sábado, janeiro 28, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS III: 'ARE YOU OK?'

PEDRO (em um supermercado, visivelmente irritado, reclamando de uma falha na entrega de mercadorias): — Blá, blá, blá! Blá, blá, blá! Blá, blá, blá! ...
FUNCIONÁRIO DO SUPERMERCADO: — Mas doutor, o senhor NÃO PRECISA ficar chateado assim!
PEDRO: — Mas, SE EU QUISER, eu posso?
FUNCIONÁRIO DO SUPERMERCADO: — Claro! Claro!
PEDRO: — Então, EU QUERO! Blá, blá, blá! Blá, blá, blá! Blá, blá, blá! ...

É fundamental que defendamos o DIREITO INCONDICIONAL de nos aborrecermos. Um dos maiores cânceres culturais da atualidade é o tipo de literatura de auto-ajuda – aliás, o mais difundido dentre eles – que manda você estar sempre OK! Um conhecimento mínimo das descobertas da Psicanálise é capaz de nos fazer entender como a obrigação de estar sempre OK é a origem de um sem-número de sintomas, entre os quais se alinham – ao lado de úlceras, infartos, insônia, depressão, impotência sexual, distúrbios da aprendizagem etc. – os assassinatos em massa do tipo abordado em “Tiros em Columbine”, típicos dos EUA, país do OK!
Assassinatos em massa são um fenômeno que, de fato, merece análise. O perfil desse tipo de crime é absolutamente singular. A maior parte dos crimes é cometida à noite, os assassinatos em massa são cometidos de dia; a maior parte dos crimes são vendetas pessoais ou tem por objetivo o lucro material, os assassinatos em massa são grandemente impessoais e não geram lucro material; a maior parte dos crimes é cometida pela população de baixa renda, a maior parte dos assassinatos em massa é cometida por membros de uma população de renda bem mais alta (a família de um dos dois meninos assassinos de Columbine tinha sete carros em sua garagem!); cometido o crime, a maior parte dos infratores tenta escapar das mãos da justiça, os que perpetram assassinatos em massa ou se entregam (alguns com uma expressão claramente radiante) ou se suicidam! Acrescente-se que parentes, vizinhos e amigos costumam expressar grande espanto quando tomam conhecimento do massacre, pois são unânimes em afirmar: “Mas ele era um menino tão educado, tão bonzinho!”
Pois é! Esse menino “tão educado, tão bonzinho” não se permitia expressar seu aborrecimento em um supermercado! Estava sempre OK! Até que um dia...
Os episódios de assassinato em massa – assim como as já mencionadas úlceras, infartos, distúrbios da sexualidade, da capacidade de aprendizagem etc. – são rebentos perversos da obrigação de estar OK. Acho bom protegermos nosso direito de ficar aborrecidos. Estaremos protegendo não apenas a nós mesmos; estaremos protegendo também aos outros.

