terça-feira, novembro 06, 2007

RESPONDENDO IMEILS (I)

Dr César

Recebi os dois artigos de 1895 de Freud deste email , outro email sobre "como se formam os Paradigmas" e, de novo os artigos com trechos que salientou e comentários ao pé das páginas. Mesmo com todo "desejo de palavras" novas e, do desejo de entender as velhas também( a cada leitura, muitas palavras li e apreendi), fico devendo na rapidez da assimilação. Li também, no blog, sobre o nível Meta, e tem alguns assuntos que até me atrevo a meta-comentar. É um desafio meta-comentar Freud. Estou usando corretamente o nível Meta?
É importante a correlação com a nomenclatura atual das psicopatologias para clarear sobre seu desenvolvimento. Recebeu respostas das perguntas que fez após o primeiro questionamento, para a pessoa que o procurou pela internet com sintomas de pânico? Penso que percebi como relacionou a neurose atual ( vegetativa) para conduzir este questionamento. Não tenho certeza. Me fiz duas perguntas. Fazer perguntas não acrescenta mais angústia à pessoa? ( faz parte da transmissão que recebi que na psicanálise não faço perguntas, infiro sobre que perguntas a pessoa que fala estaria a responder). São essas perguntas inferidas assim, que está fazendo? Sinto que sua resposta vai me conduzir ao entendimento que vem aos poucos se aproximando, de que o não fazer perguntas se refira não exatamente a não fazer perguntas, mas no como fazer.
Quando me sentir suficientemente estimulada e com coragem, meta-comento os artigos enviados.
Obrigada de novo
XXX


XXX, tenho a impressão de que enganei-me de destinatário ao lhe enviar os textos, mas já que foi assim, lá vai:

1) Quanto a fazer perguntas a um paciente e nele produzir angústia:

Não sei se você conhece um relato de Ralph Greenson, o autor do fantástico "The Technique and Practice of Psychoanalysis", faz - ali mesmo, creio - sobre um paciente que dispôs-se a sair da psicanálise a que se estava submentendo sob a batuta daquele, alegando estar sofrendo pressões, durante o tratamento, para abandonar suas convicções políticas - apoiava o partido democrata - e bandear-se para o democrata - apoiado por seu psicanalista. Greenson ficou perplexo. Não se dava conta em absoluto de tentar fazer isso e presava grandemente a neutralidade - no sentido de imparcialidade de escuta - como instrumento terapêutico. Inquirido o sobre de onde proviera tal impressão, o paciente respondeu: "Ora, é fácil. Toda vez que eu falo bem de um político democrata e mal de um republicano, você não tuge nem muge, mas toda vez que falo bem de um republicano e mal de um democrata, você ME PERGUNTA QUAIS AS ASSOCIAÇÕES QUE ESSE TIPO DE FALA TEM COM MINHA INFÂNCIA! É claro que você acha que pensar bem de democratas e mal de republicanos é normal e que o contrário é um sintoma!"
Talvez - não sei - a proposta de o analista não fazer perguntas tenha sido uma tentativa de proteger sua imparcialidade de escuta. Se foi - você sabe de alguma outra possível razão? - parece-me solução de todo canhestra. Fazer "hm, hm" quando um paciente diz palavras proparoxítonas - mostra uma pesquisa - aumenta significativamente o número de tais palavras em seu discurso. Interpretar aqui e não ali, naturalmente, equivale a dizer que aqui e não ali está o problema. Ou seja QUALQUER INTERVENÇÃO - NÃO SÓ PERGUNTAS - PREJUDICA O PROCESSO DE NEUTRALIDADE. E note-se que a literatura psicanalítica sobre técnica é abundante em se ensinar a decodificar e muda (até onde sei, tirando uma passagem do Freud que afirma só ter cabimento fazer interpretações transferências quando há titubeios na produção das associações livres - passagem, aliás, grandemente esquecida), como dizia, essa literatura é literalmente muda, até onde sei, relativamente a que fragmento merece ser decodificado dentro da imensidade de material que um paciente pode oferecer em uma sessão.
Depois de matutar muito, tentando resolver o problema - pois também considero imparcialidade de escuta algo fundamental - desenvolvi o conceito de "indicador de ruptura" (IR), sinais que apontam para o LUGAR do material fornecido pelo paciente em que, usando uma colocação de Otto Fenichel, "resistido e resistência" se encontram em uma relação de forças favorável para o processamento de nossas interveções. Falarei em mais detalhes sobre isso no curso on-line de técnica que irei postando (quase falei aquele maldito "irei ESTAR postando", argh!), pouco a pouco, em meu saite. São os IRs que permitem que nossas intervenções - sejam perguntas, interpretações, clarificações, ou outras - em vez de produzir angústia - ou sintomas - provoquem perlaboração. Resumindo, o problema parece-me estar muito menos no COMO fazer do que no ONDE fazer. Uma intervenção feita com o maior cuidado em um LUGAR errado pode ser catastrófica, a mais desajeitada em um LUGAR certo costuma ser terapeutica.

2) Quanto à etiologia proposta por Freud para as neuroses vegetativas:

Que ela existe, lá disso tenho certeza, demonstrado pela clínica e pela vida. Para avaliar com que incidência ocorre, seria necessário que essa etiologia fosse pesquisada e, não, descuidada pelos "psico-coisas". Quanto a uma das pessoas que está apresentando síndrome de pânico e vem sendo tratada HÁ MAIS DE SETE ANOS, sem sucesso significativo, por vários desses profissionais:

(a) NENHUM DELES (mentira, um perguntou, mas tão timidamente que não recebeu resposta) lhe perguntou se tem orgasmo em suas relações sexuais;
(b) Ela NUNCA TEVE.

Que acha disso?

sábado, novembro 03, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XL: PEDAGOGIA LOGANALÍTICA

Já existe uma safra de crianças, filhos de pacientes meus, que cresceram dentro de um ambiente loganalítico. E o que é um ambiente loganalítico? Resumidamente, é um ambiente em que os pais sabem (1) a diferença entre repressão – impedir que alguém EXPRESSE VERBALMENTE o que se passa em seu mundo interno – e retenção – impedir que alguém FAÇA ALGO e (2) que uma boa educação RETÉM, MAS NÃO REPRIME. Essas crianças têm-se revelado impressionantemente inteligentes, centradas e maduras. Os episódios abaixo ilustram isso. Aconteceram quando Jean tinha, respectivamente, quatro e cinco anos de idade e cuja mãe, desde quanto ele completara dois, adotara, na educação dele, uma postura loganalítica.

1º episódio

CLARA (em vias de separar-se do pai de Jean): — Meu filho, como você está se sentindo com isso de eu me separar de seu pai?
JEAN: — Ah, estou um pouco triste, mãe!
CLARA: — Posso fazer alguma coisa, meu filho!
JEAN: — Não, mãe, pode deixar! Eu agüento!

Isso em um menino de quatro anos! Quem dera muitos marmanjos fossem capazes dessa capacidade de lidar com os próprios sentimentos!

2º episódio

Cláudia estava num ponto de ônibus com seu filho Felipe, de seis anos, quando uma senhora comentou:

CLARA: — Que neném bonito!
JEAN (de cara feia): — Eu não sou um neném, sou um menino!
CLARA: — Ah, então você já é um homenzinho!
JEAN: — Eu não sou um neném nem um homenzinho, eu sou um menino!

Isso em um menino de cinco anos! Quem dera muitos marmanjos fossem capazes dessa clareza sobre sua própria identidade!

***

Vou acrescentar um episódio que aconteceu comigo, quando eu tinha quatro anos. Sem grande vantagem em relação a Jean, pois minha mãe era loganalista avant la lettre.
Eu estava debruçado sobre uma janela do apartamento de minha tia-avó. Ela entra no aposento e grita, apavorada:

ESTER: — MEU FILHO, SAI DESSA JANELA!
EU (saindo da janela e passando por ela): — Quando uma criança estiver numa janela, você não grita, porque a criança pode se assustar e cair lá embaixo!

Fiquei famoso na família.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXIX: ANSIOSTATO QUEBRADO

O fragmento de diálogo que passo a relatar aconteceu há mais de trinta anos, e, para mim foi uma aprendizagem inesquecível.
André era um paciente extremamente ansioso. Hoje em dia, atendo alguns pacientes deitados outros sentados, segundo a vontade deles e as necessidades do tratamento. Naquela época, todos – e, por conseguinte, André – eram atendidos deitados. Sua ansiedade era particularmente visível em sua respiração e, evidentemente, também em suas próprias verbalizações sobre seu estado, nas quais relatava não só a própria vivência de ansiedade, como a presença de indicadores físicos que soem acompanhá-la: aceleração dos batimentos cardíacos, secura dos olhos, suor frio etc. Mas, nesse dia, alguma coisa de especial havia acontecido. Deitou-se no divã, ficou em silêncio, e percebi uma respiração longa e profunda, totalmente incompatível com um estado de ansiedade. Ao que comentei:

LC: — Hoje você parece estar bastante calmo!

Foi o bastante para que, de imediato, retornasse a seu estado “normal”, com a respiração evidentemente alterada e exclamando:

ANDRÉ: — Caramba! Foi só você falar isso, que meu coração se acelerou de novo e estou começando a suar novamente!
LC: — Bem, parece que você já está nervoso, outra vez!
ANDRÉ (dando um suspiro de alívio e retomando uma respiração profunda, indicativa de que a tranqüilidade retornara): — Aaaaaaaaah! Engraçado, FIQUEI CALMO OUTRA VEZ!

