sábado, novembro 03, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXVI: EVA

Ainda estudante, fiz estágio na emergência psiquiátrica do então INPS (hoje INSS). Atendia os pacientes que chegavam objetivando fazer uma triagem diagnóstica e enviando-os, em seguida, para os psiquiatras, que se ocupavam de os tratar. Esses pacientes nunca chegavam ali levados por suas próprias pernas, mas levados por terceiros, freqüentemente policiais. Certa noite, chega-me, sozinha, uma senhora, serena e bem vestida – a que chamarei de Mara – dizendo que gostaria de ser atendida. Achei estranho. Segue-se o diálogo que transcorreu entre nós::

LC: — Em que posso ajudá-la?
MARA: — Ocorre o seguinte. Eu sou a quinta reincarnação de Eva. Deus fez o meu corpo em outra área de nossa galáxia e eu não me adapto bem às condições climáticas da Terra.
LC: — Pois não.
MARA: — Sendo assim, todo mês eu preciso ter uma entrevista com Deus, quando ele renova todas minhas moléculas, de forma que eu possa ficar bem aqui neste planeta.
LC: — E em que eu poderia ajudá-la?
MARA: — Bem, ultimamente eu tenho tido dificuldade em agendar uma entrevista com Deus, minhas células não estão sendo renovadas e, por isso, eu estou um pouco nervosa. Resolvi, então, procurar os senhores para ver se haveria algum medicamento que me deixasse mais calma.

Um delírio, via de regra, é uma forma de encobrir com uma espécie de “mito pessoal” fatos verídicos da vida do sujeito que ele tem dificuldade de enfrentar. Há testes psicológicos que nos permitem “contornar” a barreira desse mito pessoal e ter um acesso aproximado a esses fatos. Num deles apresentam-se ao paciente cartões com manchas informes, pedindo-se que diga o que aquelas manchas podem ser. Grosseirissimamente falando, se o sujeito está com fome, tende a ver comida nas manchas, se está sexualmente excitado, a ver partes genitais, casais copulando ou equivalentes, se está com sono, seu quarto de dormir etc.. Há respostas chamadas “vulgares”, dadas por quase todos os examinados, e que não fornecem nenhuma informação sobre suas histórias pessoais, emoções ou desejos . Foi esse teste que propus-me a aplicar na paciente, pensando em contornar suas defesas. Mas ela foi mais esperta do que eu e meu teste.
Passei-lhe o primeiro cartão: deu a resposta vulgar e devolveu o cartão. Passei-lhe o segundo: deu a resposta vulgar e devolveu o cartão. Passei-lhe o terceiro: a mesma coisa. Passei-lhe o quarto. Parou, olhou-me com uma expressão mista de condescendência e censura, orientando-me pacientemente da seguinte forma:

MARA: — Doutor, o senhor não faça isso com as pessoas!
LC: — Como assim?
MARA: — Doutor, as pessoas que vêm aqui, estão com a cabeça cansada. O senhor dá essas coisas confusas, cansa mais a cabeça. O senhor deve fazer assim: mostra um Volkswagen, um abajur... A pessoa responde: um Volkswagen, um abajur. Não cansa a cabeça!
E recusou-se a continuar fazendo o teste. Podia ser louca, mas não era nada burra.

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