quinta-feira, novembro 02, 2006

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXI: O PROBLEMA DO NEURÓTICO

Mais de uma vez recebi pacientes perturbados por “previsões” de astrólogos incapazes de processar de maneira adequada as informações com que trabalham. Recentemente, tive que lidar com a compreensível preocupação de uma mãe a quem foi dito, com base na análise do mapa astrológico de seu filho, que ela ou ele tinha que sair de casa, porque um dos dois iria matar o outro! Casos como esse levaram-me a ministrar, em um curso de formação de astrólogos, uma cadeira com o título de “Cuidados na Transmissão da Informação Astrológica”. Assisti a algumas cadeiras ministradas nesse curso e, numa delas, ouvi um diálogo inesquecível:

PROFESSOR (logo no início da aula): — O neurótico tem um problema, blá, blá, blá, blá, blá, blá.
ALUNA (passados já uns quarenta minutos do início da aula): — Mas, professor, afinal das contas, qual o problema que tem o neurótico?
PROFESSOR: — Não, minha filha, você não entendeu. O neurótico tem UM problema, as pessoas saudáveis tem vários...

Raramente eu tinha ouvido um comentário que recobrisse de maneira tão perfeita minha experiência clínica. Com efeito, quanto mais neurótica, mais a pessoa é escrava de UM problema, que ocupa tal espaço em sua vida que os demais problemas deixam de receber a atenção que merecem. Uma paciente, por exemplo, vem a uma primeira sessão e diz que se sente extremamente rejeitada porque não agüenta o fato de que seu ex-marido, mal separou-se dela, já tenha iniciado uma relação estável com outra pessoa, relação que, desconfia ela, talvez já até existisse mesmo antes da separação; vem a uma segunda sessão e diz que que se sente extremamente rejeitada porque não consegue suportar o fato de seu ex-marido, mal separou-se dela, já tenha iniciado uma relação estável com outra pessoa, relação que, desconfia ela, talvez já até existisse mesmo antes da separação; vem a uma terceira sessão e fala que se sente extremamente rejeitada porque é realmente inadmissível que seu ex-marido, mal separou-se dela, já tenha iniciado uma relação estável com outra pessoa, relação que, desconfia ela, talvez já até existisse mesmo antes da separação; vem a uma quarta sessão...

Pois é, o professor de Astrologia tinha razão: a pessoa neurótica tem UM problema, as pessoas saudáveis tem vários. Se, um belo dia, essa paciente esquece como se sentiu rejeitada pelo marido e chega dizendo que se sentiu rejeitada pela irmã, já acho que está melhorando; se diz que tem a impressão de que talvez ela paciente rejeite o síndico de seu prédio, está melhor ainda; se diz que talvez tenha inveja de uma amiga, ainda melhor; se raiva de seu dentista, também. Daqui a pouco, vai ter tantos problemas quanto qualquer pessoa saudável.

Não é curioso que minha função, como psicoterapeuta, seja a de AUMENTAR o número de problemas das pessoas?

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XX: INDIVIDUALIDADE

Eu e mais três amigos, jantando. Embora o clima da conversa estivesse mais para o jocoso, Carlos – evidente que todos os nomes aqui, menos o meu, são fictícios – puxou a conversa para um tom mais sério, começando a falar sobre problemas pessoais, mormente relativos a sua vida sexual e a seu casamento.

CARLOS (casado já há 15 anos): — Uma das coisas que vêm me aborrecendo é que tenho cada vez mais perdido o tesão por minha mulher...
LUÍS CÉSAR: — Há quanto tempo isso vem acontecendo?
CARLOS: — De uns cinco anos para cá, mas, neste último ano, a coisa piorou mesmo.
ANDRÉ: — Caramba, cara, eu também já passei por isso! Não é mole, não. Principalmente, quando você gosta da sua mulher...
MAURÍCIO (um gosador incurável): — Que é isso, Carlos?! Não estou entendendo! Você, com sua experiência de executivo, não saber qual a solução correta para um problema como esse!
CARLOS: — E que diabos de solução é essa?
ANDRÉ: — Eu também não sei que solução é essa!
LUÍS CÉSAR: — Nem eu!
MAURÍCIO: — Ué, terceiriza!!!

