quarta-feira, janeiro 30, 2008

DIÁLOGOS : LVII. O NEGOCIÁVEL E O INEGOCIÁVEL.

MIGUEL: — Você está me achando chato?
LC: — Posso?
MIGUEL: — Não. Claro que não?
LC: — Por quê?
MIGUEL: — Ué, porque não! Eu não me sinto bem com a idéia de que você está me achando chato!
LC: — E você acha que essa análise irá sobreviver se você quiser optar por só ter, durante as sessões, idéias cujo conteúdo faz você se sentir bem?
MIGUEL: — Não vai dar certo, né?
LC: — Não, não vai.
MIGUEL: — Mas eu vim aqui para me sentir bem, não para me sentir mal.
LC: — Você sabe o que acontece, quando você processa verbalmente uma emoção desagradável?
MIGUEL: — Não.
LC: — Você sente alívio, paz. Esse é o tipo de PRAZER que se pode legitimamente querer obter de uma análise. Mas imagino que você também não saiba qual o tipo de DESPRAZER provocado por você tentar evitar o contato com uma emoção ou sentimento desagradável.
MIGUEL: — É, não sei.
LC: — Angústia, ansiedade e stress, que, por vezes, se transmudam em depressão. É disso que você pode se livrar tendo coragem de enunciar e processar verbalmente vivências desagradáveis. Já está disposto a enfrentar o incômodo de pensar que eu estou pensando que você é um chato?
MIGUEL: — Tá. Já. Me convenceu. Libero você para me achar chato.
LC: — Obrigado.
MIGUEL: — De nada.
LC: — Antes de você continuar, quero acrecentar alguns comentários ao que conversamos.
MIGUEL: — Tudo bem.
LC: — Quero assinalar dois pontos. O primeiro tem a ver com o que você acabou de falar: Você me “liberou” para lhe achar chato. É interessante saber que esse seu comentário diz respeito a uma das formas em que pode ser descrita a cura, qual seja, dizendo que o paciente idealmente curado, ou idealmente saudável, é aquele que liberou o terapeuta para pensar o que ele quiser. Isso porque, uma vez que o paciente libera o terapeuta, ele, paciente, sai liberado e não mais precisa ficar na situação de se impedir de expressar algo, pensando: “Não, se eu disser isso, ele vai pensar aquilo e eu NÃO QUERO QUE ELE PENSE ASSIM”. Na verdade, ao querer paralisar a mente do terapeuta, o tiro sai pela culatra, e é o paciente que fica paralisado. Certamente você adquiriu um pouco mais de liberdade para os seus pensamentos por me haver liberado para achá-lo chato. O segundo ponto que quero assinalar é que nossa cultura tem o pernicioso hábito de propor que certas emoções e sentimentos NÃO DEVEM SER SENTIDOS, que sentir raiva é “feio”, sentir ciúme é “feio”, sentir inveja é “feio” etc., etc. O que é importante não é sentir ou deixar de sentir ciúme, inveja ou raiva, o importante é saber se, ao experimentar esses sentimentos – ou quaisquer outros – é você que tem ciúme, ou O CIÚME QUE TEM VOCÊ, se é você que tem inveja, ou A INVEJA QUE TEM VOCÊ, se é você que tem a raiva, ou A RAIVA QUE TEM VOCÊ. Em suma: se, ao experimentar essas emoções, você é avassalado por elas, que passam a comandar sua maneira de agir, ou se você consegue agir da maneira mais adequada para o contexto em que você está inserido, a despeito de as estar experimentando. Aqui, por exemplo, em análise, a conduta adequada é você falar o que lhe está vindo à cabeça. Se você pensa, por exemplo, “O doutor deve estar me achando um chato, ENTÃO VOU MUDAR DE ASSUNTO” é o medo de ser considerado um chato que está mandando em você. Se você pensa que eu posso estar achando você um chato, mas considera, por exemplo, “Bem, isso não é agradável, mas quem mandou ele resolver ser analista e mandar eu dizer o que vem à minha cabeça? Vou dizer a ele que estou com medo que ele me ache um chato e, em seguida, continuar a dizer o que estava dizendo”, então é você que está mandando no medo, não ele que está mandando em você.
MIGUEL: — Caramba, gostei de entender isso! Acho que agora vai ser mais fácil fazer análise.
LC: — Legal.
Para finalizar, aproveitemos o diálogo acima para esclarecer um princípio da técnica freudiana cuja compreensão é freqüentemente distorcida. Refiro-me ao princípio de que o analista deve ser NEUTRO.
Comecemos pelas distorções. A maior delas é confundir “neutralidade” com “indiferença”, com “distância emocional”. É um absurdo que um analista se proponha a meta de NÃO SE IMPORTAR com o que acontece a seu paciente. E, como treinei vários estudantes e profissionais na técnica freudiana, sei que vários deles começam sua atividade clínica fazendo se propondo tal absurdo. Aqui, a meta é aquela que apontamos no fim de nosso diálogo com Miguel: o analista pode se dar ao direito de experimentar toda e qualquer vivência que o paciente desperte nele, mas cumpre ELE TENHA a vivência, não que ELA O TENHA. Ou seja, se uma emoção MANDA EM MIM, se, por exemplo, me estou condoendo com a dor de um paciente, posso ser levado a agir de forma a parar seu sofrimento – para parar o meu! – em um momento em que o tecnicamente indicado seria permitir que ele experimentasse sua dor até o fim; se eu, não minhas emoções, MANDO EM MIM, sou capaz de continuar agindo da maneira tecnicamente correta a despeito de manter-me capaz de reconhecer que a dor do paciente está-me atingindo também. A meta da neutralidade, portanto, nada tem a ver com indiferença.
Posto isso, podemos chegar a uma definição adequada de neutralidade: “é a capacidade de ouvir de receber de forma IGUALMENTE NATURAL todo o tipo de comunicação do paciente, agrade ela, ou não, ao analista”.
Neutralidade, portanto, significa não haver um tipo de TRATAMENTO PREFERENCIAL, em que as comunicações do paciente que agradam ao analista são bem acolhidas e as que não agradam são objeto de rejeição. Talvez, de forma sintética, pudéssemos definir a neutralidade psicanalítica como:
IMPARCIALIDADE DE ESCUTA..

