar fugir dos inescapáveis compromissos axiológicos do conceito de doença, buscando proteção na suposta “objetividade” da estatística e, a partir disso, identificando doença mental com anomalia.

O incabível dessa identificação é talvez ainda mais óbvio do que o da perda de diferenciação entre o psicológico e o neurológico. Se alta freqüência estatística fosse sinônimo de higidez, carie dentária indicaria saúde odontológica e a falta delas doença. “Anormalidade” ou “anomalia” é critério axiologicamente neutro, podendo havê-las “positivas” – como as representadas pelos talentos de um Da Vinci, de um Bach e de um Shakespeare – “indiferentes”, como a dos portadores de dextrocardia, com corações anomalamente situados no lado direito da caixa torácica, mas nem por isso menos saudáveis – ou “negativas” – como uma ectromelia, a ausência parcial ou completa de membros torácicos ou pélvicos.

Faggiani, em seu artigo, parece preso entre, por um lado, sua lealdade escolástica, que o leva a, em certo passo, escrever “desvio OU doença mental”, acolhendo a deplorável identificação entre ambos os conceitos e, por outro, seu bom senso, que lhe sopra aos ouvidos o absurdo dela. Cai, como resultado, em um pseudo-dilema, qual seja, optar entre (1) empregar um conceito totalmente inaceitável de doença psicológica ou (2) não empregar conceito nenhum.

Termina – de maneira algo hesitante, é verdade, pois chega a chamar o conceito de doença psicológica de “útil”, mas “dispensável” – por adotar a segunda alternativa, a qual, para mim, significa que, junto com a água suja da banheira, jogou fora a criança.

Vejo alternativa melhor, qual seja: explicitar a “conotação” correspondente ao universo das entidades “denotadas” como “doenças mentais”, escoimando-a de suas vinculações com o conceito de anomalia e com uma visão que não diferencia o neurológico do psicológico.

Passo a fazê-lo no próximo fragmento desta série.

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