domingo, janeiro 15, 2006

LULA E A LITERATURA DE AUTO-AJUDA

(Entrevista dada a Cláudia Jones, da Rádio Roquete-Pinto, em 15/01/06)
O objetivo de meu livro, A Nova Conversa, é primeiro, criticar o que está sendo feito, na cabeça das pessoas, pela atual “literatura de auto-ajuda” e, segundo, mostrar o que deveria estar sendo feito. Mas como fazer isso de maneira simples e clara em uma entrevista de dez minutos? E, quando me pus essa pergunta, o que me veio à mente foram as palavras do prefeito de Águas Lindas, em Goiás, sobre a “Operação Tapa Buraco”, do governo Lula. Disse ele: “Isso é uma palhaçada. Fazem esse serviço porco e lambuzado e, quando der a primeira chuva, vai tudo embora.” Pois é isso que meu livro denuncia: a maioria esmagadora dos atuais livros de auto-ajuda não passa de uma gigantesca “Operação Tapa Buraco” psicológica: um mero recapeamento de otimismo artificial onde seria necessário mexer na estrutura da mente. E um livro pode ajudar ao leitor, por si só, a aperfeiçoar essa estrutura? Minha experiência tem demonstrado que nem a todos – algumas pessoas têm que recorrer à ajuda pessoal de um psicoterapeuta – mas a muitas pessoas, sim. E mesmo “turbinar” o ritmo de pessoas que se encontram em tratamento. Vou tentar ilustrar a natureza da parte “positiva” de meu livro, ou seja, aquela que não apenas critica mais sugere soluções. As queixas mais comuns de pessoas que procuram ajuda psicoterápica são angústia e depressão. Uma pessoa saudável, quando energizada por processos internos ou externos sente prazer e é estimulada a agir. A pessoa com bloqueios psicológicos, ao ser pressionada por essa energia, em vez sentir prazer e ser estimulada à ação, sente primordialmente angústia, e freqüentemente, mecanismos inconscientes seus tentam bloquear essa pressão, gerando uma dePRESSÃO e a alternância entre depressão e angústia a precipita no pior dos mundos. Se a tentativa de fugir à angústia é uma das principais fontes psicológicas da depressão (há, naturalmente, outras fontes, de natureza orgânica), poucas pessoas dão atenção ao fato de que a angústia está associada a um estreitamento da respiração (a palavra “stress” vem do latim “strictu”, seja, “estreito”) e, menos ainda, que bloqueios da fala, que depende nuclearmente do respirar, geram tal estreitamento, gerando angústia etc., etc.. Meu livro mostra técnicas que uma pessoa relativamente saudável, como são a maioria das pessoas, pode empregar para romper esses bloqueios. E isso não é mera Operação Tapa Buraco.

sexta-feira, janeiro 13, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS II: O "É QUE".

CLÁUDIA (dirigindo-se, irritada, ao garçom, que já conhecia há tempos): — Caramba, João, fiquei chateada com o jeito que você jogou a pizza dentro de meu prato e do prato de meu marido!
JOÃO (que ficara desconcertado e inconformado com o conteúdo e o tom do comentário de Cláudia e que, depois de rodar meio sem rumo pelo restaurante, volta à mesa): — Sabem de uma coisa, eu É QUE fiquei magoado com a maneira que a senhora falou comigo. Afinal das contas, eu conheço vocês há muitos anos e sempre servi vocês com o maior carinho!
PEDRO (o marido): — Calma, cara! Sabe de uma coisa: tem mágoa suficiente para todo mundo! Podemos todos ficar magoados: eu, você, ela... Se o gerente também quiser vir aqui curtir uma magoazinha, também pode. Não vai faltar mágoa para ninguém.
JOÃO (algo perplexo e já mais calmo): — Bem..., então, desculpe.
CLÁUDIA (apaziguadora): — Está desculpado. Me desculpe também, se meu jeito de falar lhe magoou.

A expressão “É QUE” tem entradas absolutamente saudáveis e outras bastante doentias em nossa fala cotidiana. Nada há de errado em um diálogo como o seguinte:

FULANO: — Quem vai levar esta quentinha para o Dr. Roberto?
BELTRANO: — Ele É QUE vai!