DIÁLOGOS : LVI. DESENHO.

Normalmente, Ricardo, de nove anos, criava dificuldades para fazer as partes de seu dever de casa em que tinha que desenhar.
O diálogo a seguir ilustra a maneira em que Paula, sua mãe, lidou com a inibição de desenhar do filho, após ter arejado o assunto com seu loganalista:
RICARDO: — Eu não gosto de desenhar!
PAULA: — Hmm, hmm.
RICARDO: — Eu não SEI desenhar!
PAULA: — Entendi.
RICARDO: — Meu irmão Paulo desenha muito, mãe! Ele faz desenhos muito maneiros...
PAULA: — É, tem pessoas que têm talento para desenhar, outras têm talento para outras coisas.
RICARDO: — Você é boa pra desenhar!
PAULA: — É verdade, eu sou boa para desenhar.
RICARDO (depois de algum tempo de reflexivo silêncio e com expressão de que fizera uma importante descoberta): — Ah, mas eu sou BOM EM CAPOEIRA!
PAULA: — Pois é, já eu não sou boa em capoeira...
Bem, o fato é que, após essa conversa, o menino começou a fazer sem maiores percalços os desenhos que a professora mandava como dever-de-casa. Por que será?
À época do diálogo transcrito, o menino estava começando a desenvolver uma FOBIA DE DESENHAR. Já havia demonstrado resistência a fazê-lo em ocasiões anteriores à conversa relatada acima. Essa fobia, é claro, tinha por objetivo evitar o contato com a sensação de inferioridade que lhe provocava a comparação entre, no que diz respeito a desenhar, seu pouco talento e o abundante talento do irmão. Para um loganalista, é cristalino que a maneira com que sua mãe conversou com ele sobre tal dificuldade impediu que essa fobia se instalasse, melhor ainda, dissolveu-a. Não alterou o nível de talento do menino, evidentemente, mas liberou-o para desenhar como qualquer pessoa normal.
E o que tinha essa conversa – note-se: levada adiante por um leigo – que boa escuta ela continha, que a tornou capaz de dissolver uma fobia? Anotem: NATURALIDADE. Desenvolvamos isso:
Eu atendia Isabel e Joana – como sempre, os nomes aqui são fictícios – uma logo em seguida a outra. O problema central de ambas era o mesmo: sentir culpa, para elas, não era simplesmente uma coisa desagradável, frustrante. Era traumático, com as conseqüências já comentadas em outros momentos deste livro: frente a qualquer situação em que o sentimento de culpa fosse provocado, ficavam desorganizadas ou paralisadas – em uma palavra, FÓBICAS – incapazes de iniciar de maneira minimamente eficaz um processo – interno e/ou externo – de reparação.
Eu sabia, naturalmente, que o sentimento de culpa, nelas, atingira o patamar traumático porque seus “processadores verbais” de culpa estavam inoperantes e, em Psicanálise, chamamos de “resistência” o mecanismo psicológico que prejudica o bom funcionamento de um processador verbal. O trabalho clínico, como sempre, é encontrar a resistência e dissolvê-la. O processador fica liberado, reduz a emoção perturbadora – culpa, no caso – à condição meramente frustrante, despindo-a de seu caráter traumático e a FOBIA DESAPARECE.
Ora, toda resistência ao processamento de uma emoção tem sua raiz nas circunstâncias históricas em que se formou nossa personalidade: temos resistência a processar as emoções que as pessoas significativas de nosso ambiente infantil se recusavam a ouvir. Recusavam? Como é, exatamente, esse processo de recusa.
Isabel era atendida antes de Joana. Logo que ficou claro que seu grande problema era não conseguir processar sentimentos de culpa, comecei a pesquisar as condições históricas que deram razão a isso. Logo elas se tornaram evidentes. A mãe não permitia a Joana falar de culpa. Este era o diálogo típico, quando tal emoção estava em jogo:
ISABEL: — Mamãe, tô me sentido culpada porque não estudei Geografia para a prova! Olha só que vergonha: tirei dois!
MÃE: — Ah, que bobagem, filinha! Sentir culpa por causa disso! Eu sei que você não fez por mal! Na próxima você estuda! A culpa, na verdade, de seu pai, que viajou e deixou você assim nesse estado, desanimada e deprimida!
Sublinho: esse diálogo que chamei de “típico” era realmente típico. A mãe de Isabel mantinha coerentemente uma POSTURA FÓBICA relativamente a ver sua filha sentir culpa. Joana acabou internalizando a atitude da mãe e desenvolveu uma “resistência” a processar essa emoção, elevando-a, conseqüentemente, à condição de trauma.
No exato dia em que essa postura da mãe de Isabel ficou evidenciada, atendi Joana em seguida e também a charada relativamente à sua resistência se desvendou. A origem da resistência, aqui, não estava na relação de minha paciente com a mãe. Estava em sua relação com o pai. Vejamos, qual, nesse caso, era o diálogo típico:
JOANA: — Pai, tô me sentido culpada por não ter estudado Geografia para a prova! Olha só que vergonha: tirei dois!
PAI: — E está sentindo culpa SÓ POR ISSO? Devia sentir culpa por muito mais coisa, porque você só faz besteira! Blá, blá, blá, blá, blá, blá...
Contrariamente à mãe de Isabel, o pai de Joana tinha uma POSTURA ÁVIDA relativamente a ver sua filha sentir culpa e Joana acabou desistindo de processar as culpas QUE REALMENTE SENTIA, em virtude de haver internalizado uma relação que a pressionava a processar até aquelas que NÃO ESTAVA SENTINDO.
E uma ESCUTA NATURAL como seria? Ilustro, usando Ricardo e sua mãe
RICARDO: — Mamãe, tô me sentido culpada por não ter estudado Geografia para a prova! Olha só que vergonha: tirei dois!
PAULA: — É, foi chato mesmo! Está com ânimo para consertar isso na próxima?