Como alertou Shakespeare, há certamente mais coisas sob o céu do que sonha nossa vã filosofia! Como diabos poderia eu imaginar que dizer para um paciente que ele estava calmo iria fazê-lo ficar nervoso?! Que supervisor poderia ter-me alertado sobre isso? Que literatura?
Mas, enfim, a experiência acabou sendo útil, pois, a partir dela, desenvolvi a teoria do “ansiostato quebrado”. E o que é isso?
Fácil. Termostato você conhece, não é? Ele nos permite ajustar, por exemplo, um aparelho de ar condicionado para que se mantenha um determinado aposento a uma determinada temperatura, ligando ou desligando o aparelho, de forma a que se faça esse ajuste. Recentemente, o termostato de um de meus aparelhos de ar condicionado quebrou, ficando fixado em sua temperatura máxima. A conseqüência disso, naturalmente, foi a de que eu não podia mais, enquanto não o consertasse, ajustar a temperatura do quarto a meu bel-prazer.
Em minha teoria, todos nós somos providos de ansiostatos, que nos permitem ajustar nossa ansiedade – ou nosso medo – de acordo com o grau de perigo a que nos cremos sujeitos em um determinado momento, em determinadas circunstâncias.
Ocorre que, em certas pessoas o ansiostato quebra. Nesse caso, a ansiedade é mantida SEMPRE, no mesmo nível – para mais ou para menos – de forma que elas não podem mais AJUSTAR SEUS ANSIOSTATOS em conformidade com ao nível de perigo a que creem estar, de fato, expostos. André era um exemplo disso. Seu ansiostato havia quebrado, tendo ficado fixado na posição “MUITA ANSIEDADE”. Ele não era louco e sabia muito bem que sua ansiedade era excessiva. Quando assinalei que ela havia caído, acionou-se nele um sinal de alarme e a ansiedade subiu; quando apontei a queda, o alarme se desligou e ele novamente se acalmou.
Claro que eu não cometi a estupidez de dizer que ele estava calmo outra vez!

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXVIII: PSICOVACINAÇÃO

Como vimos no diálogo anterior, a função do tratamento psicanalítico (a Loganálise, enquanto técnica, é uma maneira particular de se levar adiante esse tipo de tratamento) é patrocinar a dissolução do interdito que impede que um conhecimento de natureza não verbal se conecte a um conhecimento de natureza verbal. Na verdade, o núcleo gerador dos distúrbios psicológicos passíveis de serem tratados psicanaliticamente, são fobias a certas palavras, verdadeiras LOGOFOBIAS. Vale sublinhar isso:

A ESSÊNCIA DO TRATAMENTO PSICANALÍTICO É A DISSOLUÇÃO DE LOGOFOBIAS.

No diálogo intitulado “Você me acha gostosa?”, afirmei que, para levar adiante de forma bem sucedida um tratamento psicanalítico, “não basta você acertar QUAL O TEMA que merece tratamento prioritário durante um certo momento da análise, é necessário que você os CONSIGA ABORDÁ-LOS DE MANEIRA ‘VACINAL’. Na verdade, a Psicanalise – loganalítica ou não – opera como uma vacina: você introduz no paciente o elemento perturbador, mas com sua virulência suficientemente atenuada para que a conseqüência disso seja a geração de imunidade, não de doença.”

Vejamos o seguinte diálogo:

PACIENTE: — Tô com medo de falar uma coisa e você pensar que eu sou veado.
LC: — Já pensei. Pronto, pode falar.
PACIENTE: — Pô, Luís César, assim não dá!
LC: — Ué, a dificuldade de falar não era o medo de que eu pensasse que você é veado? Como eu já aconteceu, não há mais nada a temer.
PACIENTE (visivelmente mais à vontade): — Bem, o que eu estava pensando em dizer é que blá, blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Quando se está trabalhando em áreas com um razoável nível de metrificação, pode-se aprender de um professor experiente ou na própria literatura relevante que uma determinada condição mórbida deve ser tratata inicialmente com, por exemplo, 200 miligramas de Benzetacil, uma vez por dia, durante um mês. Qual a possibilidade de, numa área não metrificada como a da clínica psicanalítica, se transmitir ou obter a informação de que a logofobia de um determinado paciente deverá se dissolver se lhe forem introduzidos, por exemplo, 200 psicotrons de “sentimento de ser veado” a cada sessão? Nenhuma, claro. Ou seja, o terapeuta fica ao sabor de sua sensibilidade, experiência e criatividade, para atingir a tal “dosagem vacinal”. No diálogo transcrito aqui, eu acertei essa dosagem, liberando no paciente uma fala bloqueada; já, como vimos, no diálogo transcrito em “Você acha que eu sou gostosa?”, errei – para mais – na dosagem, desorganizei a paciente e ela interrompeu o tratamento. Fiz isso também, recém-formado, com um outro paciente, ao expor-lhe de maneira excessivamente clara a origem dos seus sintomas. Ele procurou um psiquiatra que o atendeu medicamentosamente e, em seguida, rompeu o tratamento comigo. Nos quarenta anos a que me dedico a clínica psicanalítica, cometi esse erro ainda mais uma vez, mas, dessa feita, pude reparar o erro.
Conto no próximo “DIÁLOGO”.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXVII: DUAS CIÊNCIAS

Nossa experiência do mundo tem elementos verbais e não verbais. Quando esses elementos estão simultaneamente presentes, estamos “conscientes”, ou melhor, “co-cientes”. Na língua italiana isso fica particularmente claro: a palavra “coscienza” (= consciência) agrega o prefixo “co” (= contigüidade, simultaneidade, companhia, correlação, complemento) ao radical “scienza” (= ciência). Todos nós já passamos por episódios como o seguinte:

FULANO: — Você está esquisito hoje!
BELTRANO: — É, eu sei. Estou sentindo uma coisa estranha dentro de mim (= ciência), mas não sei o que é... Já sei, É RAIVA (= co-ciência, em nossa língua, co/ns/ciência)!!! Estou com raiva de blá, blá, blá, blá, blá, blá... (= refinamento da co/ns/ciência)

Isso nos permite entender melhor que o INCONSCIENTE de que fala Freud não corresponde a uma INCIÊNCIA (in + ciência) – uma falta de ciência – mas, sim, à FALTA DE uma DUPLA CIÊNCIA, ou seja, a uma IN-CO-CIÊNCIA, que nosso vernáculo chama de “inco(ns)ciência”. Não me parece haver nada que possa ilustrá-lo de forma mais cristalina do que o seguinte tipo de experimento hipnótico:

Júlio hipnotiza Rosana em um aposento em que se encontram outras cinco pessoas e lhe ordena que, quando voltar ao estado de vigília, NÃO VEJA PEDRO, uma dessas outras pessoas, esquecendo, outrossim, que essa ordem lhe está sendo dada. Saída Rosana do estado hipnótico, Júlio lhe pergunta quem são as pessoas que estão ali. Rosana acusa a presença de todos, MENOS A DE PEDRO. Júlio, então, posta-se por detrás de Pedro, de forma que esse último fique entre ele e Rosana, pedindo, em seguida, que essa se aproxime dele, Júlio. Rosana vai na direção de Júlio, em rota de colisão com Pedro, mas, antes que a colisão ocorra, DESVIA-SE, evitando-a. Júlio pergunta por que, em vez de caminhar em linha reta na direção dele, ela se desviou. Rosana responde que não sabe, que simplesmente lhe deu vontade de desviar. Perguntada novamente sobre os que estão na sala, continua sem ser capaz de reconhecer a presença de Pedro. Note-se que os estudiosos do fenômeno – denominado alucinação negativa por indução pós-hipnótica – são unânimes em afirmar ter razão para sustentar que os sujeitos dessa experiência não estão simulando, que não estão mentindo quando afirmam não ver as pessoas ou objetos dos quais, não obstante isso, são capazes de se desviar. Ou seja, têm CIÊNCIA – conhecimento não verbal – mas não têm CO(NS)CIÊNCIA da presença da pessoa de quem se desvia.

A maior de todas as descobertas freudiana foi a de que, enquanto não encontra seu EQUIVALENTE VERBAL, toda a CIÊNCIA NÃO VERBAL de uma experiência relevante fica dentro de nós procurando pirandellianamente esse seu companheiro, como uma personagem à procura de um autor. E como, por razões históricas, o acesso a esse equivalente verbal está interditado, acaba por escolher representantes não verbais para simbolizar a palavra que falta. Esses equivalentes “ilegítimos” são os sintomas, e a função da Psicanálise é levantar aquele interdito, cessando a procura desesperada pelo equivalente legitimo, verbal.
A palavra “termo” provém do latim terminus (= término). Não é à toa, que a experiência humana só chega a termo, quando chega ao termo.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXVI: EVA

Ainda estudante, fiz estágio na emergência psiquiátrica do então INPS (hoje INSS). Atendia os pacientes que chegavam objetivando fazer uma triagem diagnóstica e enviando-os, em seguida, para os psiquiatras, que se ocupavam de os tratar. Esses pacientes nunca chegavam ali levados por suas próprias pernas, mas levados por terceiros, freqüentemente policiais. Certa noite, chega-me, sozinha, uma senhora, serena e bem vestida – a que chamarei de Mara – dizendo que gostaria de ser atendida. Achei estranho. Segue-se o diálogo que transcorreu entre nós::

LC: — Em que posso ajudá-la?
MARA: — Ocorre o seguinte. Eu sou a quinta reincarnação de Eva. Deus fez o meu corpo em outra área de nossa galáxia e eu não me adapto bem às condições climáticas da Terra.
LC: — Pois não.
MARA: — Sendo assim, todo mês eu preciso ter uma entrevista com Deus, quando ele renova todas minhas moléculas, de forma que eu possa ficar bem aqui neste planeta.
LC: — E em que eu poderia ajudá-la?
MARA: — Bem, ultimamente eu tenho tido dificuldade em agendar uma entrevista com Deus, minhas células não estão sendo renovadas e, por isso, eu estou um pouco nervosa. Resolvi, então, procurar os senhores para ver se haveria algum medicamento que me deixasse mais calma.