Em outros momentos, contudo, como no diálogo entre Cláudia, Pedro e João, o “É QUE” comparecia com seu uso doentio. Como reconhecer isso e, coerentemente, desmanchar esse uso, como fez Pedro? O “É QUE” é empregado de maneira doentia quando, numa relação entre pessoas, tenta estabelecer um MONOPÓLIO do direito de expressar uma emoção ou um desejo: só uma pessoa, numa determinada relação interpessoal, É QUE terá o direito de sentir mágoa, raiva, inveja etc.. As outras, não. Sutilmente, existe a tentativa de se estabelecer um reinado: quem ganhar será o rei e poderá falar. Suas palavras serão a verdade, serão “reais” (em português, não diferençamos “royal” de “real”, como fazem os ingleses, ou de “réal”, como fazem os franceses, povos campeões da democracia); os outros, serão “súditos”, ou seja, serão “sub-ditos”, ou seja, SERÁ DITO A ELES O QUE TÊM DIREITO, OU NÃO, DE DIZER. Pois bem, se quisermos que a democracia penetre nossas relações cotidianas, teremos que combater esse uso fascista do “É QUE”. E, para isso, é necessário pôr em prática um princípio da Loganálise: o ser humano não tem o direito incondicional de FAZER, mas tem o direito incondicional de SENTIR e de EXPRESSAR VERBALMENTE o que está sentindo. Quando o “É QUE” tenta operar sob sua forma doentia, ele sempre tenta se estribar na RAZÃO: eu É QUE tenho RAZÃO de me sentir magoado, você não. E segue-se uma discussão estéril, embate micro-político, cujo objetivo é estabelecer quem é rei – cujas palavras são “reais” — e quem é “sub-dito”, quem é “súdito”. Deixemos os debates sobre ter ou não razão para avaliações sobre o direito de FAZER; numa relação democrática, para ter o direito de DESEJAR ou de SENTIR, não é necessário TER RAZÃO. Tenho atendido famílias em que apenas um dos membros tem direito ao uso de certo tipo de expressão verbal. Numa delas, nenhum dos filhos podia fazer qualquer tipo de reclamação porque, com o enfático suporte do pai, a mãe era a única que tinha direito de expressar sofrimento: ela “É QUE” se dedicava, ela “É QUE”´trabalhava, ela “É QUE” etc., etc., etc. Resultado: filhos fazendo anos de terapia para recuperar as palavras que, em sua infância, lhes foi interditado enunciar.

segunda-feira, janeiro 02, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTiCOS I: O PROBLEMA DA SOPA

PEDRO: — Meu bem, esta sopa está fria!
CLÁUDIA: — Eu sei que tudo que eu faço é mal feito! Talvez fosse melhor para você que a gente se separasse!
PEDRO: — Eu preferiria que você esquentasse a sopa...

O objetivo de minhas contribuições a este espaço é voltar nossa atenção para detalhes das comunicações interpessoais que, por serem desatendidos, impedem um manejo mais produtivo das relações entre nós, humanos. O formato que, por ora, escolhi para essas contribuições é descrever um pequeno fragmento de diálogo representativo de dificuldades de comunicação freqüentes em nossa cultura e, em seguida, explicitar a natureza dessas dificuldades e sugerir como lidar com elas. Nesse espírito, voltemo-nos sobre o fragmento acima.Um bom diálogo interpessoal – refiro-me, naturalmente, aos que dizem respeito a nossas relações íntimas e cotidianas, não a que tipifica uma aula de Matemática – é MICROSCÓPICO e, não, MACROSCÓPICO. Exemplifico: Afirmação macroscópica: — Você NUNCA me amou!Afirmação microscópica: — ONTEM, NA FESTA DE ANIVERSÁRIO DA ANA, eu me senti rejeitada quando você não me apresentou a seu chefe. O grande problema das afirmações MACROSCÓPICAS é que elas não oferecem condições para nenhum manejo eficaz do problema supostamente em pauta. Na verdade, de maneira geral, uma pessoa que, frente a afirmação de que uma sopa está fria, reage dizendo que “Eu sei que TUDO que eu faço é mal feito!” está consciente ou inconscientemente agindo de maneira desonesta: está tentando desviar a conversa de um universo microscópico em que a sopa está fria – e que pede a óbvia providência de que se a esquente – para um universo macroscópico em que é difícil divisar algo que, de fato, possa ser feito. Essa é uma armadilha freqüente nos diálogos que habitam nosso cotidiano. Naquele – em verdade, fictício – que relatei acima, Pedro consegue não cair nessa armadilha. Percebe a matreira passagem do nível microscópico para o macroscópico e volta para o primeiro. Isso não é comum. O mais das vezes, a partir do “Eu sei que tudo que eu faço é mal feito! Talvez fosse melhor para você que a gente se separasse!”, o que ocorre é o início de uma discussão estéril e infindável, que se repete monotonamente – muita vez diante de cansados filhos – ao longo de anos e anos, para um indiscutível prejuízo de todos. E da sopa.