Como se sabe, existe “terceirização”, quando uma empresa, com o objetivo de otimizar o exercício de determinadas atividades, transfere para outra(s) pessoa(s) física(s) ou jurídica(s) atividades antes por ela própria desempenhadas. Embora, durante o jantar, a pândega de se propor que Carlos “terceirizasse” o “setor sexual” de sua função de marido tenha recolocado nosso papo no trilho da gaiatice, eu, chegando a casa, fui assomado por uma série de reflexões bastante sérias provocadas pelo diálogo acima e relativas ao conceito de individualidade.
Ora, “indivíduo”, ipsis litteris, significa “não passível de ser dividido”. Mas será, mesmo, que o “indivíduo” não é divisível? Ele é uma espécie de “átomo existencial”, é “um”? Mas, se ele é um, porque, ao organizar as pastas de nossos arquivos, rotulamos uma delas de “documentos de terceiros”? Por que há outra pasta com o rótulo de “documentos de segundos”? Não, não há. E quando uma empresa “terceiriza”, é porque ela já tinha “secundarizado”? Também não. Mistério! Essas divagações levaram-me espontaneamente a outras. Primeira: Por que, quando pretendo que um indivíduo se caracterize de forma que eu possa DIFERENCIÁ-LO dos demais, eu não peço que ele se “DIFERENCIE”, mas, sim, que se “IDENTIFIQUE”? Segunda: se uma pessoa é indivisível, una, como ela pode “cair em si”: o “si” já não era o “ela”? E como pode estar “fora de si”: como “ela” pode estar “fora dela”?
Sou tentado a concluir que todos nós sabemos – embora nem sempre saibamos que sabemos – uma série de coisas. Primeiro: que somos dois – o “minzão” e o “minzinho” – podendo esses dois serem graficamente representados por um círculo menor – o “minzinho” – dentro de outro maior – o “minzão” (círculos que, no jargão psicanalítico, mereceriam ser respectivamente chamados de “o eu” e “o isso”). Segundo: que, quando meu comportamento é comandado pela área pertencente apenas ao círculo maior, estou “fora de mim” e quando ele volta a ser comandado pela parte da figura que pertence simultaneamente aos dois círculos, eu “caí em mim”.
Ora, se sei, ainda que obscuramente, que sou dois, nada mais razoável que os documentos dos outros sejam, não “de segundos”, mas “de terceiros”. Por outro lado, se apenas na área do “minzinho” as áreas dos dois círculos são IDÊNTICAS, nada mais razoável que, só quando essa área está operando, eu tenha sensação de IDENTIDADE e sinta que estou “em mim”. De passagem, é a interação recíproca dos conhecimentos próprios a cada um desses dois setores de nosso psiquismo que merece o nome de “co-ciência”, conhecida mais comumente em nosso léxico sob o nome de “consciência”. Mas isso é papo para outra hora...

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XIX: ESTA HUMANIDADE!

Pouco conheço de Marx, mas uma de suas frases ficou indelevelmente registrada em minha memória: “A crítica arrancou as flores que enfeitavam os grilhões, não para que o homem os arraste sem esperança ou consolo, mas para que os rompa e se aposse da flor viva”.
Em minha última contribuição para essa coluna, ousei afirmar que a máxima cristã “Amai-vos uns aos outros” tem algumas conseqüências bastante perniciosas. O argumento exposto compunha-se de quatro pontos principais:
1) O sentimento de amor não pode ser produzido por um comando de nossa vontade;
2) É totalmente incabível ordenar a um indivíduo que dê origem a algo que escapa a esse comando;
3) Ordens que o fazem geram indivíduos:
a. Que fingem ter cumprido o que não podem cumprir;
b. Que fazem tentativas pateticamente fadadas ao fracasso de conseguir o que não podem;
c. Que desperdiçam tempo e energia que poderiam ter sido empregados em tarefas desejáveis e POSSÍVEIS de serem realizadas.
4) Esses tempo e energia desperdiçados na tarefa inglória de se tentar estabelecer, à custa de vontade e esforço, o “amor universal” entre os homens seriam muitíssimo mais bem empregados se aplicados à tarefa POSSÍVEL E ALTAMENTE DESEJÁVEL de se estabelecer, não o amor, mas, sim, o “respeito universal” entre os homens.
Uma freqüentadoras de minha clínica leu uma cópia do escrito em que expus originalmente essa argumentação. Quando encontrei-me com ela, travamos o seguinte diálogo:
LUÍS CÉSAR: — Então? Soube que você leu o rascunho do meu “Amai-vos uns aos outros”. Que tal achou?
CATARINA: — Bem, primeiro, achei que sou meio assim mesmo, de achar que as pessoas devem amar uns aos outros; segundo, não pude discordar de sua argumentação de que, enquanto os indivíduos se dedicam a tentar fazer o impossível, deixam de fazer o possível; terceiro, vou continuar tentando fazer o impossível mesmo.
LUÍS CÉSAR (surpreso e curioso): — Ah, é! E por quê?
CATARINA: — Ora, se você coloca sua meta em algo que pode, em princípio, fazer e não consegue, a culpa é sua e você ainda vai se sentir pequeno diante dos que conseguem. Por outro lado, se coloca essa meta em algo impossível, a culpa de não conseguir não é sua – é impossível mesmo! – e como ninguém tampouco consegue, você não vai se sentir menor do que ninguém.
LUÍS CÉSAR (perplexo): — É, não deixa de ter a sua lógica...
As colocações de Catarina remeteram-me de imediato ao comentário sobre meu livro que mais me fez refletir e que em seguida transcrevo:
LUÍS CÉSAR: — Sua mulher me disse que você está lendo meu livro. Está gostando?
ALBERTO: — Só li umas trinta páginas e parei.
LUÍS CÉSAR (tão surpreso e curioso quanto fiquei com Catarina): — Ah, é! E por quê?
ALBERTO: — Estava tudo ficando tão claro que eu ia ter que fazer alguma coisa.
Coitado de Marx e da sua “flor viva”...
[1] A ser postado no saite www.vyaestelar.com.br