Um delírio, via de regra, é uma forma de encobrir com uma espécie de “mito pessoal” fatos verídicos da vida do sujeito que ele tem dificuldade de enfrentar. Há testes psicológicos que nos permitem “contornar” a barreira desse mito pessoal e ter um acesso aproximado a esses fatos. Num deles apresentam-se ao paciente cartões com manchas informes, pedindo-se que diga o que aquelas manchas podem ser. Grosseirissimamente falando, se o sujeito está com fome, tende a ver comida nas manchas, se está sexualmente excitado, a ver partes genitais, casais copulando ou equivalentes, se está com sono, seu quarto de dormir etc.. Há respostas chamadas “vulgares”, dadas por quase todos os examinados, e que não fornecem nenhuma informação sobre suas histórias pessoais, emoções ou desejos . Foi esse teste que propus-me a aplicar na paciente, pensando em contornar suas defesas. Mas ela foi mais esperta do que eu e meu teste.
Passei-lhe o primeiro cartão: deu a resposta vulgar e devolveu o cartão. Passei-lhe o segundo: deu a resposta vulgar e devolveu o cartão. Passei-lhe o terceiro: a mesma coisa. Passei-lhe o quarto. Parou, olhou-me com uma expressão mista de condescendência e censura, orientando-me pacientemente da seguinte forma:

MARA: — Doutor, o senhor não faça isso com as pessoas!
LC: — Como assim?
MARA: — Doutor, as pessoas que vêm aqui, estão com a cabeça cansada. O senhor dá essas coisas confusas, cansa mais a cabeça. O senhor deve fazer assim: mostra um Volkswagen, um abajur... A pessoa responde: um Volkswagen, um abajur. Não cansa a cabeça!
E recusou-se a continuar fazendo o teste. Podia ser louca, mas não era nada burra.

sexta-feira, julho 20, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXV: LOGANÁLISE E AS TESTEMUNHAS DE JEOVÁ

Não sou religioso. Na verdade, sou agnóstico. Do ponto de vista clínico, o que verifico é que determinadas pessoas usam a religião a seu favor e dos demais e outras usam-na contra si mesmas e contra os outros. Muitas vezes, a mesma religião. Quanto a conteúdo, acho boa parte do que dizem padres, pastores, imãs e aiatolás um amontoado de insensatez.
Foi, portanto, para meu alargado espanto que encontrei, folheando um exemplar de “A Sentinela” (vol. 127. n° 18), revista publicada pelas Testemunhas de Jeová, um artigo intitulado “Mostre Amor e Respeito por Controlar a Língua”. “Controlar a língua”!? Prato cheio para um loganalista! Meti-me imediatamente a lê-lo e – amplia-se ainda mais o espanto! – encontro algumas afirmações – a maior parte delas apoiadas por citações da Bíblia – absolutamente afinadas com o que defendo em meu livro “A Nova Conversa” e nos “Diálogos” que publicados aqui. . Vejamos:

1º. O reconhecimento – e numa revista que, segundo o editor, tem cada número com uma tiragem média de 27 milhões de exemplares! – da fundamental importância da qualidade de nossa comunicação verbal: “a maneira como você usa a língua é um assunto sério” (p. 21);

2º. A afirmação de que um adequado uso da palavra tem estreita relação com a capacidade de sermos senhores de nós mesmos. O artigo cita o apóstolo Tiago (3:2): “Se alguém não tropeçar em palavra, esse é o homem perfeito, capaz de refrear também todo o seu corpo” (ibidem)

3º. A condenação da macroscopia, considerada forma inadequada de comunicação interpessoal: “E que dizer de afirmações indiscriminadas ... Não concorda que declarações do tipo ‘você sempre atrasa’, ou ‘você nunca me escuta’ são realmente exageros?” (Ibidem)

4º. A proposta de que autologias – frases enunciadas na primeira pessoa verbal – substituam as heterologias – frases enunciadas nas demais pessoas verbais: “Digamos que surja um desacordo entre marido e esposa. Uma sutil mudança de ‘você’ para ‘eu’ pode evitar que um desacordo menor se torne uma discussão acalorada. Por exemplo, em vez de dizer: ‘Você nunca passa tempo comigo!’, por que não dizer: ‘Eu gostaria que pudéssemos passar mais tempo juntos’?” (Pág. 22)

5º. A ênfase em que, na medida em que estou fazendo o essencial, ou seja, expondo meus sentimentos e desejos em primeira pessoa, ter ou não ter razão é algo secundário: “Resista à tentação de tentar provar quem está certo e quem está errado” (ibidem).

Uma verdadeira aula de Loganálise, que, agora, além de se apoiar em Freud, encontra seu apoio bíblico!
De algo, contudo, defendido por “A Sentinela”, discordo radicalmente, seja, da proposta veiculada no artigo, de que, além de controlar nossa língua, tentemos controlar nossos sentimentos: “Paulo [Efésios 4:31] exortou os efésios a evitar não apenas as palavras duras, mas também os sentimentos por trás delas” (ibidem).
Sentimentos expulsos voltam a galope, sob forma de sintomas e de comportamentos destrutivos que escapam de nosso controle. ISSO, que São Paulo me perdoe, NÃO DÁ CERTO!

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXIV: CHORO

Fragmento de um longo imeil que me foi enviado por um de meus irmãos, que chamarei aqui de Otávio:

“Lembro de uma vez que você fez uma reunião de família e chorou bastante para falar de algumas culpas e eu fiquei espantado porque não conseguia imaginar você com aquela "fraqueza". Foi a primeira vez que pensei que chorar poderia significar força, já que eu tinha passado tantos anos chorando descontroladamente (era uma vergonha na escola), coisa que só consegui dominar com muita força de vontade.”

Decidi que responder a ele, empregando o tipo de formato que uso aqui:

“Otávio, sei que você é uma pessoa interessada em Psicologia, particularmente a de cunho psicanalítico. Então acho que – relativamente a “choro poder significar força” – você vai achar enriquecedoras algumas considerações sobre a “força do ego”. Essa força tem três níveis:

Nível 1 – Neste nível – impulsivo, máximo na psicose – o ego é tão fraco que, se o sujeito entrar em contato com um desejo ou uma emoção, deixa-se invadir e dominar por eles, expressando-os sem controle, sob formas que podem ser gravíssimas – alucinações, delírios e comportamentos altamente desadaptados. Ilustro com um diálogo:

PACIENTE: — De vez em quando, tem passado rapidamente por minha cabeça uns pensamentos agressivos em relação a meu pai.
LC: — Ué, deixa vir.
PACIENTE: — Não deixo, não.
LC: — Por quê?
PACIENTE: — Porque se eu deixar, eu faço.

A paciente já tinha sido vítima de surtos psicóticos. No último deles, ocorrido em plena madrugada, uma voz lhe ordenou que fosse até a cozinha, pegasse um facão e o enfiasse em seus pais, que dormiam. Alguma coisa dentro dela se opôs a isso e a voz disse que, sendo assim, ela teria que tirar toda a roupa e sair nua pela rua – uma das principais do Rio – onde morava, o que ela fez, sendo presa por PMs e levada para o Pinel. Acontece que, há mais de ano, eu não a estava atendendo mais no hospital, mas sim, em minha clínica, onde não costumo atender pacientes graves, sendo que, à época da sessão, a paciente já estava bastante bem. Imagino que foram esses dois fatores que me levaram a cometer o deslise de propor a uma paciente com um ego fraquíssimo que desse rédea solta aos pensamentos agressivos que abrigava em relação a seus genitores. Se a paciente, naquele momento, não tivesse tido mais juízo do que eu e me “puxado a orelha” a tempo, minha intervenção poderia ter tido conseqüências bastante nocivas.
Embora, certamente, você, meu irmão, não seja nem jamais tenha sido psicótico, quando você era avassalado pelo choro em sua escola, a força de seu ego, pelo menos no que diz respeito ao choro, se encontrava nesse primeiro nível, ou seja, era incapaz de controlá-lo.”

Nível 2 – Neste nível – repressor, típico da neurose – o ego consegue controlar seus impulsos e emoções À CUSTA DE ROMPER DE FORMA RADICAL SEU CONTATO COM ELES. A paciente a que me referi estava bem quando ocorreu o diálogo que acabei de transcrever porque seu ego estava começando a se estabilizar – mas não o suficiente ainda – nesse segundo nível, neurótico, de força, mas essa estabilidade ainda não era sólida o suficiente para que o contato com seus impulsos parricidas não a jogassem de volta ao nível anterior. Acho provável que, no que diz respeito ao assunto “choro”, você tenha passado do Nível 1 para o Nível 2 de força do ego, quando “só com muita força de vontade” conseguiu dominá-lo.

Nível 3 – Neste nível – integrador, típico da saúde psicológica – o ego consegue controlar seus impulsos e emoções SEM TER QUE EFETUAR UM ROMPIMENTO RADICAL, como o que tipifica o nível anterior. Pode dar acesso ou bloquear o acesso desses impulsos e emoções tanto à consciência quanto ao comportamento, conforme as circunstâncias o exigirem. Ilustro com um episódio que ocorreu comigo, o qual, sendo eu, como você sabe, um bom gaiato, embora fosse triste, acabou por ficar com um toque cômico:

Eu estava, um domingo pela manhã, em Paquetá, com uma amiga – vou chamá-la de Tânia aqui. Poucos dias antes, havia ocorrido um episódio que me deixara profundamente triste e inconformado: uma perda absurda, dessas completamente desnecessárias, nascida da mera leviandade com que se tratara um assunto extremamente grave, isso a despeito de eu haver alertado repetidas vezes as pessoas envolvidas dos riscos potenciais da situação em tela. Eu não podia pensar no assunto que as lágrimas vinham a meus olhos junto a uma profunda dor e eu sabia que só eu impediria que aquela dor se transformasse em um trauma se desse a mim mesmo a oportunidade de chorar muito e durante um bom tempo. Por volta de meio-dia, eu estava sentado na varanda de minha casa, em silêncio, olhando para lugar nenhum, quando Tânia se aproximou.

TÂNIA: — Você está precisando falar e chorar mais um pouco?
LC: — Estou, mas não agora. A barca para o Rio sai às 17hs. Temos que ir ao supermercado comprar alguma coisa, voltar para casa, preparar o almoço e depois comer e, quem sabe, descansar um pouco. As três horas eu levanto e choro até às 16hs, aí arrumamos as coisas e pegamos a barca das cinco.
TÂNIA: — Você está MARCANDO HORA para chorar?
LC: — Isso.
TÂNIA (me olhando como se eu fosse um iéti, o abominável homem das neves, ou, quem sabe, um hipopótamo azul): — Você é mesmo uma figura, hein!

Devo ser mesmo. Porque fui ao supermercado, voltei, ajudei a fazer o almoço, comi – nada disso, obviamente, de alma leve, mas sem chorar – descancei um pouco, pus o despertador para as três, levantei-me quando ele tocou e, durante uma hora, voltei ao assunto com minha acolhedora amiga, falando aos soluços, tomado por um pranto convulsivo e sentindo intensa dor. Às quatro, disse: “Chega!”. Arrumamos nossas coisas e fomos pegar a barca. Eu ainda inevitavelmente triste, mas indiscutivelmente aliviado.
Esse, naturalmente, é um exemplo extremo – como a psicose é um exemplo extremo do primeiro – do terceiro e último nível de força do ego, mas expõe sua característica principal: a possibilidade de entrarmos em contato com nossas emoções e nossos desejos, sem permitir que eles nos tomem de assalto, destruindo a nossa vida real.
Abraços de seu irmão, Luís César.”

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXIII: "VOCÊ ME ACHA GOSTOSA?".

Nosso último “DIÁLOGO” começava assim:

PACIENTE: — Você está me achando chato?
LC: — Posso?

