terça-feira, novembro 06, 2007

RESPONDENDO IMEILS (I)

Dr César

Recebi os dois artigos de 1895 de Freud deste email , outro email sobre "como se formam os Paradigmas" e, de novo os artigos com trechos que salientou e comentários ao pé das páginas. Mesmo com todo "desejo de palavras" novas e, do desejo de entender as velhas também( a cada leitura, muitas palavras li e apreendi), fico devendo na rapidez da assimilação. Li também, no blog, sobre o nível Meta, e tem alguns assuntos que até me atrevo a meta-comentar. É um desafio meta-comentar Freud. Estou usando corretamente o nível Meta?
É importante a correlação com a nomenclatura atual das psicopatologias para clarear sobre seu desenvolvimento. Recebeu respostas das perguntas que fez após o primeiro questionamento, para a pessoa que o procurou pela internet com sintomas de pânico? Penso que percebi como relacionou a neurose atual ( vegetativa) para conduzir este questionamento. Não tenho certeza. Me fiz duas perguntas. Fazer perguntas não acrescenta mais angústia à pessoa? ( faz parte da transmissão que recebi que na psicanálise não faço perguntas, infiro sobre que perguntas a pessoa que fala estaria a responder). São essas perguntas inferidas assim, que está fazendo? Sinto que sua resposta vai me conduzir ao entendimento que vem aos poucos se aproximando, de que o não fazer perguntas se refira não exatamente a não fazer perguntas, mas no como fazer.
Quando me sentir suficientemente estimulada e com coragem, meta-comento os artigos enviados.
Obrigada de novo
XXX


XXX, tenho a impressão de que enganei-me de destinatário ao lhe enviar os textos, mas já que foi assim, lá vai:

1) Quanto a fazer perguntas a um paciente e nele produzir angústia:

Não sei se você conhece um relato de Ralph Greenson, o autor do fantástico "The Technique and Practice of Psychoanalysis", faz - ali mesmo, creio - sobre um paciente que dispôs-se a sair da psicanálise a que se estava submentendo sob a batuta daquele, alegando estar sofrendo pressões, durante o tratamento, para abandonar suas convicções políticas - apoiava o partido democrata - e bandear-se para o democrata - apoiado por seu psicanalista. Greenson ficou perplexo. Não se dava conta em absoluto de tentar fazer isso e presava grandemente a neutralidade - no sentido de imparcialidade de escuta - como instrumento terapêutico. Inquirido o sobre de onde proviera tal impressão, o paciente respondeu: "Ora, é fácil. Toda vez que eu falo bem de um político democrata e mal de um republicano, você não tuge nem muge, mas toda vez que falo bem de um republicano e mal de um democrata, você ME PERGUNTA QUAIS AS ASSOCIAÇÕES QUE ESSE TIPO DE FALA TEM COM MINHA INFÂNCIA! É claro que você acha que pensar bem de democratas e mal de republicanos é normal e que o contrário é um sintoma!"
Talvez - não sei - a proposta de o analista não fazer perguntas tenha sido uma tentativa de proteger sua imparcialidade de escuta. Se foi - você sabe de alguma outra possível razão? - parece-me solução de todo canhestra. Fazer "hm, hm" quando um paciente diz palavras proparoxítonas - mostra uma pesquisa - aumenta significativamente o número de tais palavras em seu discurso. Interpretar aqui e não ali, naturalmente, equivale a dizer que aqui e não ali está o problema. Ou seja QUALQUER INTERVENÇÃO - NÃO SÓ PERGUNTAS - PREJUDICA O PROCESSO DE NEUTRALIDADE. E note-se que a literatura psicanalítica sobre técnica é abundante em se ensinar a decodificar e muda (até onde sei, tirando uma passagem do Freud que afirma só ter cabimento fazer interpretações transferências quando há titubeios na produção das associações livres - passagem, aliás, grandemente esquecida), como dizia, essa literatura é literalmente muda, até onde sei, relativamente a que fragmento merece ser decodificado dentro da imensidade de material que um paciente pode oferecer em uma sessão.
Depois de matutar muito, tentando resolver o problema - pois também considero imparcialidade de escuta algo fundamental - desenvolvi o conceito de "indicador de ruptura" (IR), sinais que apontam para o LUGAR do material fornecido pelo paciente em que, usando uma colocação de Otto Fenichel, "resistido e resistência" se encontram em uma relação de forças favorável para o processamento de nossas interveções. Falarei em mais detalhes sobre isso no curso on-line de técnica que irei postando (quase falei aquele maldito "irei ESTAR postando", argh!), pouco a pouco, em meu saite. São os IRs que permitem que nossas intervenções - sejam perguntas, interpretações, clarificações, ou outras - em vez de produzir angústia - ou sintomas - provoquem perlaboração. Resumindo, o problema parece-me estar muito menos no COMO fazer do que no ONDE fazer. Uma intervenção feita com o maior cuidado em um LUGAR errado pode ser catastrófica, a mais desajeitada em um LUGAR certo costuma ser terapeutica.