Aprendamos, pois: no que diz respeito a nossa vida psicológica:

Escutas ÁVIDAS E FÓBICAS criam DOENÇA, a escuta NATURAL, SAÚDE.

Vale a pena atentar para isso.

DIÁLOGOS : LV. AS SETE ETAPAS.

Eu tinha chamado a atenção de Maura para o fato de que, quando se sentia acuada, ela começava a falar com voz esganiçada. O fragmento de sessão que relato a seguir ocorreu cerca de um mês após eu haver feito aquele apontamento:
MAURA: — Que saco! Você já apontou e eu já vi que, de fato, falo com voz esganiçada quando me estou defendendo de alguma acusação. Mas continuo a fazer isso! Já era tempo de haver parado!
LC: — É um pouquinho mais complicado do que isso, Maura. É verdade que você pode adquirir um certo domínio sobre sua voz esganiçada, mesmo antes de termos tido sucesso em dissolver sua FOBIA DE SER ACUSADA, que é a origem de sua TENDÊNCIA, em determinadas circusntâncias, falar assim. Mas a aquisição desse domínio passa por etapas, na verdade por cinco etapas.
MAURA: — E quais são elas?
LC: — Bem, a primeira delas você já ultrapassou.
MAURA: — E qual é essa primeira etapa?
LC: — É a pessoa reconhecer que o comportamento problemático existe ou, pelo menos, que ele é problemático. Por exemplo, minha impressão é a de que você não se dava conta de que, quando fica numa posição defensiva, começa a falar de maneira esganiçada ou, pelo menos, não se dava conta de que falar dessa forma é um problema, porque você passa para a outra pessoa impressão de desequilíbrio.
MAURA: — Tá, tudo bem. Então já passei a primeira etapa. Quais são as outras?
Vou abandonar a forma do diálogo e adotar o texto corrido para descrever as demais etapas.
Segunda etapa – o sujeito só percebe que apresentou o comportamento retroativamente, DEPOIS que ele ocorreu. ― “Ih, respondi ao chefe o tempo todo com voz esganiçada!” Mas, quando essa percepção ocorre, já é tarde demais para mudar alguma coisa.
Terceira etapa – o sujeito percebe que está apresentando o comportamento DURANTE sua própria ocorrência: ― “Ih, estou falando de forma esganiçada!” Mas não consegue parar de fazer o que se percebe fazendo.
Quarta etapa – o sujeito percebe que está apresentando o comportamento DURANTE sua própria ocorrência: ― “Ih, estou falando de forma esganiçada!” E consegue parar de fazer o que se percebe fazendo.
Quinta etapa – o sujeito percebe que está para apresentar o comportamento problemático ANTES de ele ocorrer: ― “Ih, este é o tipo de situação em que costumo falar com voz esganiçada. Mas, desta vez, não vou permitir que isso aconteça!” Mas não consegue e a voz sai esganiçada...
Sexta etapa – o sujeito percebe que está para apresentar o comportamento problemático ANTES de ele ocorrer: ― “Ih, este é o tipo de situação em que costumo falar com voz esganiçada. Mas não vou esganiçar minha voz mesmo!” E consegue controlar a voz, que sai num registro natural.
Sétima etapa – O sintoma desaparece e, mesmo sem prestar atenção nisso, o sujeito E consegue controlar sua voz, que sai num registro natural.
Esse é o quadro completo da evolução possível do processo de desaparecimento de um sintoma. Por vezes, quando o paciente nos chega, já está em uma etapa adiantada do processo; por vezes, há regressões; por vezes, alguma etapa é saltada, mas saber da possível existência delas todas faz que o paciente tenha mais tolerância com seu ritmo de evolução do que Maura demonstrou para consigo mesma no início do diálogo transcrito acima.

DIÁLOGOS : LIV. ANALISTA DORMINHOCO

É evidentemente inadequado que um analista durma durante a sessão com seu paciente. Mas, certa feita, acordei com um paciente em pé à minha frente, bradando:
AMÍLCAR: — Pô, César, você DORMIU durante a minha sessão!
LC (ainda sonolento): — Hein?
AMÍLCAR: — E RONCOU! Vou embora!
Levantei-me semi-cambalente e acompanhei-o até a porta, onde, a despeito de minha patente falha, nos despedimos com um educado aperto de mão. Lembro-me de haver achado engraçada a situação e, embora passado, não haver ficado preocupado com ela.
Amílcar chegou pontualmente à sessão seguinte. Deitou-se no divã e ficou em silêncio. De minha poltrona, eu me surpreendia ao perceber que ele tinha um um sorriso maroto em seus lábios. A situação manteve-se assim durante uns dez a quinze minutos, quando o paciente saiu de seu mutismo, inquirindo-me:
PACIENTE: — Sabe de uma coisa?
LC: — Diga.
PACIENTE: — Hoje vim para cá pensando em dar a maior bronca em você. Pensei em dizer: “Seu f.d.p., que p. é essa de dormir na minha sessão. Eu estou pagando esta m. e quero atenção e não blá, blá, blá, blá, blá, blá...” Mas aí, pensei: aquele f.d.m vai ficar me ouvindo, se vir que eu estou conseguindo falar fluentemente tudo isso, vai comentar “Você está conseguindo falar sem dificuldade coisas que nem todo mundo consegue”, ou, se notar que gaguejo ou algo assim, vai dizer “Parece que está difícil você dizer esse tipo de coisa para mim. Tem idéia de por quê?” Aí pensei: “Sabe de uma coisa? Não tenho o menor saco para isso. Vou mesmo é falar o que eu estava querendo falar na última sessão e vamos ver se, desta vez, aquele idiota não dorme”. O que eu estava querendo que você ouvisse, na última sessão, era que blá, blá, blá, blá, blá, blá...
Para analisarmos adequadamente o que ocorreu entre mim e Amílcar, vou introduzir duas expressões – “ambiente (ou dimensão) de ocorrência” e “ambiente (ou dimensão) de processamento” – que não fazem parte do vocabulário cotidiano, mas que podem ser facilmente esclarecidas.
No episódio acima, “ambiente (ou dimensão) de ocorrência” diz respeito a eu haver dormido e “ambiente (ou dimensão) de processamento” diz respeito a minha relação com Amílcar ser tão claramente capaz de permitir o arejamento verbal do ocorrido, que ele preferiu considerar como se a bronca tivesse sido dada e ouvida e dedicar-se a falar sobre o que, desde a sessão “fatídica”, ele estava querendo falar. Empregando as expressões que acabo de introduzir, podemos dizer que, no episódio em pauta, temos um “ambiente de ocorrência RUIM” – não é adequado que um analista durma durante as sessões com seus pacientes! – e um ambiente de processamento BOM” – é adequado que o paciente sinta que o impacto que os fatos do “ambiente de ocorrência” têm sobre ele serão bem acolhidos na dimensão verbal da relação.
Ocorre que é muito mais produtivo garantir um bom “ambiente de processamento”, que permite a dissolução das tensões geradas no “ambiente de ocorrência”, do que pretender que este último seja perfeito, o que é simplesmente impossivel.
Esse é um corolário da teoria psicanalítica que a Pedagogia pouco absorveu.