E, como vimos, minha intervenção terminou por levar a um destravamento do processo terapêutico. Descobri, tempos depois, esse tipo de intervenção pode ser perigoso. Notem o efeito que teve com outra paciente, uma mulher particularmente atraente:

PACIENTE: — Você me acha gostosa?
LC : — Posso?
PACIENTE (aos berros e desabando em um pranto convulsivo): — NÃO! NÃO! NÃO PODE!!!

E, continuou chorando convulsivamente, enquanto eu tentava me recuperar do susto que levara. Só se acalmou um pouco, embora continuasse choramingando, quando intervim, quase que dando uma bronca:

LC : — Menina, você quer me matar? Já estou velho. Se você me der mais um susto desses eu embarco desta para a melhor!

Eu não tinha avaliado corretamente o nível de regressão da paciente e, conseqüentemente, tampouco a intensidade do pânico que llhe provocava a idéia de ser desejada sexualmente, em particular, imagino, por uma figura mais velha em posição de autoridade (na verdade, a paciente estava havia pouco tempo comigo e já tinha dado indícios que sugeriam ter sido ela seviciada, na infância, pelo pai). Meu erro acabou por se mostrar irreparável: ela não suportou trabalhar essas dificuldades comigo e abandonou o tratamento. Hoje, depois dessa experiência, eu, em situação análoga, desenvolveria o diálogo da seguinte forma:

PACIENTE: — Você me acha gostosa?
LC : — Qual o impacto que tem sobre você a possibilidade de eu achá-la gostosa?

Ou seja, ter-me-ia aproximado do assunto de maneira muito mais delicada, evitando possivelmente, dessa forma, a defecção da paciente. Esse tipo de erro deixa claro que não basta você acertar QUAL O TEMA que merece tratamento prioritário durante um certo momento da análise, é necessário que você os CONSIGA ABORDÁ-LOS DE MANEIRA “VACINAL”. Na verdade, a Psicanalise – loganalítica ou não – opera como uma vacina: você introduz no paciente o elemento perturbador, mas com sua virulência suficientemente atenuada para que a conseqüência disso seja a geração de imunidade, não de doença. Eu errei e a paciente saiu do tratamento, certamente perturbada. Tenho a esperança de que outro terapêuta tenha podido consertar meu engano.
Durante as quatro décadas em que venho trabalhando como terapeuta, cometi mais dois erros semelhantes. Um dia desses, eu conto.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXII: CHATICE.

Fragmento de sessão:

FÁBIO: — Você está me achando chato?
LC: — Posso?
FÁBIO: — Claro que não!!!
LC: — E por quê?
FÁBIO: — Ué, eu me sinto mal.
LC: — Eu também, se achar você chato, vou-me sentir mal.
FÁBIO: — Então!
LC: — Então, o quê?
FÁBIO: — Eu quero evitar isso.
LC: — Fábio, o que é que nos estamos fazendo aqui?
FÁBIO: — Loganálise, ué!
LC: — A Loganálise é um papo social?
FÁBIO: — Não.
LC: — Pois é. Num papo social, nada mais razoável do que os participantes evitarem ser chatos. Não me parece que seja bem o nosso objetivo aqui. Qual é nosso objetivo aqui?
FÁBIO: — Ué, eu ficar bom.
LC: — Tá, mas que recurso nós estamos usando para atingir isso?
FÁBIO: — Ué, eu falar tudo o que me vem a cabeça e depois refletirmos juntos sobre o que está acontecendo ou que aconteceu.
LC: — TUDO o que vem à sua cabeça, MENOS o que faça você parecer chato?
FÁBIO: — Não. Você tem razão. Faz parte do jogo eu ter que enfrentar a possibilidade de você me achar um chato.
LC: — Acho que eu tenho perfeitas condições de sobreviver à possibilidade de achá-lo um chato.
FÁBIO: — Tá bom, pode me achar chato á vontade.
LC: — Obrigado, fico mais à vontade. Podemos prosseguir?
FÁBIO: — Claro! Blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Consideremos duas situações antípodas: por um lado, uma sessão psicanalítica, em que o fato de o analista estar achando o paciente interessante ou chato, culpado ou inocente, bonito ou feio, inteligente ou burro etc. não deveria em nada prejudicar ao paciente; por outro, uma audiência judicial, em que faz toda a diferença do mundo o juiz achar que o réu tem razão ou não. No primeiro caso, não há o menor sentido em tentar influenciar o pensamento do analista; no segunto, há todo sentido em tentar influenciar o do juiz. Acontece que a maior parte das pessoas está viciada nesse segundo tipo de comportamento e tenta manipular os outros, introduzindo ou querendo bloquear neles, pensamentos CUJA CONSEQÜÊNCIA CONCRETA sobre a vida do pretenso manipulador é INSIGNIFICANTE OU NULA. Conseqüência? Exemplifico: um sujeito está sentado em um restaurante e pede um vinho mais caro do que o que queria pedir PARA QUE O CASAL DO LADO, que ele não conhece nem tem a menor relevância para sua vida, NÃO PENSE QUE ELE É POBRE. Em suma: está sendo controlado por aqueles que pretende controlar, e com um sério agravante: SEM A MENOR NECESSIDADE DE FAZÊ-LO!
A regras da relação psicanalítica foram idealizadas para que essa armadilha seja exposta e evitada.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXXI: FRUSTRAÇÃO OU TRAUMA?

O tratamento de Fernando foi um dos mais bem sucedidos dentre os que conduzi. Não apenas por seu resultado ter sido extremamente satisfatório, mas pela gravidade de seu quadro clínico quando começamos nosso trabalho. Fernando estava em pleno processo regressivo: começara trancando sua matrícula no curso de medicina; em seguida, rompeu com os amigos e, pouco depois, com a namorada; começou a colecionar estátuas de Buda em seu quarto (o que, naturalmente, só tem o significado mórbido pelo contexto em que ocorreu) e, morando em frente à praia, passava a maior parte do dia dentro d’água, fazendo surf. A direção geral do processo era de afastamento do mundo. Hoje, é um bem sucedido médico em um país do primeiro mundo. Lá para o fim de sua análise, quando já quase completamente recomposto – já retornara à faculdade, aos amigos, saia novamente com garotas e, evidentemente, não passava mais o dia inteiro dentro d’água (com os Budas, não me lembro o que aconteceu) - saiu-se com essa:

FERNANDO: — Interessante! Sempre detestei Microbiologia. Quando tranquei a matrícula, tinha sido reprovado nessa cadeira. Depois que voltei para a faculdade, retardei o quanto pude reinscrever-me nela. Logo que entrei em análise, pensei: vou fazer análise, ficar bom, passar a gostar dessa porcaria dessa matéria, estudar com gosto e passar. Agora, estou chegando a conclusão de que não há análise no mundo que me faça gostar de Microbiologia e, ou eu enfio a cara, mesmo detestando isso, sou aprovado na matéria e pego meu diploma, ou nunca vou ser médico em minha vida! [Após um bom período de silêncio, continua:] Será que ter alta é descobrir que o psicanalista não serve para nada? [Mais um silêncio e completa:] Não, serve sim. É a única pessoa que consegue ouvir tranqüilamente que ela não serve para nada.

Esse monólogo – na verdade, um diálogo consigo mesmo – ilustra um importante resultado de uma análise bem sucedida: o de transformar uma situação traumática em uma situação meramente frustrante. A diferença entre esses dois tipos de situação pode ser abordada de vários ângulos, mas um dos mais relevantes é o de que a situação meramente frustrante é insatisfatória, mas não paralisa nem desorganiza o sujeito e a situação traumática sim. Fica evidente, no exemplo de Fernando, que a necessidade de estudar Microbiologia para conseguir o diploma de médico passou, ao longo da análise, de situação traumática para situação meramente frustrante. E o paciente “deu a dica” de que instrumento opera esse “milagre”: é a naturalidade da escuta do analista, capaz de ouvir, inclusive, que “não serve para nada”.
As considerações de Fernando apontam também para o fato de que, freqüentemente, a expectativa do paciente em relação à análise, NÃO É apenas a de que o analista transforme trauma em frustração. O mais rotineiro é um paciente que fica paralisado e desorganizado – leia-se traumatizado – diante de situações de rejeição, dizer ao analista que o que deseja conseguir do tratamento é, por exemplo, “parar de se sentir rejeitado”.
É importante explicar a ele que a análise não tem o condão de lhe fornecer isso, mas, apenas o de que a rejeição não o traumatize, paralisando-o e desorganizando o seu comportamento. E, de passagem, que não achar desagradável ser rejeitado não é exatamente o melhor exemplo do que seja saúde mental.

quarta-feira, julho 04, 2007

OS MALEFÍCIOS DA PSICOLOGIA DO FAZ-DE-CONTA

Sobre a reportagem "EU, MEU MELHOR AMIGO", publicada na edição 2015 da revista VEJA (ano 40, n° 26, 4/07/2007):

Empregar técnicas psicológicas para instrumentar a premissa de que "cada um é o que pensa ser" é, no mínimo, perigoso. Conheço vários pacientes internados em hospitais psiquiátricos que "acreditam que são o que pensam ser". Uma dentre esses pacientes, por exemplo, na realidade impossibilitada de ser mãe, desfila pelo pátio de um desses hospitais levando nos braços uma boneca de pano que diz ser sua filha, no que, naturalmente, apenas ela acredita.
Remédios empregados em overdoses ou fora de indicação são veneno. Como professor de Psicanálise e prático da clínica psicanalítica faz quarenta anos, posso asseverar que a Pretending Psychology (Psicologia do Faz-de-Conta) americana prescreve o chamado "pensamento positivo" de maneira indiscriminada e em doses claramente tóxicas, do que é exemplo, a sugestão - feita em O Segredo por Rhonda Byrne - de que esse tipo de pensamento, adequado somente para certas condições específicas, se torne um "modo de vida para" todos.
Ora, qualquer psicanalista iniciante sabe que a aplicação do pensamento positivo dessa forma e nessa dosagem acaba redundando em recalque, ou seja, alienando permanentemente o sujeito do contato de várias partes de si mesmo, tornando-o uma farsa e provocando uma série de distúrbios físicos e psicológicos. É minha opinião, inclusive, que a obrigação, típica do ambiente cultural americano, de estar o tempo todo OK é a principal responsável pelo fato de que, com apavorante freqüência, alguém que não mais agüenta ter que fingir que está bem quando não está suba em uma torre e mate indistintintamente várias pessoas que não conhece, dando lugar a deploráveis episódios como os ocorridos em 1999, em Columbine, e, mais recentemente, na Universidade da Califórnia. A Psicologia do Faz-de-Conta americana é a versão não medicamentosa do Prozac, e, como esse, já está começando a ser usada quando não há nenhuma indicação médica para isso.
O uso indiscriminado de ambos é uma seta apontada para a criação de uma sociedade de zumbis sorridentes - verdadeiros "bobos alegres" - como os descritos por Huxley e Orwell em, respectivamente, "O Admirável Mundo Novo" e "1984".
Já é mais do que tempo que profissionais sérios e competentes da área da saúde comecem uma cruzada para combater essa investida irresponsável contra saúde psicológica da população.