2) Quanto à etiologia proposta por Freud para as neuroses vegetativas:

Que ela existe, lá disso tenho certeza, demonstrado pela clínica e pela vida. Para avaliar com que incidência ocorre, seria necessário que essa etiologia fosse pesquisada e, não, descuidada pelos "psico-coisas". Quanto a uma das pessoas que está apresentando síndrome de pânico e vem sendo tratada HÁ MAIS DE SETE ANOS, sem sucesso significativo, por vários desses profissionais:

(a) NENHUM DELES (mentira, um perguntou, mas tão timidamente que não recebeu resposta) lhe perguntou se tem orgasmo em suas relações sexuais;
(b) Ela NUNCA TEVE.

Que acha disso?

sábado, novembro 03, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XL: PEDAGOGIA LOGANALÍTICA

Já existe uma safra de crianças, filhos de pacientes meus, que cresceram dentro de um ambiente loganalítico. E o que é um ambiente loganalítico? Resumidamente, é um ambiente em que os pais sabem (1) a diferença entre repressão – impedir que alguém EXPRESSE VERBALMENTE o que se passa em seu mundo interno – e retenção – impedir que alguém FAÇA ALGO e (2) que uma boa educação RETÉM, MAS NÃO REPRIME. Essas crianças têm-se revelado impressionantemente inteligentes, centradas e maduras. Os episódios abaixo ilustram isso. Aconteceram quando Jean tinha, respectivamente, quatro e cinco anos de idade e cuja mãe, desde quanto ele completara dois, adotara, na educação dele, uma postura loganalítica.

1º episódio

CLARA (em vias de separar-se do pai de Jean): — Meu filho, como você está se sentindo com isso de eu me separar de seu pai?
JEAN: — Ah, estou um pouco triste, mãe!
CLARA: — Posso fazer alguma coisa, meu filho!
JEAN: — Não, mãe, pode deixar! Eu agüento!

Isso em um menino de quatro anos! Quem dera muitos marmanjos fossem capazes dessa capacidade de lidar com os próprios sentimentos!

2º episódio

Cláudia estava num ponto de ônibus com seu filho Felipe, de seis anos, quando uma senhora comentou:

CLARA: — Que neném bonito!
JEAN (de cara feia): — Eu não sou um neném, sou um menino!
CLARA: — Ah, então você já é um homenzinho!
JEAN: — Eu não sou um neném nem um homenzinho, eu sou um menino!

Isso em um menino de cinco anos! Quem dera muitos marmanjos fossem capazes dessa clareza sobre sua própria identidade!

***

Vou acrescentar um episódio que aconteceu comigo, quando eu tinha quatro anos. Sem grande vantagem em relação a Jean, pois minha mãe era loganalista avant la lettre.
Eu estava debruçado sobre uma janela do apartamento de minha tia-avó. Ela entra no aposento e grita, apavorada:

ESTER: — MEU FILHO, SAI DESSA JANELA!
EU (saindo da janela e passando por ela): — Quando uma criança estiver numa janela, você não grita, porque a criança pode se assustar e cair lá embaixo!

Fiquei famoso na família.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXIX: ANSIOSTATO QUEBRADO

O fragmento de diálogo que passo a relatar aconteceu há mais de trinta anos, e, para mim foi uma aprendizagem inesquecível.
André era um paciente extremamente ansioso. Hoje em dia, atendo alguns pacientes deitados outros sentados, segundo a vontade deles e as necessidades do tratamento. Naquela época, todos – e, por conseguinte, André – eram atendidos deitados. Sua ansiedade era particularmente visível em sua respiração e, evidentemente, também em suas próprias verbalizações sobre seu estado, nas quais relatava não só a própria vivência de ansiedade, como a presença de indicadores físicos que soem acompanhá-la: aceleração dos batimentos cardíacos, secura dos olhos, suor frio etc. Mas, nesse dia, alguma coisa de especial havia acontecido. Deitou-se no divã, ficou em silêncio, e percebi uma respiração longa e profunda, totalmente incompatível com um estado de ansiedade. Ao que comentei:

LC: — Hoje você parece estar bastante calmo!