DIÁLOGOS : LIII. NECESSIDADE DE ANÁLISE

Há uma pergunta que se repete com freqüência em entrevistas iniciais. O diálogo abaixo – fictício – ilustra como costumo trabalhar essa pergunta com um candidato a tratamento psicanalítico, que chamarei de Haroldo.

HAROLDO: — Mas, afinal, doutor, eu PRECISO ou não de análise?
LC: — Haroldo, análise não é para quem precisa, é para quem está com vontade de fazer.
PACIENTE: — Como assim?
LC: — Não creio haver uma só pessoa neste planeta que, tendo vontade de investir no processo de ampliação da própria mente em que consiste a experiência psicanalítica, não obtenha ganho com isso, mesmo que não esteja apresentando nenhum distúrbio psicológico de maior gravidade; por outro lado, pessoas com graves distúrbios psicológicos e que poderiam tirar muito maior proveito dessa experiência, se não estão dispostos a investir nela, nunca terão acesso a esse proveito.
PACIENTE: — E quando, como eu, a pessoa não acredita que esse ganho seja possível.
LC: — O processo psicanalítico não requer crença, requer apenas o “benefício da dúvida”.
PACIENTE: — O que é isso?
LC: — Lhe explico. Você precisa ACREDITAR em um antibiótico para que ele funcione?
PACIENTE: — Claro que não!
LC: — Basta, não importa por qual via, INGERI-LO, certo?
PACIENTE: — Certo.
LC: — Então, se um indígena que “não acredita em remédio de homem branco”, aceitar, ainda que fazendo pouco, tomar um antibiótico contra uma determinada infecção, vai fazer tanto efeito nele quanto faria em um “homem branco” que acredita nesse tipo de medicamento, não é assim.
PACIENTE: — Sem dúvida.
LC: — O mesmo ocorre com a Psicanálise. Se você, mesmo não acreditando nela, lhe dá o “benefício da dúvida” e se dispõe a investir no processo, ela irá funcionar tanto quanto funciona em alguém que a priori, tem confiança nela. Lembro-me de um paciente hipocondríaco – o mais hipocondríaco de todos que já atendi – que duvidou inicialmente de que poderia ter alguma utilidade fazer o que eu lhe indiquei; entre outras coisas, detalhar, dizendo nomes, as situações de doença que ele temia. Mas deu-me o “benefício da dúvida” e tentou. Livrou-se da hipocondria e, tendo “pago para ver”, descobriu a eficácia da Psicanálise. Quando partimos para tratar de outros sintomas, investiu na análise porque sua experiência anterior já lhe demonstrara a eficiência da técnica e não meramente por me estar dando o “benefício da dúvida”.
PACIENTE: — Tudo bem, vou lhe dar o “beneficio da dúvida”. Quero tentar.
LC: — Combinado. Poderíamos nos encontrar então blá, blá, blá, blá, blá, blá...

terça-feira, janeiro 29, 2008

DIÁLOGOS : LII. "POSSO FAZER-LHE UMA PERGUNTA?"

Consideremos o seguinte diálogo:

FULANO: — Posso-lhe fazer uma pergunta?
BELTRANO: — Claro, contanto que eu não tenha que responder...

Com efeito, porque diabos uma pessoa, em vez de dizer “Gostaria de lhe fazer uma pergunta” – merecendo ouvir de volta um educadíssimo “Por favor” – haveria de dizer “Posso-lhe fazer uma pergunta?” – podendo receber a aparentemente mal-educada resposta acima?
Na verdade, quando ouço esse segundo tipo de formulação, o que penso é “Lá vem bomba! Esse sujeito não consegue carregar sozinho o nariz que pretende meter onde nâo é chamado e está querendo minha cumplicidade para carregá-lo. É ruim de conseguir!”
Excesso de ranzinzice? De paranóia? Talvez. De qualquer forma, paranóicos e ranzinzas como eu podem fazer uso da fórmula. É ótima defesa contra esses sujeitos que, além de pretenderem se meter em nossas vidas, querem nosso prévio aval.
A fórmula de outras aplicações. Vejamos:
FULANO: — Posso-lhe pedir uma coisa?
BELTRANO: — À vontade, contanto que eu não tenha que fazer...
A propósito de pessoas que pretendem nossa cumplicidade com a mordida que nos pretendem dar, vale abordar o capítulo “mendigos”. As ruas do Rio de Janeiro estão apinhadas deles, mas há-os de dois tipos: os mendigos normais e os MENDIGOS CHATOS.
Os primeiros chegam e pedem diretamente – “Dr. dá pra me arranjar um real?” – e eu, conforme meu humor e meus trocados, dou ou não dou. Já os segundos não pedem diretamente dinheiro, pedem “atenção”, para, depois de nos encher a paciência, nos pedir dinheiro. A esses dou atenção pouca e dinheiro nenhum:
MENDIGO (VARIAÇÃO CHATA): — Doutor, o senhor poderia me dar um minuto de sua atenção?
EU: — Se não se trata de dinheiro, posso-lhe dar minha atenção; se se trata de dinheiro, é melhor não perdermos tempo, a resposta é não.
MENDIGO (VARIAÇÃO CHATA): — Mas, doutor...
EU: — É dinheiro?
MENDIGO (VARIAÇÃO CHATA): — Doutor...
EU: — É dinheiro?
Depois da terceira, normalmente vão embora, SEM DIZER QUE ERA DINHEIRO!
Que diabos, vivemos em uma terra em que nem mendigo se assume!