terça-feira, julho 03, 2007

AUTO-ESTIMA E A LITERATURA DE AUTO-AJUDA

No que diz respeito ao uso que a chamada Literatura de Auto-ajuda faz do conceito de auto-estima, gostaria de defender o seguinte ponto-de-vista:

O cerne da questão está em que a auto-estima proposta pelo que eu chamo de Pretending Psychology - a Psicologia do Faz-de-Conta - que domina esse nicho editorial, é uma auto-estima fake, procurada pelo que Freud, em "Sobre a Psicoterapia", chamava via di porre, enquanto a auto-estima que, indiscutivelmente, vale ser obtida, só pode sê-lo per via di levare . Meu comentário, feito em "A Nova Conversa" (Rio: Ediouro, 2004), sobre o filme Don Juan de Marco, versa sobre a matéria:

"TO SHRINK OR NOT TO SHRINK?

Recalcar, na verdade, é a maneira cientificamente mais garantida de se produzir um neurótico. Posto isso, nada mais razoável do que esperarmos haver consenso prático e teórico, entre profissionais de saúde mental (chamados por um de meus pacientes de "os psicocoisas"), sobre que o objetivo de qualquer tratamento da neurose seria dissolver recalques, satisfazendo Desejos de Palavra insatisfeitos e ampliando consciências estreitadas. Infelizmente, não é bem assim e a ausência de tal consenso foi magistralmente captada por uma película cinematográfica estrelada por Brando.

Don Juan de Marco

Quem acompanhou os diálogos dessa película apenas através de sua tradução legendada perdeu um essencial e saboroso detalhe, intimamente relacionado com a questão em torno da qual se desenvolve toda a trama. O Dr. Jack Mickler – personagem representada por Marlon Brando – é, no idioma original do filme, o inglês, ora chamado de psychiatrist, ora de shrink. Na tradução para o português, todavia, tanto psychiatrist quanto shrink são igualmente traduzidos por “psiquiatra”. A perda, na tradução para o português, da especificidade semântica de shrink – to shrink, em inglês, significa “encolher” – é inestimável. Com efeito, a partir dos anos sessenta, nos Estados Unidos, a gíria headshrinker, gradualmente simplificada para shrinker e, depois, para shrink, passou a ser usada para nomear os psiquiatras e, logo, por extensão, psicanalistas e psicoterapeutas em geral. Ora, headshrinkers – encolhedores de cabeça – é expressão classicamente aplicada aos silvícolas que, ao vencer seus inimigos, cortam-lhes as cabeças e diligentemente as encolhem, pondo-as em seguida a decorar a entrada de suas tendas. Se devidamente compreendida, a metáfora proposta por essa gíria é assustadora: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas etc. – os “psicocoisas”, segundo um meu paciente que, compreensivelmente, não conseguia distinguir uns de outros – seriam inimigos de seus pacientes e, ao derrotá-los, separando suas cabeças de seus corpos – legítima origem de seus desejos – encolhem-nas e as exibem em seus currículos como troféus do sucesso obtido contra eles.
Mas voltemo-nos sobre o enredo do filme. O Dr. Jack Mickler é chamado para resgatar um jovem de seus vinte anos que, dizendo-se Don Juan e desiludido com nossos tempos, ameaça jogar-se do alto de um prédio. Mickler é bem sucedido, mas às custas de se dizer caballero, um tal Don Octavio de Flores, e de convidar nosso Don Juan suicida para sua quinta, que, evidentemente, nada mais era do que um hospital para doentes mentais. Lá chegados, tenta medicar o rapaz, mas esse propõe um trato. Não quer ser medicado antes de contar sua história. Se, ao terminar de fazê-lo, Don Octavio – Mickler, naturalmente – entender que ele ainda precisa ser medicado, dá sua palavra de que tomará os remédios. Jack aceita o acordo, isso para o profundo desagrado do restante da equipe, que passa a pressioná-lo no sentido de medicar o paciente, queira esse ou não. Ou seja, a pressionar Jack para agir como um verdadeiro shrink, abortando o delírio de seu paciente, encolhendo sua cabeça de forma a colocá-la dentro dos limites do considerado “normal”.
Mas, como dizia a expressão latina, necandus necavit necaturum: “quem devia morrer matou quem devia matar”. O delírio de Don Juan é absolutamente encantador, fala de estórias em que os prazeres do amor e do sexo atingem supina expressão... E é Jack que, em vez de encolher a mente de seu paciente, começa a ter a sua “expandida”. Contaminado pelo delírio a que se dispôs a dar ouvidos, Jack começa a colorir o cinzento que, ao longo dos anos, tomara subrepticiamente posse de sua vida. Começa a recuperar o amante que tinha dentro de si. Para o agradável espanto de sua mulher, passa a levar-lhe flores, dar-lhe jóias e, à luz de velas, convidá-la para jantar...
Há um momento em que o dilema “restringir ou expandir a mente” é focado de maneira extremamente jocosa. Jack Mickler, embora hesitante, decide contestar frontalmente o delírio de seu paciente:

– E se eu lhe dissesse que eu não sou Dom Octavio de Flores, mas, sim, um psiquiatra, e que esta não é minha quinta, mas o hospital onde eu trabalho, o que você me diria?"
– Eu lhe diria que você tem uma visão extremamente estreita (palavra que provém do latim strictu, a mesma de que deriva a palavra stress) da realidade! – devolveu Don Juan.

Mas, quase que “em off”, Don Juan consola Jack. Diz-lhe saber perfeitamente que Jack é um psiquiatra e que estavam em um hospital, não numa quinta, mas que, sendo tudo isso transcendentalmente chato, quer continuar contando sua história, sem dúvida mais saborosa e digna de atenção. E Jack, aprofundando o desespero de seus pares, continua a escutá-lo, em vez de o medicar. E, enquanto o faz, segue recuperando a cor de sua vida. Necandus necavit necaturum! Tendo terminado o relato de sua história – tendo satisfeito seu Desejo de Palavra – Don Juan adquire as condições internas necessárias para descartar seu delírio e deixar vir à tona o que anteriormente eclipsara: toda sua idealização da mulher era uma tentativa de compensar a dolorosa realidade da vida de sua mãe. Analogamente ao que ocorreu com Rose, minha paciente das duas e dez, que recuperou sua razão quando eu lhe permiti, durante quarenta minutos, percorrer os meandros da fantasia de que eu a havia desrespeitado, a liberdade de discurso que Jack Mickler deu a Don Juan foi o necessário e o suficiente para que esse último, recuperando dados que havia recalcado, voltasse a fazer uso de sua razão. Após haver injetado em seu psiquiatra uma nova alegria de viver...

A trama de Don Juan de Marco deixa exposto um fato pungentemente real: ainda não há consenso, entre os “psicocoisas”, sobre se devem ser shrinkers ou expanders, sobre se devem encolher ou expandir a cabeça de seus pacientes..."

De meu ponto de via nietzschiano-psicanalítico de que "nada do que é pode ser subtraído, nada pode ser negado" ("Ecce Homo") e de que nosso discurso deve conter "uma afirmação sem reservas mesmo do sofrimento, mesmo da culpa, mesmo de tudo que é estranho e questionável na existência" (id.) e assentado sobre as mais recentes descobertas da Psiconeurologia, descritas em uma contribuição de Melinad Wenner para o LiveScience, e que transcrevo a seguir:
"
Melinda Wenner Special to LiveScience LiveScience.com Sat Jun 30, 1:35 PM ET
If you name your emotions, you can tame them, according to new research that suggests why meditation works. Brain scans show that putting negative emotions into words calms the brain's emotion center. That could explain meditation’s purported emotional benefits, because people who meditate often label their negative emotions in an effort to “let them go.” Psychologists have long believed that people who talk about their feelings have more control over them, but they don't know why it works.
UCLA psychologist Matthew Lieberman and his colleagues hooked 30 people up to functional magnetic resonance imaging (fMRI) machines, which scan the brain to reveal which parts are active and inactive at any given moment. They asked the subjects to look at pictures of male or female faces making emotional expressions. Below some of the photos was a choice of words describing the emotion—such as “angry” or “fearful”—or two possible names for the people in the pictures, one male name and one female name. When presented with these choices, the subjects were asked to pick the most appropriate
emotion or gender-appropriate name to fit the face they saw. When the participants chose labels for the negative emotions, activity in the right ventrolateral prefrontal cortex region—an area associated with thinking in words about emotional experiences—became more active, whereas activity in the amygdala, a brain region involved in emotional processing, was calmed.
By contrast, when the subjects picked appropriate names for the faces, the brain scans revealed none of these changes—indicating that only emotional labeling makes a difference. “In the same way you hit the brake when you’re driving when you see a yellow light, when you put feelings into words, you seem to be hitting the brakes on your emotional responses,” Lieberman said of his study, which is detailed in the current issue of Psychological Science. In a second experiment, 27 of the same subjects completed questionnaires to determine how “mindful” they are. Meditation and other “mindfulness” techniques are designed to help people pay more attention to their present emotions,
thoughts and sensations without reacting strongly to them. Meditators often acknowledge and name their negative emotions in order to “let them go.”
When the team compared brain scans from subjects who had more mindful dispositions to those from subjects who were less mindful, they found a stark difference—the mindful subjects experienced greater activation in the right ventrolateral prefrontral cortex and a greater calming effect in the amygdala after labeling their
emotions. “These findings may help explain the beneficial health effects of mindfulness meditation, and suggest, for the first time, an underlying reason why mindfulness meditation programs improve mood and health,” said David Creswell, a UCLA psychologist who led the second part of the study, which will be detailed in Psychosomatic Medicine.",


CONSIDERO A SHRINKING PSYCHOLOGY TÍPICA DO AMBIENTE CULTURAL AMERICANO UM GRAVÍSSIMO ATENTADO À SAÚDE PÚBLICA MUNDIAL E A PRINCÍPAL RESPONSÁVEL PELOS DEPLORÁVEIS EPISÓDIOS DE MASS MURDERING TÃO COMUNS NESSE AMBIENTE, JÁ SENDO HORA DE QUE OS EXPANDERS SE ALIEM NUMA CRUZADA PARA COMBATER A TAL DA "PSICOLOGIA DO PENSAMENTO POSITIVO".

segunda-feira, junho 25, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXX: "EU VOU SER ENGENHEIRO!"