Foi o bastante para que, de imediato, retornasse a seu estado “normal”, com a respiração evidentemente alterada e exclamando:

ANDRÉ: — Caramba! Foi só você falar isso, que meu coração se acelerou de novo e estou começando a suar novamente!
LC: — Bem, parece que você já está nervoso, outra vez!
ANDRÉ (dando um suspiro de alívio e retomando uma respiração profunda, indicativa de que a tranqüilidade retornara): — Aaaaaaaaah! Engraçado, FIQUEI CALMO OUTRA VEZ!

Como alertou Shakespeare, há certamente mais coisas sob o céu do que sonha nossa vã filosofia! Como diabos poderia eu imaginar que dizer para um paciente que ele estava calmo iria fazê-lo ficar nervoso?! Que supervisor poderia ter-me alertado sobre isso? Que literatura?
Mas, enfim, a experiência acabou sendo útil, pois, a partir dela, desenvolvi a teoria do “ansiostato quebrado”. E o que é isso?
Fácil. Termostato você conhece, não é? Ele nos permite ajustar, por exemplo, um aparelho de ar condicionado para que se mantenha um determinado aposento a uma determinada temperatura, ligando ou desligando o aparelho, de forma a que se faça esse ajuste. Recentemente, o termostato de um de meus aparelhos de ar condicionado quebrou, ficando fixado em sua temperatura máxima. A conseqüência disso, naturalmente, foi a de que eu não podia mais, enquanto não o consertasse, ajustar a temperatura do quarto a meu bel-prazer.
Em minha teoria, todos nós somos providos de ansiostatos, que nos permitem ajustar nossa ansiedade – ou nosso medo – de acordo com o grau de perigo a que nos cremos sujeitos em um determinado momento, em determinadas circunstâncias.
Ocorre que, em certas pessoas o ansiostato quebra. Nesse caso, a ansiedade é mantida SEMPRE, no mesmo nível – para mais ou para menos – de forma que elas não podem mais AJUSTAR SEUS ANSIOSTATOS em conformidade com ao nível de perigo a que creem estar, de fato, expostos. André era um exemplo disso. Seu ansiostato havia quebrado, tendo ficado fixado na posição “MUITA ANSIEDADE”. Ele não era louco e sabia muito bem que sua ansiedade era excessiva. Quando assinalei que ela havia caído, acionou-se nele um sinal de alarme e a ansiedade subiu; quando apontei a queda, o alarme se desligou e ele novamente se acalmou.
Claro que eu não cometi a estupidez de dizer que ele estava calmo outra vez!

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXVIII: PSICOVACINAÇÃO

Como vimos no diálogo anterior, a função do tratamento psicanalítico (a Loganálise, enquanto técnica, é uma maneira particular de se levar adiante esse tipo de tratamento) é patrocinar a dissolução do interdito que impede que um conhecimento de natureza não verbal se conecte a um conhecimento de natureza verbal. Na verdade, o núcleo gerador dos distúrbios psicológicos passíveis de serem tratados psicanaliticamente, são fobias a certas palavras, verdadeiras LOGOFOBIAS. Vale sublinhar isso:

A ESSÊNCIA DO TRATAMENTO PSICANALÍTICO É A DISSOLUÇÃO DE LOGOFOBIAS.

No diálogo intitulado “Você me acha gostosa?”, afirmei que, para levar adiante de forma bem sucedida um tratamento psicanalítico, “não basta você acertar QUAL O TEMA que merece tratamento prioritário durante um certo momento da análise, é necessário que você os CONSIGA ABORDÁ-LOS DE MANEIRA ‘VACINAL’. Na verdade, a Psicanalise – loganalítica ou não – opera como uma vacina: você introduz no paciente o elemento perturbador, mas com sua virulência suficientemente atenuada para que a conseqüência disso seja a geração de imunidade, não de doença.”