DIÁLOGOS : LI. "VOCÊ NÃO ME AMA!"

Nossa cultura é uma cultura assustada. Não digo CONJUNTURALMENTE assustada, ou seja, com indivíduos capazes de ajustar seu nível de medo ao perigo provável do ambiente em que está inserido. Digo ESTRUTURALMENTE assustada, ou seja, mantendo um alto nível de medo, mesmo em situações em que ameaças relevantes são bastante improváveis. Gosto muito de um poema de Drummond que aponta para isso:

“Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços.
Não cantaremos o ódio, porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois, morreremos todos, de medo.
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.”

Esse medo estrutural leva naturalmente à necessidade de nos camuflarmos, de nos escondermos, criando uma multidão de indivíduos escondidos debaixo de um pseudo-eu. Tal se vê nos menores detalhes de nossa vida cotidiana. Uma boa ilustração disso gira em torno do que os ingleses chamam de “fishing for compliments” (literalmente = pescar louvores, elogios): uma pessoa está sentindo necessidade de ser elogiada, como não OUSA EXPOR sua necessidade, dá uma imensa volta. Escolhe alguém – que ela sabe de antemão valorizá-la – e faz, diante desta, um comentário em que se auto-desmerece, esperando que a outra venha logo com o desmentido, para consolá-la. O processo, naturalmente, é pouco sério: a pessoa não expõe que se está sentindo carente e faz um joguinho para levar a outra a elogiá-la. Acontece que, particularmente em certas relações amorosas, isso pode se tornar um inferno, com uma das pessoas acusando ininterruptamente a outra de não a amar e a outra eternamente acuada tendo que provar o contrário. Uma das melhores maneira de desmanchar esse comportamento pouco sério é levá-lo a sério. O diálogo abaixo serve de ilustração.
ELA (tom dramático): — Por que você não me ama!
ELE (tom surpreso e preocupado): — Será? Eu nunca tinha pensado nisso! Não gostaria de estar enganando a você – e a mim – todo esse tempo! Se for assim, gostaria que você me ajudasse a perceber isso.
ELA (saindo do tom dramático): — Tá legal. Outra hora. Você quer um cafezinho?

Testem. Dá super-certo.

DIÁLOGOS : L. O SPA.

Sessão de sexta-feira com Ermínia, uma empresária de modas que, na segunda-feira seguinte irá fazer a apresentação, em desfile, de sua nova coleção de inverno. Está evidentemente nervosa. Mais do que isso, está dividida entre, por um lado, passar o fim-de-semana em um SPA para recuperar-se de toda a tensão que passou preparando o evento e ficar longe do Rio, sem poder atender a alguma complicação de última hora, e, por outro, ficar aqui para solucionar qualquer imprevisto de última hora. Após uma série de ires e vires, decide que vai para o SPA e se despede. Quando está começando a descer a escada da cobertura onde atendo, chamo-a:
LC: — Ermínia!
ERMÍNIA (parando na escada): — Sim?
LC: — Não se preocupe!
ERMÍNIA: — Não?
LC: — Não. Vai dar tudo errado.
Como era de se esperar, deu tudo certo e, na sessão seguinte, a paciente comentou:
ERMÍNIA: — Puxa, foi ótimo! Descansei pra burro no SPA! Toda vez que me passava uma nuvem de preocupação e eu pensava que alguma coisa poderia estar saindo dos eixos aqui embaixo, eu me lembrava do que você havia dito e pensava: “Também, pra que vou me ralar? Vai tudo dar errado mesmo!” E relaxava outra vez... Descansei muito. Olha, amigo, muito obrigado! Foi bom, muito bom!
E por que diabos eu ter dito para Ermínia que tudo iria dar errado no evento que era tão importante para ela e que ela tanto se esforçara por bem preparar pôde relaxá-la, transformando-se em algo “bom, muito bom”?
Parece-me simples: com meu comentário, eu emprestei LEGITIMEI os naturais pensamentos de Ermínia relativamente a que seu evento, como qualquer outro empreendimento humano, está sempre sujeito ao imponderável e, por mais que tenhamos dado o melhor de nós, pode soçobrar. Faz parte da vida e a tentativa de negar o que, no fundo de nós, sabemos ser verdade, PROVOCA ANGÚSTIA. Quando eu disse “Não se preocupe, tudo vai dar errado”, é como se tivesse dito: “Você TEM DIREITO de pensar que pode ser que não dê certo”! E a legitimação de um pensamento anteriormente considerado ilegítimo, traz sempre alívio.
Essa legitimação pode ser feita, naturalmente, de várias maneiras. Vejamos outra:

PACIENTE: — Estou com vontade de falar uma coisa, mas estou com medo de que você pense que eu sou veado.
LC: — Já pensei, pode continuar.
PACIENTE: — Hein?
LC: — Ué, seu medo não é o de que eu pense que você é veado? Como eu já pensei, você não tem nada mais a temer.
PACIENTE (relaxando-se e rindo): — Você não é fácil!

E passou a relatar o que lhe interessava.