Transcrevo a seguir o diálogo travado entre mim e Júlio em uma de suas primeiras sessões comigo:.

JÚLIO (falando muito alto e enfaticamente, na verdade, quase aos berros): — EU VOU SER ENGENHEIRO! VOU SER ENGENHEIRO! VOU SER ENGENHEIRO!
LC: — CONTRA quem?
JÚLIO (muito surpreso): — Hein?
LC: — Ué, estou-lhe perguntando contra quem você vai ser engenheiro.
JÚLIO: — Como assim, “contra quem” eu vou ser engenheiro?
LC: — Digo isso pelo jeito como você estava falando, repetindo-se várias vezes e quase berrando. Dá impressão de que alguém não quer que você seja engenheiro. Seria útil descobrirmos quem é essa pessoa, para podermos combatê-la melhor e você conseguir o que parece querer muito: ser engenheiro.
JÚLIO: — Bem, meu pai sempre me disse que eu não iria ser nada na vida.
LC: — Então, você gostaria de mostrar que ele estava errado.
JÚLIO: — Gostaria muito!
LC: — Mas, na verdade, pelo tom e ênfase que você usou quando disse que ia ser engenheiro, a mim não pareceu que quisesse apenas MOSTRAR. Minha impressão mesmo foi a de que você gostaria de ESFREGAR SEU DIPLOMA NA CARA DELE!
JÚLIO: — É verdade.
LC: — Mas há um pequeno problema.
JÚLIO: — Qual?
LC: — Segundo você me disse, ele está morto.
JÚLIO: — É verdade.
LC: — Mas a vontade de esfregar vingativamente seu sucesso na cara dele continua.
JÚLIO: — É verdade.
LC: — Então, como vamos fazer isso?
JÚLIO: — Não sei.
LC: — Eu tenho uma sugestão.
JÚLIO: — Qual seria?.
LC (expondo os princípios básicos do trabalho loganalítico): — Blá, blá, blá. Blá, blá, blá.

E iniciamos uma relação terapêutica – cuja natureza é exposta de maneira compreensível para o leigo em meu livro “A Nova Conversa” – cujo objetivo imediato era permitir que Júlio transformasse seu projeto de fazer engenharia “CONTRA ALGUÉM” no projeto de fazer engenharia “PARA SI”, condição indispensável para que Júlio livrasse sua vida – em particular sua vida profissional – de uma série de distúrbios, como, por exemplo: auto-sabotagem no caminho para o sucesso, tendência a se tornar um trabalhador compulsivo, dificuldade de usufruir os ganhos auferidos por seus esforços etc., a maior parte deles derivados da culpa proveniente de aquele projeto ter origem no ódio e, não, no amor.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XIX: "DOUTOR, EU SOU NEURÓTICO?"

Há perguntas que são recorrentes no contexto psicoterápico. Uma delas é ilustrada pelo diálogo a seguir, ocorrido na primeira sessão em que atendi Vicente:

VICENTE: — Dr., eu sou neurótico?
EU: — O que é um neurótico?
VICENTE: — Ah, não sei, mas o senhor deve saber.
EU: — Você sabe o que é um lepidóptero?
VICENTE: — Não.
EU: — Então, de que adiantaria eu lhe dizer que você não é – ou é – um lepidóptero?
VICENTE: — É, não adiantaria nada. Mas... Bem, um neurótico é um cara nervoso.
EU: — Você é um cara nervoso?
VICENTE: — É, eu sou um cara nervoso.
EU: — Bem, então, dentro do seu vocabulário, você é um neurótico.
VICENTE: — É, mas ser um neurótico é mais do que ser um cara nervoso.
EU: — Bem, parece que você tem uma opinião mais precisa do que seja um neurótico do que inicialmente pareceu. Então, vamos lá: o que é caracteriza o neurótico, além de ele ser um “cara nervoso”?
VICENTE: — Ah, ele é um cara inferior.
EU: — Como assim?
VICENTE: — Ah, ele não consegue fazer as coisas que os outros conseguem.
EU: — Você não consegue fazer coisas que outros conseguem?
VICENTE: — É, não consigo.
EU: — Por exemplo?
VICENTE: — Bem, blá, blá, blá, blá, blá, blá.

E, a partir daí, passamos a aprofundar nossa pesquisa sobre os sintomas que traziam incômodo para meu novo paciente. Como vêm, toda minha orientação foi na direção da “microscopia”, ou seja, na direção de escapar de abstrações vagas e imprecisas para o trabalho sobre elementos concretos da condição de Vicente. Não é à toa que chamo meu trabalho de LogANÁLISE e, não, de LogosSÍNTESE, a exemplo de Freud, que chamou o seu de PsicANÁLISE e, não, de PsicosSÍNTESE.
Além de abstrações vagas e imprecisas não permitirem nenhum trabalho loganalítico eficaz, diga-se de passagem que um neurótico não precisa ser “um cara nervoso”. Existe, inclusive, um fenômeno neurótico, típico da histeria, via de regra elegantemente mencionado em francês, chamado “belle indiférence” ( = bela indiferença ), em que o paciente apresenta distúrbios de ordem física (paralisias, distúrbios sensoriais etc.), enquanto seu humor se mantém perfeitamente sereno. Qual utilidade terapêutica haveria em ficar eu me preocupando em que meu paciente tivesse uma definição academicamente adequada de neurose, em vez de ajudá-lo a iniciar o trabalho que, se bem sucedido, deixá-lo-á livre de seus sintomas?

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXVIII: "MAU, MUITO MAU!"

Sou proprietário de uma clínica onde vários psicólogos autônomos atendem seus pacientes. Há uma máxima que afirma: “onde abundam as teorias, impera a ignorância”. Espero que não seja verdade, pois a Psicologia é um canteiro de escolas, cada uma com as mais variadas estratégias e técnicas de tratamento. Minha abordagem, a Loganálise, é, ela mesma, uma variação da Psicanálise, essa última, por sua vez, uma das muitas escolas que ocupam o campo da Psicologia. O diálogo a seguir transcorreu entre uma psicóloga – cuja abordagem certamente nada tem a ver com a minha – e seu paciente.
O contexto era o seguinte. Eu estava passando frente à porta de uma das salas da clínica, quando percebi que essa profissional – chamemo-la de Marta – estava hesitando em abrir a porta entreaberta de um consultório para nele entrar com seu paciente – chamemo-lo de João – um menino de cerca de oito anos de idade. Na verdade, ela estava em dúvida sobre se ainda havia algum outro colega seu dentro da sala e não queria arriscar incomodá-lo. Percebi a situação e resolvi tomar para mim a responsabilidade de abrir a porta por ela. A sala, felizmente, estava vazia. Antes que entrassem, transcorreu o seguinte diálogo:

JOÃO (dirigindo-se a MARTA): — Ele é o dono da clínica. Ele É MAU!
MARTA (com voz melíflua): — Não, filho! Ele É BONZINHO!

Confesso que tive vontade de matá-la, como um sunita quer matar os chiitas e vice-versa. Com efeito, na minha religião psicoterápica, o que ela fez é pecado. Tentarei dar um exemplo do tipo de diálogo que eu consideraria não pecaminoso:.

JOÃO (dirigindo-se a MARTA): — Ele é o dono da clínica. Ele É MAU!
MARTA (interessada): — Ah, é? E como você sabe disso?
JOÃO (sério): — Porque ele tem o bigode igual ao do meu tio!
MARTA (dando corda): — E o seu tio é mau?
JOÃO (enfático): — Muito mau! Ele me batia toda a vez que minha mãe me deixava com ele.
MARTA: — E você não dizia isso para sua mãe?
JOÃO: — Dizia, mas etc., etc., etc.

Ou seja, em vez de, como no primeiro diálogo, cortar a fala do garoto – em termos técnicos, de reprimi-lo, o que é contra minha religião psicoterápica – a psicóloga teria feito intervenções que incentivariam o menino a falar sobre eventos traumáticos para, assim, os dissolver – que é o que o que recomenda essa minha religião.
Mas, como sou mais civilizado do que xiitas e sunitas, não a matei. Não fiz nada.
Não. Mentir é feio. Menti. Fiz uma coisa, sim. Fiz uma bela careta de mau para o garoto, que a ela reagiu com uma expressão de desprezo que parecia dizer: “Seu panaca, sei muito bem que você não é mau porcaria nenhuma. Será que você não entende nada de terapia?”

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXVII: PERDA

Mais uma vez, transcrevo um diálogo travado via imeil:

“Luís César Ebraico, como vai o Senhor?
Tenho buscado muito sobre o tema, luto, perda de entes queridos. Muito se fala, sobre perda de filhos, tendo esse como o luto mais sofrido. Sou mãe e avalio que seja mesmo, mas, aos onze anos sete meses e doze dias de idade, perdi minha mãe, sou filha única, meu pai logo casou-se de novo, vivi sempre com meus avos maternos desde então e agora, aos 54, perdi minha avó, com quem sempre convivi – ela sempre morou comigo mesmo depois de meu casamento – e percebi, com isso, que vivo um luto crônico da perda de minha mãe, e está muito difícil viver agora a perda de minha avó. Estou estudando muito o assunto luto, mas me pergunto por que se fala tão pouco sobre o luto na infância, perder a mãe ou o pai, marca-nos pelo resto da vida.gostaria de uma palavra do senhor a respeito e onde encontro literatura, apropriada ao luto na infância. Agradeço muito sua atenção. Um abraço, Patrícia.”