Vejamos o seguinte diálogo:

PACIENTE: — Tô com medo de falar uma coisa e você pensar que eu sou veado.
LC: — Já pensei. Pronto, pode falar.
PACIENTE: — Pô, Luís César, assim não dá!
LC: — Ué, a dificuldade de falar não era o medo de que eu pensasse que você é veado? Como eu já aconteceu, não há mais nada a temer.
PACIENTE (visivelmente mais à vontade): — Bem, o que eu estava pensando em dizer é que blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Quando se está trabalhando em áreas com um razoável nível de metrificação, pode-se aprender de um professor experiente ou na própria literatura relevante que uma determinada condição mórbida deve ser tratata inicialmente com, por exemplo, 200 miligramas de Benzetacil, uma vez por dia, durante um mês. Qual a possibilidade de, numa área não metrificada como a da clínica psicanalítica, se transmitir ou obter a informação de que a logofobia de um determinado paciente deverá se dissolver se lhe forem introduzidos, por exemplo, 200 psicotrons de “sentimento de ser veado” a cada sessão? Nenhuma, claro. Ou seja, o terapeuta fica ao sabor de sua sensibilidade, experiência e criatividade, para atingir a tal “dosagem vacinal”. No diálogo transcrito aqui, eu acertei essa dosagem, liberando no paciente uma fala bloqueada; já, como vimos, no diálogo transcrito em “Você acha que eu sou gostosa?”, errei – para mais – na dosagem, desorganizei a paciente e ela interrompeu o tratamento. Fiz isso também, recém-formado, com um outro paciente, ao expor-lhe de maneira excessivamente clara a origem dos seus sintomas. Ele procurou um psiquiatra que o atendeu medicamentosamente e, em seguida, rompeu o tratamento comigo. Nos quarenta anos a que me dedico a clínica psicanalítica, cometi esse erro ainda mais uma vez, mas, dessa feita, pude reparar o erro.
Conto no próximo “DIÁLOGO”.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXVII: DUAS CIÊNCIAS

Nossa experiência do mundo tem elementos verbais e não verbais. Quando esses elementos estão simultaneamente presentes, estamos “conscientes”, ou melhor, “co-cientes”. Na língua italiana isso fica particularmente claro: a palavra “coscienza” (= consciência) agrega o prefixo “co” (= contigüidade, simultaneidade, companhia, correlação, complemento) ao radical “scienza” (= ciência). Todos nós já passamos por episódios como o seguinte:

FULANO: — Você está esquisito hoje!
BELTRANO: — É, eu sei. Estou sentindo uma coisa estranha dentro de mim (= ciência), mas não sei o que é... Já sei, É RAIVA (= co-ciência, em nossa língua, co/ns/ciência)!!! Estou com raiva de blá, blá, blá, blá, blá, blá... (= refinamento da co/ns/ciência)

Isso nos permite entender melhor que o INCONSCIENTE de que fala Freud não corresponde a uma INCIÊNCIA (in + ciência) – uma falta de ciência – mas, sim, à FALTA DE uma DUPLA CIÊNCIA, ou seja, a uma IN-CO-CIÊNCIA, que nosso vernáculo chama de “inco(ns)ciência”. Não me parece haver nada que possa ilustrá-lo de forma mais cristalina do que o seguinte tipo de experimento hipnótico:

Júlio hipnotiza Rosana em um aposento em que se encontram outras cinco pessoas e lhe ordena que, quando voltar ao estado de vigília, NÃO VEJA PEDRO, uma dessas outras pessoas, esquecendo, outrossim, que essa ordem lhe está sendo dada. Saída Rosana do estado hipnótico, Júlio lhe pergunta quem são as pessoas que estão ali. Rosana acusa a presença de todos, MENOS A DE PEDRO. Júlio, então, posta-se por detrás de Pedro, de forma que esse último fique entre ele e Rosana, pedindo, em seguida, que essa se aproxime dele, Júlio. Rosana vai na direção de Júlio, em rota de colisão com Pedro, mas, antes que a colisão ocorra, DESVIA-SE, evitando-a. Júlio pergunta por que, em vez de caminhar em linha reta na direção dele, ela se desviou. Rosana responde que não sabe, que simplesmente lhe deu vontade de desviar. Perguntada novamente sobre os que estão na sala, continua sem ser capaz de reconhecer a presença de Pedro. Note-se que os estudiosos do fenômeno – denominado alucinação negativa por indução pós-hipnótica – são unânimes em afirmar ter razão para sustentar que os sujeitos dessa experiência não estão simulando, que não estão mentindo quando afirmam não ver as pessoas ou objetos dos quais, não obstante isso, são capazes de se desviar. Ou seja, têm CIÊNCIA – conhecimento não verbal – mas não têm CO(NS)CIÊNCIA da presença da pessoa de quem se desvia.