DIÁLOGOS : XLIX. UMA EMPRESA ESPECIAL

Uma de minhas colegas atendia um menino, Adolfo, de cerca de nove anos que era um verdadeiro pestinha, enfernizando indiscriminadamente a vida de todos em seu colégio e, naturalmente, recebendo correspondentes rejeição e maus tratos de volta. Após um ano de tratamento, havia-se tornado muito menos ansioso e de muito mais fácil convívio, parando de ser agredido e rejeitado. Foi então que, em sessão, produziu-se esta jóia de diálogo:

TERAPEUTA: — Então, como vão as coisas?
ADOLFO: — Tudo bem. É impressionante como aquele pessoal da escola melhorou!

É interessante observar a quantidade de adultos que se comporta de maneira idêntica, só vendo a si mesmos como RECEPTORES, nunca como EMISSORES de estímulos. Dão, sem perceber que o fizeram, uma “patada” em alguém, levam outra de volta e comentam, com espanto: “Eu, hein! Por que fulano está agressivo assim, hoje?”
Esse tipo de fenômeno é uma ótima oportunidade para analisarmos dois diferente significados do termo “repressão”: o vulgar e o psicanalítico. Vulgarmente, o termo “repressão” é o mais das vezes entendido como BLOQUEIO DA AÇÃO; técnicamente, o termo “repressão” deve SEMPRE ser entendido como BLOQUEIO DA EXPRESSÃO VERBAL. Assim, a famosa afirmação psicanalítica:
REPRESSÃO CAUSA NEUROSE
Só tem sentido se entendida assim:
BLOQUEIO DA EXPRESSÃO VERBAL CAUSA NEUROSE
Quando se confunde o significado técnico do termo com seu significado vulgar, os resultados podem ser catastróficos. Um grande psicanalista, Otto Fenichel, teve a coragem de, em um de seus livros, confessar que, no início de sua prática clínica, fez essa confusão. Tinha uma paciente com grande dificuldade de se soltar durante o ato sexual e Fenichel começou a incentivá-la para que o fizesse. Com efeito, soltou-se: deu tamanha dentada no lábio inferior do marido que foram ambos parar no hospital!
Se uma pessoa está agredindo todo mundo em uma festa, mas não é capaz de RECONHECER VERBALMENTE isso, não importa o quanto seu COMPORTAMENTO agressivo ESTEJA LIBERADO. Ela, do ponto de vista psicanalítico, sofre de AGRESSIVIDADE REPRIMIDA e, certamente, vai fazer parte do grupo daquelas que, quando leva uma “patada” de volta por suas agressões, se surpreende e exclama: “Caramba, como fulano está agressivo hoje!” E se, no dia seguinte, ela está mais calma, não agride o fulano nem leva nenhuma “patada” de volta, pode bem comentar: “Ele hoje está mais calmo, né?”
Como diria o Adolfo: “É impressionante como aquele pessoal da escola melhorou!”
Em tempo: no jargão técnico psicanalítico o bloqueio da AÇÃO tem o nome de RETENÇÃO. Assim, tecnicamente:
RETENÇÃO = BLOQUEIO DA AÇÃO
REPRESSÃO = BLOQUEIO DA EXPRESSÃO VERBAL
A retenção só causa neurose se levar posteriormente a um bloqueio da expressão verbal, ou seja, à repressão.

DIÁLOGOS : XLVIII. UMA EMPRESA ESPECIAL

Tecnicamente, a expressão “crise maníaca”, diz respeito a um estado de exaltação emocional, agitação psicomotora, taquipsiquismo (pensamentos encadeados em enorme velocidade), idéias deliróides (distorções da realidade, normalmente na direção da onipotência, dependentes do mencionado estado de exaltação) etc., etc. Francisco, em pleno surto maníaco, pega dinheiro do pai e sai tentando distribuí-lo pelas pessoas na rua. As velhinhas classe-média se assustam e recusam, os mendigos, naturalmente, adoram. Chegando à sessão, me dá uma nota de cinqüenta, e inicia-se o seguinte diálogo:.
FRANCISCO: — Eu sou uma empresa.
LC: — Sim.
FRANCISCO: — Você também é uma empresa.
LC: — Sei.
FRANCISCO: — E, como empresa, eu estou investindo na sua empresa. Esses cinqüenta reais são o investimento inicial.
LC: — Obrigado.
FRANCISCO: — Fiz vários investimentos no caminho. Parei uma senhora que cata papel perto da minha casa e expliquei a ela que ela é uma empresa e que minha empresa estava dando cinqüenta reais a ela a título de investimento.
LC: — Ela aceitou?
FRANCISCO: — Claro!
LC: — Que bom. Gostaria de saber o objetivo de sua empresa, para nós podermos avaliar, ao longo do tempo, se ela está ou não dando certo.
FRANCISCO: — É fazer as pessoas ficarem felizes!
LC: — Entendi. Não é uma coisa muito simples de ser feita, mas pode-se tentar e ir avaliando os resultados.
Dizia Freud: “É inútil interpretar comportamento bem sucedido”. Era mais do que óbvio que Francisco estava considerando seu comportamento um sucesso. Pôr isso em dúvida, naquele momento, não seria apenas inútil, seria cruel. Mas, naturalmente, eu nada perderia por esperar...
Com efeito, três dias depois, sou acordado de madrugada pelo toque de meu celular. Era o pai de Francisco. Meu paciente estava a horas rodando pela casa aos berros, os vizinhos já estavam desesperados com a confusão, ele não deixara seu pai completar trabalhos que trouxera para fazer em casa, jogara um copo d’água na cara da irmã, que estava literalmente enfurecida etc., etc., etc. Fui para lá. Francisco aquietou-se ao saber que eu estava indo. Encontrei-o, estranhamente quieto, sentado em um divã:

LC: — Bem, numa primeira avaliação, sua empresa está sendo um fracasso, no que diz respeito ao objetivo de fazer os outros ficarem felizes: os vizinhos estão enfurecidos porque não conseguem dormir, seu pai está enfurecido porque você não deixou ele trabalhar, sua irmã está enfurecida porque você jogou água na cara dela e EU ESTOU ENFURECIDO porque tive que levantar no meio da noite para vir até aqui!