Minha resposta:

“Patrícia,
Vamos ver o quanto posso ajudar dentro dos limites que permite uma troca de imeils. Tentemos o seguinte: sugiro, primeiro, que você dê uma olhada em outros dois diálogos deste blogue, o de número VII, Intitulado "LUTO", e de número VIII, intitulado “KÜBLER-ROSS”. Esses dois “DIÁLOGOS” falam de perda e sua mensagem essencial é a de que:
1) Toda a perda é frustrante e TENTAR NEGAR ISSO NÃO É SAUDÁVEL;
2) O que é fundamental é que se impeça que a “frustração” da perda se transforme em “trauma”;
3) Uma diferença fundamental entre frustração é trauma é que a dor da primeira se mantém localizada onde a ferida ocorreu – por exemplo, se alguém que gosta de jogar futebol tem uma perna amputada, sofre por não poder mais fazê-lo da forma que anteriormente fazia – a dor do trauma, por sua vez, contamina, como uma metástase, praticamente todas as áreas da vida do sujeito, atingindo áreas que, na verdade, não foram diretamente atingidas – por exemplo, esse mesmo sujeito que perdeu sua perna, não apenas tem seu futebol atingido, mas também sua vida sexual, afetiva, social, profissional etc.;
4) O “segredo” para que se impeça que uma frustração – por maior que ela seja – se transforme em trauma é atravessar com sucesso um processo de luto, cuja essência é a de O DIREITO DE SOFRER da pessoa que foi vítima da perda NÃO SEJA INVALIDADO;
5) Maiores esclarecimentos sobre as diferenças entre “frustração” e “trauma” e sobre as maneiras de impedir que a primeira se transforme nesse último podem ser encontrados no meu livro “A Nova Conversa” (Rio: Ediouro, 2004);
7) Em tempo: o fato de a perda haver ocorrido na infância pode torná-la mais impactante, mas a forma de lidar com ela é, em qualquer idade, essencialmente a mesma: é proibido ILEGITIMAR A DOR daquele que está sofrendo. Tenho mais de um caso em que observei as desastrosas conseqüências de mães que, com as melhores das intenções, mas sem conhecimento adequado, tentaram calar a dor de um(a) filho(a) que perdeu – por falecimento, por divórcio etc. – o pai, dizendo que não se preocupasse, pois ela, mãe, passaria a ser pai e mãe ao mesmo tempo. Uma chegou a dizer ao filho que ela ia ser “pãe” ( = pai e mãe ). Não deu certo, nem poderia dar. Essas vítimas de boas intenções ou ficam traumatizadas para sempre ou vão ter que enfrentar com a ajuda de um terapeuta a dor que lhes foi impedido sentir quando ela originalmente ocorreu;
8) Um último comentário. Você disse que é mãe. NÃO IMPEÇA SEUS FILHOS DE SOFRER, QUANDO ELES TIVEREM UMA PERDA, nem que seja tão pequena quanto a de uma bola de gude. Escute-os simplesmente e mostre que está ao lado deles. Diga algo como: “Que chato meu filho! Posso fazer alguma coisa por você?” Já vi crianças responderem: “Não, mamãe, tudo bem, eu só queria falar como eu fiquei chateado!” Isso vai permitir que seu filho siga adiante, sem ficar fixado para sempre – trauma sempre implica fixação! – na lembrança de uma bola de gude.”

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXVI: FÉRIAS

A princípio, minha intenção era só transcrever nesta coluna diálogos que eu pudesse empregar para, a partir deles, expor minhas sábias conclusões sobre a melhor maneira de falarmos uns com os outros. Com o decorrer do tempo, contudo, fui sendo, aqui e ali, assomado por uma tentação de me desviar desse propósito inicial . Doravante, portanto, vez ou outra, vou tirar férias da Loganálise e ceder a essa tentação. Começo hoje. E que tentação é essa? A de transcrever alguns diálogos – e até monólogos - que tenho presenciado, sobre os quais não tenho nenhuma sábia conclusão psicofilosófica, mas que encerram tal graça, tal sabor, que têm valor por si próprios, dispensando o acréscimo de meus comentários.
Os dois que seguem têm como personagem central Pedro, de sete anos, filho de Thiago e de Lara, casal de amigos meus.

1º diálogo

Pedro, Lara e Thiago sentados na mesa de um restaurante, tomando um refrigerante e beliscando. Pedro ocupava-se com um prato de batatas fritas, enquanto seus pais mordiscavam vez ou outra de um prato de torresmos, quando se inicia o seguinte diálogo:

LARA (dirigindo-se a THIAGO): — Você acha que faria mal o Pedro provar um pedaço de torresmo?
THIAGO: — Bem, se não resolver comer o prato todo! Deixa ele provar...
LARA (estendendo um pedaço para o filho): — Prova, filho.
PEDRO: — Deixa eu cheirar antes.
(Cheira o torresmo).
LARA: — E então, filho?
PEDRO: — Não, obrigado. Meu nariz comeu e não gostou.

2º diálogo

Nove horas da noite, Thiago em seu escritório, trabalhando no computador. Chegam Pedro e Lara. Ficam em silêncio, com o pai olhando para eles, sem entender.

LARA (dirigindo-se a PEDRO): — Fala, filho!
PEDRO: — Papai, eu e mamãe vamos sair para tomar uma Coca-Cola. Eu disse pra ela que eu gostaria que você fosse com a gente.
THIAGO (entre surpreso e assustado): — Caramba! Que doidera! Enquanto vocês estavam em silêncio, eu fiquei olhando para o Pedro e me veio vontade de tomar uma Coca-Cola! E olha que eu não sou de tomar Coca-Cola! Eu, hein!
LARA: — Viu, filho, seu pai é telepata, ele lê o que se passa na cabeça dos outros.
PEDRO: — Eu também leio! Outro dia, eu olhei para a cara de um cachorro e vi que ele estava pensando: “AU! AU! AU!”

Precisa mais?

domingo, junho 24, 2007

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXV: LEI AFONSO ARINOS

Wellington, embora fiho de uma mulata, então minha namorada, era preto retinto e, à época do diálogo que vou relatar, tinha cerca de 9 anos de idade. Penso que havia assistido na televisão algum comentário sobre a Lei 1.390, sancionada por Getúlio Vargas em 3 de julho de 1951, e mais conhecida sob o apelido de Lei Afonso Arinos. Como sabe a maioria de nós, o objetivo desta lei é por um freio ao preconceito racial, embora essa mesma maioria de nós jamais tenha compulsado a lei, não conhecendo, dessarte, seu exato conteúdo. Estava eu, assim, posto em sossego, quando me aparece o garoto, perguntando:

WELLINGTON: — Luís César, se alguém chamar o outro de preto, vai pra cadeia?
LC (algo hesitante, pois ainda não conhecia o texto exato do diploma legal): — Bem..., acho que sim, filho!
WELLINGTON: — E se chamar o outro de f.d.p., também vai!
LC (mais hesitante ainda): — Bem..., acho que não!
WELLINGTON: — PRETO É PIOR QUE F.D.P.?!

Chega-me, através de uma nuvem, a idéia de que respondi:

LC: — Bem, meu filho, para mim, não!

Mas não consigo, até hoje, deixar de sentir uma certa sensação de débito em relação ao menino, cuja expressão revelou que o possível fato de, para mim pelo menos, preto não ser pior do que f.d.p., não resolvia nem um pouco seu problema.
Hoje, sei que a Lei 1.390 não comina pena a quem chamar outrem de preto ou negro. E confesso que, soubesse eu disso àquela época, teria ficado mais satisfeito ao responder:

LC: — Não, Wellington, todo mundo pode chamar aos outros de preto e de f.d.p. à vontade! E de branquelo também!

Ufa!

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXIV: CINDERELAS DO DIA

Meninas de rua de Ipanema são “CINDERELAS DO DIA”: assemelham-se à do conto infantil por ter um vida dupla, mas, divergem daquela em relação a horários. Vejamos como:
À noite vivem seu aviltamento – ora dormem ao relento, no duro chão das calçadas, ora arriscam voltar a suas casas nas favelas, o mais das vezes para receber pancadas e maus tratos de pais bêbedos, drogados e marginais.
Ao amanhecer do dia, particularmente no verão, entram numa abóbora transformada em carruagem – uma prancha de surf tirada de não sei onde – e vão-se divertir deslizando sobre as águas do Arpoador. Chegada a fome, conseguem regularmente que a população enricada da área lhes pague alguns suculentos cheeseburgers ou redondos pratos-feitos, que comem gostosamente em grupo, geralmente regados por uma coca de dois litros, que dividem entre si. Depois? Depois, praia outra vez.
Voltada a noite, num passe de mágica que não compreendo, as pranchas-carruagem desaparecem e elas mergulham novamente no borralho das favelas e calçadas, certamente sonhando com a praia-palácio a que retornarão quando o dia voltar.
Observo-as bastante e pretendo saber relacionar-me com com elas. Uma vez, por exemplo, roubaram-me sem que eu visse vinte pratas de troco que estavam em cima do balcão de um bar. Eu disse que não falaria mais com elas enquanto o dinheiro não voltasse. Confessaram o “crime”, disseram que já tinham gastado o dinheiro, mas que iam conseguir de novo para me devolver. Fizeram isso. Com um bastante tolerável atraso de 48 horas.
Saboreemos o diálogo que travei com uma delas num de seus faustosos momentos de princesa lúdica, durante de uma tarde luminosa de verão:

MENINA PEDINTE: — Me dá dez reais aí!
EU: — Não dou!
MENINA PEDINTE: — Você não tem?
EU: — Tenho mais do que isso.
MENINA PEDINTE: — Então por que não dá?
EU: — Porque estou de mau humor!
MENINA PEDINTE: — Então me dá sete.
EU: — Qual o mínimo que você está aceitando hoje?
MENINA PEDINTE: — Ué, sete!
EU: — Dou dois!
MENINA PEDINTE: — Dois é muito pouco!
EU: — Tem razão! Eu ficaria ofendido se me alguém se oferecesse a me dar só dois reais!
MENINA PEDINTE: — Então me dá sete.
EU: — Só dou dois.
MENINA PEDINTE: — Tá bem. Eu fico com dois.
EU: — Tem certeza? Acho um pouco ofensivo...
MENINA PEDINTE: — Não, tá bom. Me dá.
EU (passando os dois reais): — Pega aí, mas eu não receberia...
MENINA PEDINTE (saindo, toda serelepe, na direção das amiguinhas, que esperavam adiante): — Tchau!
EU (rindo por dentro): — Tchau!...

É mole?