A maior de todas as descobertas freudiana foi a de que, enquanto não encontra seu EQUIVALENTE VERBAL, toda a CIÊNCIA NÃO VERBAL de uma experiência relevante fica dentro de nós procurando pirandellianamente esse seu companheiro, como uma personagem à procura de um autor. E como, por razões históricas, o acesso a esse equivalente verbal está interditado, acaba por escolher representantes não verbais para simbolizar a palavra que falta. Esses equivalentes “ilegítimos” são os sintomas, e a função da Psicanálise é levantar aquele interdito, cessando a procura desesperada pelo equivalente legitimo, verbal.
A palavra “termo” provém do latim terminus (= término). Não é à toa, que a experiência humana só chega a termo, quando chega ao termo.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXVI: EVA

Ainda estudante, fiz estágio na emergência psiquiátrica do então INPS (hoje INSS). Atendia os pacientes que chegavam objetivando fazer uma triagem diagnóstica e enviando-os, em seguida, para os psiquiatras, que se ocupavam de os tratar. Esses pacientes nunca chegavam ali levados por suas próprias pernas, mas levados por terceiros, freqüentemente policiais. Certa noite, chega-me, sozinha, uma senhora, serena e bem vestida – a que chamarei de Mara – dizendo que gostaria de ser atendida. Achei estranho. Segue-se o diálogo que transcorreu entre nós::

LC: — Em que posso ajudá-la?
MARA: — Ocorre o seguinte. Eu sou a quinta reincarnação de Eva. Deus fez o meu corpo em outra área de nossa galáxia e eu não me adapto bem às condições climáticas da Terra.
LC: — Pois não.
MARA: — Sendo assim, todo mês eu preciso ter uma entrevista com Deus, quando ele renova todas minhas moléculas, de forma que eu possa ficar bem aqui neste planeta.
LC: — E em que eu poderia ajudá-la?
MARA: — Bem, ultimamente eu tenho tido dificuldade em agendar uma entrevista com Deus, minhas células não estão sendo renovadas e, por isso, eu estou um pouco nervosa. Resolvi, então, procurar os senhores para ver se haveria algum medicamento que me deixasse mais calma.

Um delírio, via de regra, é uma forma de encobrir com uma espécie de “mito pessoal” fatos verídicos da vida do sujeito que ele tem dificuldade de enfrentar. Há testes psicológicos que nos permitem “contornar” a barreira desse mito pessoal e ter um acesso aproximado a esses fatos. Num deles apresentam-se ao paciente cartões com manchas informes, pedindo-se que diga o que aquelas manchas podem ser. Grosseirissimamente falando, se o sujeito está com fome, tende a ver comida nas manchas, se está sexualmente excitado, a ver partes genitais, casais copulando ou equivalentes, se está com sono, seu quarto de dormir etc.. Há respostas chamadas “vulgares”, dadas por quase todos os examinados, e que não fornecem nenhuma informação sobre suas histórias pessoais, emoções ou desejos . Foi esse teste que propus-me a aplicar na paciente, pensando em contornar suas defesas. Mas ela foi mais esperta do que eu e meu teste.
Passei-lhe o primeiro cartão: deu a resposta vulgar e devolveu o cartão. Passei-lhe o segundo: deu a resposta vulgar e devolveu o cartão. Passei-lhe o terceiro: a mesma coisa. Passei-lhe o quarto. Parou, olhou-me com uma expressão mista de condescendência e censura, orientando-me pacientemente da seguinte forma:

MARA: — Doutor, o senhor não faça isso com as pessoas!
LC: — Como assim?
MARA: — Doutor, as pessoas que vêm aqui, estão com a cabeça cansada. O senhor dá essas coisas confusas, cansa mais a cabeça. O senhor deve fazer assim: mostra um Volkswagen, um abajur... A pessoa responde: um Volkswagen, um abajur. Não cansa a cabeça!
E recusou-se a continuar fazendo o teste. Podia ser louca, mas não era nada burra.