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXIII: PENSO, LOGO EXISTO

Uma de minhas leitoras, que chamerei de Marlene, enviou-me um imeil dizendo que, embora interessada em meus “DIÁLOGOS”, eles, por vezes, a cansavam e ela não sabia “aonde eu queria chegar”. Respondi assim:

“Marlene, entendo que você fique cansada com meus escritos: eles são densos e, para muitos, pensar cansa. Só não entendi que você não tenha entendido aonde eu quero chegar: não sei bem quais de meus escritos você leu, mas penso que deixei clara a intenção de fornecer repertórios para que as pessoas sejam capazes de se apropriarem, via palavra, do que ELAS, de fato, SÃO.”

E, tendo replicado, recebi a seguinte tréplica:

“Você reflete sobre a nossa identidade: somos dois? Cindidos? Acho que me senti sem resposta. É isso....Mas depois fiquei pensando: às vezes é assim mesmo que funcionamos; vamos de um registro a outro e nem sempre eles tem conexão! E isso ajuda a entender também a forma de comunicação entre algumas pessoas: uma fala uma coisa, pensando em ouvir "certa" resposta e o interlocutor vem com outra "idéia" completamente distinta. Alguns de seus textos demonstram isso. Mas leio sempre e sinto por você não poder escrever com maior freqüência. Fico esperando novidades. Desde a sua estréia achei estranho, pois você foge do modelo "receita pronta", temperado com manual de "auto-ajuda", ainda que eu mesma goste bem de alguns outros autores e autoras do Vya Estelar. Teu estilo deixa a gente "no ar", tendo que pensar!!! Acho que pensar não cansa. Não cansa, não! Conseguir interlocução, ou melhor, compreender que não há resposta pra tudo!”

Minha resposta:

“Marlene, acho haver pouca dúvida quanto ao fato de que todos nós somos dois. Um é o “eu” que reconhecemos como nós mesmos, outro é o que Freud chamou de “isso”: aquele pedaço de nós que, quando toma conta de nosso comportamento, nos faz sentir que estávamos “fora de nós”. E só somos capazes de reconhecer estivemos sendo operados por esse “isso”, depois que novamente “caímos em nós”...
Quanto a meus textos levarem as pessoas a “ter que pensar”, o propósito é esse mesmo. Embora eu saiba que, para certas pessoas, isso é extremamente cansativo. Preferem “receitas de bolo”. Você acha que haja resposta pronta sobre como jogar xadrez? Você acha que pode haver alguma manual dizendo que SEMPRE é bom colocar o cavalo na terceira casa da rainha, ou que SEMPRE é mal deslocar a torre para a segunda casa do bispo do rei? E você acha que o jogo de xadrez é mais simples do que a vida?
Para jogar bem xadrez e jogar bem a vida é necessário SABER O QUE SE PRETENDE e é necessário PENSAR. Saber o que se pretende em um jogo de xadrez é mais do que fácil: é dar cheque ao rei. Saber o que se pretende da vida, de um ponto de vista bem geral, também não é tão difícil: é conseguir a maior QUANTIDADE DE VIDA, com a melhor QUALIDADE DE VIDA.
Agora, para conseguir isso, é preciso PENSAR, REFLETIR. E você me dizer que “pensar não cansa”... Bem, isso pode ser verdade para certas pessoas – de repente, como eu disse, não cansa a você – mas, em minha experiência, a certas pessoas, cansa muito!
[1] Evidente que todos os nomes usados são fictícios.

DIÁLOGOS LOGANALÍTICOS XXII: A SURDEZ E O AMOR

Recebi o seguinte imeil de uma leitora dos “DIÁLOGOS” que publico aqui:

“Ôi Luis, prazer em conhecê-lo, mesmo de longe. Meu problema é o seguinte: me separei depois de 28 anos de convivência e 25 de casamento e tenho duas filhas. O que não consigo entender e me entristece muito é que, até uma semana antes de esse homem me dizer que ia embora, ele me mandou mensagens via celular dizendo que me amava.
O relacionamento, a essa época, já estava ruim, pois hoje tenho certeza que ele se comunicava via Internet com outra pessoa que também dizia amá-lo e ele foi embora porque me disse que achou uma pessoa que o entende.
Eu vivi muito bem em meu casamento, nosso relacionamento era muito bom de harmonia, meus amigos também vivenciaram isso, assim como eu e minhas filhas. Agora, não estamos entendendo nada, nem quem é essa pessoa com quem estive casada.
Sei é complicado, mas imagina minha cabeça.. Ajude-me, se puder, com uma resposta para que eu possa entender tudo isso um pouco. Minhas filhas são adultas e, mesmo assim, sofrem muito.
Envie-me uma resposta..Obrigada pelo carinho..Bom trabalho.”

Esta foi minha resposta:

“Silvana,
em sua mensagem, você enfatiza NÃO ENTENDER, NÃO ENTENDER, NÃO ENTENDER. Evidentemente, não conheço você a fundo e seria muito pretensioso de minha parte enviar-lhe uma resposta “sob medida”. O máximo que posso fazer é passar-lhe algo “prêt-à-porter”. E o que seria?
O seguinte: a esmagadora parte das vezes que ouvi alguém dizer que NÃO ESTAVA ENTENDENDO ALGUÉM, a razão era simples: quem NÃO ENTENDIA, não entendia, porque não CONSEGUIA ESCUTAR.
Digamos, apenas para fim de argumentação, que EMBORA SEU MARIDO AMASSE VOCÊ, ele NÃO SE SENTISSE ESCUTADO.
Tem uma hora em que NÃO SER OUVIDO cansa e a pessoa prefere alguém que ela AME MENOS, mas que seja CAPAZ DE OUVIR...
Uma resposta possível para suas indagações, em meu cardápio “prêt-à-porter”, é que você foi SURDA, na relação com seu ex-marido. Será que, quando ele lhe disse, por exemplo, que estava infeliz com alguma coisa, você lhe respondeu que ele NÃO DEVIA estar se sentindo assim, ou equivalentes?
Uma coisa posso lhe afirmar, sem risco de estar sendo pretensioso: A SURDEZ MATA O AMOR."

NASCIMENTO E SAÚDE PSICOLÓGICA

Entre os fatores que determinam saúde e doença psicológicas, desempenha papel fundamental a passagem do meio intra-uterino para o extra-uterino.
No primeiro, o prazer funcional que corresponde à saúde é obtido de forma passiva, regulado pelo sistema nervoso da mãe, numa integração entre o sistema-feto e o meio-ambiente-útero que podemos considerar de quase-indiferenciação. Com o nascimento, rompe-se esse equilíbrio prazeroso funcional passivo e a integração não diferenciada que caracterizavam a situação intra-uterina. O recém-nascido encontra-se em uma situação de desequilíbrio prazeroso-funcional e, já diferenciado, é vítima da não-integração – que poderá ou não vir a ser superada – com o novo meio-ambiente que o cerca. O material fornecido por pacientes sob terapia sugere que, a partir desse instante, a natural tendência do aparelho psíquico para buscar o prazer e evitar o desprazer desdobra-se em duas vertentes:
Uma delas – chamemo-la de “desejo de fetalização” – busca a recuperação do estado de equilíbrio prazeroso passivo e indiferenciado que constituía a situação intra-uterina. Como essa recuperação é evidentemente impossível, a vertente da fetalização vai compor as forças que buscam a satisfação na fantasia, satisfação que, sempre precária, cria um núcleo crônico de frustração.
A outra vertente – à falta de melhor nome, chamemo-la de “desejo de genitalização” – passa a buscar a recuperação do estado de equilíbrio prazeroso de forma ativa e auto-orientada, culminando, quando bem sucedida, numa integração com o meio-ambiente compatível com a diferenciação conseqüente ao nascimento.
As duas vertentes poderiam, a uma visão de superfície, ser identificadas com, respectivamente, a “Pulsão de Morte” e a “Pulsão de Vida” freudianas e, com efeito, tanto essas conceptualizações do pai da Psicanálise quanto as aqui expostas têm, a nosso ver, origem no reconhecimento da existência do mesmo tipo de material empírico. Tal identificação, contudo, não procede, na medida em que:
1º. O “desejo de fetalização” não corresponde a nenhum “desejo de morte”, a não ser, no limitado sentido de que nossa produção simbólica freqüentemente equaciona túmulos com úteros e cadáveres com fetos;
2º. O “desejo de fetalização” é assumidamente uma estratégia de busca de prazer, não pressupondo, como faz seu correlato freudiano, um salto “para além do princípio do prazer”;
3º. Tampouco existe, acoplada ao conceito de “desejo de fetalização”, nenhuma hipótese de que ele seja derivado da tendência do orgânico para voltar ao inorgânico;
4º. Por fim, a proporção de “desejo de fetalização” e de “desejo de genitalização” operantes em um determinado psiquismo não é considerada como biologicamente determinada nem como inaccessível a alteração por via psicoterápica, mas, pelo contrário, como sendo grandemente determinada pela história de cada sujeito e passível de ser modificada por esse tipo de tratamento.
Essas considerações me levam a sustentar que um psiquismo será tanto mais saudável quanto mais houver atingido um equilíbrio prazeroso, funcional, ativo e orientado, capaz de estabelecer uma integração diferenciada com o meio ambiente que o cerca.

domingo, janeiro 28, 2007

RESPEITAI-VOS UNS AOS OUTROS

Em meu livro, A Nova Conversa, afirmo que a democracia nasceu falando grego e renasceu (com a Magna Charta, de 1215) falando inglês. E a única letra que, em inglês, significa "eu", passou, a partir de não sei que momento da história dessa língua, a ser regularmente grafada EM MAIÚSCULA, enquanto os outros pronomes ("you", "he", "she" etc.) continuaram a ser minusculados, o que indica, a meu ver, a importância que o indivíduo dá a si mesmo em uma sociedade de cunho visceralmente democrático. A luta dos ingleses contra os alemães, durante a Segunda Guerra, pode ser vista como uma guerra ortográfica: o berço da ditadura nazista grafa o "eu" - "ich" - minusculado, enquanto "tu", "você" e "o(a) senhor(a) - "Du" e "Sie" - vão em maiúscula.
Para que se possam criar comunidades pacíficas, cumpre, antes de mais nada, que se pare de fazer propaganda do amor e se passe a fazer propaganda do respeito. Respeito pela individualidade de cada um. Isso porque, enquanto o amor autêntico é algo que brota espontaneamente de dentro de nós, o respeito é algo que pode ser deliberadamente exercido e cultivado.
Os quatro níveis dos grupos de Loganálise, cujo modus operandi é descrito no livro citado, têm por objetivo habilitar as pessoas a transformar essa pretenção de reciprocamente nos respeitarmos em algo mais do que mera intenção.