Começou a chorar. E pudemos começar a tentar entender o que estava acontecendo...

DIÁLOGOS : XLVII. FALTAS, ATRASOS E SILÊNCIOS

Feliz o paciente que a seu analista só deve dinheiro: não lhe deve chegar a suas sessões na hora, não lhe deve estar presente a todas elas, não lhe deve o cumprimento da tarefa de falar, não lhe deve sequer uma cura. Só um psicoterapeuta que brinda seu paciente com toda essa liberdade de participar ou não do processo psicoterápico é capaz de permitir que se realize, de forma realmente profunda, um projeto de cura. Só há, com efeito, liberdade de expressão, quando temos liberdade de escolha entre nos expressarmos ou não.
Isso é particularmente verdadeiro com um determinado tipo de paciente: aqueles que passaram por descompensações psicológicas por demais graves e que vêm ao tratamento com pânico de mexer novamente nos temas que, ativados, provocaram tais crises. Esses pacientes, em sua primeira abordagem, não vêm ao terapeuta para SE TRATAR. Vêm supondo que o contato com o terapeuta tem o poder mágico de exorcizar a ocorrência de novas crises, tendo o mero comparecimento pontual e assíduo às sessões o condão de fazer isso. Quando esse contato leva a uma situação em que o risco de novas crises foi significativamente afastado, começam, via de regra, a chegar atrasados às sessões, a não comparecer a elas, a produzir material irrelevante quando a elas comparecem e, se o terapeuta não tiver superior conhecimento para lidar com isso, a abandonar o tratamento. Isso ocorre porque, quem já esteve no inferno, passando ao purgatório, confunde-o com o céu. E, lá chegado, o terapeuta, que lhe amparou para sair do inferno, fica associado a esse último, do qual o paciente quer estar a toda a distância possível! Nesse momento, não é adequado que o terapeuta transmita ao paciente qualquer INDICADOR QUE POSSA SER ENTENDIDO COMO UMA CENSURA A SEU COMPORTAMENTO. Isso porque o purgatório terapêutico é um grande desafio: diferentemente do que ocorre com o purgatório dos católicos, o purgatório da doença psicológica não tem mão única, que leva necessariamente ao céu. Tem mão dupla e pode levar seu habitante de novo ao inferno.
Em seu purgatório terapêutico, tal paciente (a) foge do terapeuta porque associa esse último a seu período de inferno e (b) sente culpa porque se sente ingrato por abandonar quem o ajudou. A solução que adota é, freqüentes vezes, criar artificialmente um AGRAVAMENTO DESNECESSÁRIO de sua própria condição mórbida como um meio transverso de voltar a suas sessões. E a probabilidade de que essa solução artificial – que, em “A Nova Conversa” chamo de Produção Artificial de Evento – seja adotada torna-se maior quando o terapeuta reduz o número de sessões ou suspende o tratamento, pois tal providência é vivida como um “castigo” contra a fuga que o paciente adotara. Dois casos, ocorridos no início de minha atividade clínica, foram capazes de me ensinar o que não me ensinaram nem a literatura especializada nem meus mestres, professores ou supervisores.
O primeiro é o de um empresário de seus 45 anos que, a despeito de ser um workaholic, estava operando tais desmandos na administração de seu negócio que sua empresa se encaminhava na direção de uma falência. Era atendido cinco vezes por semana. Após cerca de dois anos de terapia bem sucedida, TIROU FÉRIAS PELA PRIMEIRA VEZ NA VIDA, sua AUTO-SABOTAGEM FICOU SOB CONTROLE, a firma voltou a prosperar e ele... a PRODUZIR MATERIAL CADA VEZ MAIS ESVAZIADO DE AFETO e, portanto, mais IRRELEVANTE. Errei: disse ao paciente que não valia a pena perdermos tempo e dinheiro numa terapia que, simplesmente, NÃO ESTAVA ACONTECENDO. Ledo engano, como ficará patente pelo caso que relatarei a seguir. Encerramos, portanto, nosso contrato de trabalho. Cerca de um ano depois, entrou em contato, dizendo que queria retornar. Voltou totalmente destroçado e aos prantos, coisa nele totalmente atípica: havia, de uma só tacada, feito um investimento mirabolante, lançando sua empresa em uma situação incomparavelmente pior do que a de quando me procurara pela primeira vez. Recuperou-se emocionalmente e, desta feita, terminamos a terapia com os cuidados que anteriormente eu não tomara. Mas, trinta anos depois – tenho follow-up – sua empresa, que estivera no top do setor, nunca mais se recuperou do baque que sofreu.
O segundo caso é o de um estudante universitário de seus vinte e poucos anos, atendido à razão de quatro vezes por semana, e que me procurou devido a um sintoma aparente, por primeiro, aos seus oito ou nove anos de idade, qual seja, uma fobia a exames. Inicialmente, seu distúrbio ainda lhe permitia, se bem que a trancos e barrancos, fazer os testes escolares e passar de ano. Na universidade, contudo, o sintoma se agravara de tal forma que o risco de uma reprovação se tornara iminente. Embora este caso vá servir para ilustrar o mal passo existente em se reduzir número de sessões ou aboli-las de todo sem esmerosos cuidados, o mecanismo psicológico operante neste paciente era diverso do mecanismo que anteriormente abordei: não se tratava conflito entre gratidão e culpa, pois as faltas do paciente começaram a ocorrer logo em seu segundo mês de análise, antes que meu trabalho pudesse ter trazido qualquer ganho palpável para ele. Mas eu já havia aprendido que a rejeição do paciente a aprofundar sua análise devia ser respeitada. Fiquei esperando em vão, quatro vezes por semana, durante um mês, a presença do paciente. Nos primeiros dias do mês seguinte, liguei para o paciente, comunicando que estava sentindo falta de meus honorários. Veio, trouxe o pagamento – na verdade, pagaram seus pais, a quem provavelmente não dissera estar faltando – passou a sessão inteira em um silêncio que eu não interrompi e escafedeu-se. Seguiu-se mais um mês inteiro de espera em vão, findo o qual, ainda uma vez, liguei para ele, reclamando meus honorários. Veio, pagou, manteve-se mais uma vez de todo calado e escafedeu-se uma vez mais. Intrigado, pus-me novamente a esperá-lo. Dessa vez, contudo, passadas cerca de duas semanas, ele reapareceu e, como se nada de insólito houvesse acontecido, iniciou o seguinte diálogo:

PACIENTE: — “Tive um sonho. Eu estava voltando de uma sessão de análise. Quando entro em casa, vejo você sentado na sala, de costas para mim, conversando com meus pais, sentados em um sofá à sua frente. Passei rapidinho para o meu quarto e me tranquei lá”.
LC: — E você tem idéia de por que você passou rapidinho?
PACIENTE: — Ora, porque você poderia estar contando alguma coisa para meus pais que eu tivesse contado para você na análise.
LC: — E você tem alguma coisa que gostaria de contar a mim, mas não, a seus pais? Quem sabe isso nos permite entender suas faltas e seu absoluto silêncio nas últimas sessões a que você compareceu?
PACIENTE: — Tenho, sim.
LC: — E o que é?
PACIENTE (começando a contar, inicialmente hesitante, mas depois de forma cada vez mais solta e aparentando estar tirando enorme peso de cima de si): — Eu e meu irmão, três anos mais novo que eu, íamos à escola pela manhã, sendo buscados por nossa mãe. Almoçávamos ao chegar em casa e, em seguida, deitávamos os três na cama de meus pais, para tirar uma soneca. Quando eu tinha acho que seis anos, por uma razão que eu não entendi, minha mãe deixou meu irmão na casa da vizinha, levando-me para deitar com ela. Deitados, ela pôs o seio para fora e perguntou: “Meu filho, você não quer mamar?” De início, fiquei assustado com a proposta, mas a tentação era grande, e mamei. A partir do dia seguinte, comecei a mudar. Tornei-me, de jovial e extrovertido, em um menino assustado e tímido, pensando o tempo todo que alguém ia descobrir o que acontecera e que, na verdade, eu sentia que deveria ter contado a meu pai.

Deixemos de lado a freqüente e improfícua discussão sobre se esse tipo de relato se refere a algo que realmente ocorreu ou se é fruto de uma imaginação infantil tão intensa que beira a alucinação. Improfícua porque alucinações intensas podem deixar em nossa memória, marcas tão intensas quanto a realidade e, assim sendo, também gerar um sem-número de sintomas, no caso desse paciente, uma fobia de exames, seja, de situações cuja natureza essencial é exatamente que se peça ao examinado que diga O QUE ELE SABE. Após esse relato, com o trabalho que se seguiu, o sintoma do paciente foi gradualmente remitindo, até não deixar mais vestígios.
É óbvio que a relação psicanalítica se presta fartamente a ser confundida com uma situação de exame: se eu, agora já mais sábio, não tivesse respeitado as faltas e o silêncio de meu paciente (atrasos, quando for o caso, também devem merecer esse respeito), estar-me-ia colocando no papel de temido inquisidor, alienando o paciente de mim, à custa de ele deixar de todo o tratamento ou de bloquear progresso dele.
Pois bem, no primeiro caso relatado aqui, simplesmente errei; no segundo, usei a cobrança de meus honorários como recurso para deixar claro para o paciente que, a despeito de suas ausências, eu ainda estava ligado a ele.
E é não sei se trágico ou cômico – melhor, é fonte de esperança – que uma criança – no caso, uma criança de seis anos – seja capaz de fazer o que, no primeiro dos casos relatados, eu, psicanalista e adulto, não fui capaz. Com efeito, Eurico pertence à safra de crianças que, por estar um de seus pais em psicoterapia comigo, foram criados – este desde o berço – em um ambiente loganalítico. Reflitamos sobre o seguinte diálogo, ocorrido entre esse menino – de seis anos, não resisto á tentação de repetir – e sua mãe:

EURICO: — Você está triste?
MÃE: — Um pouco, meu filho.
EURICO: — Quer falar sobre isso?
MÃE: — Não. Agora não quero falar isso, não.
EURICO: — Tá, quando você quiser...

Quantos psicoterapeutas serão capazes de parecer mais com essa criança do que com um americano interrogando um muçulmano suspeito de terrorismo?

DIÁLOGOS : XLVI. AUTOLOGIA PERVERTIDA

O diálogo que segue foi parte de uma sessão em que eu atendia uma adolescente de 17:

PACIENTE: — Minha mãe mandou dizer para você que EU NÃO QUERO mais fazer terapia.
LC: — Ah, sim? E você, de fato, não quer fazer mais terapia?
PACIENTE: — Não sei...

Essa sessão ocorreu há mais de trinta anos, e só esse fragmento sobrevive em minha memória. Lembro, apenas, que a terapia foi, de fato, interrompida. Talvez, hoje, eu tivesse mais recursos técnicos e, chamando a mãe da paciente para algumas sessões, isso não teria acontecido. De qualquer forma, tal fragmento é bastante para que possamos fazer algumas considerações bastante significativas sobre a relação entre as mães e seus filhos. Millôr Fernandes tem um arguto comentário sobre esse tipo de relação:

“TODA A SUPER-MÃE PRODUZ UM INFRA-FILHO.”

E, convenhamos, não só as super-mães. Super-pais também produzem infra-filhos. Crianças, quando descobrem o prazer de andar, costumam inclinar-se para frente e partir, céleres, na direção do infinito. Eu estava em um vasto gramado, com meu filho de dois anos e uma colega psicóloga. Ele – célere, por suposto – partiu, reto, em sua reta para não-se-sabe-onde. Quando em vez, olhava para trás, para ver se eu o estava seguindo. Transcorreu o seguinte diálogo entre mim e minha amiga psicóloga:

COLEGA: — Ué, que estranho! Crianças dessa idade seguem direto, não param para ver se os pais lhe estão seguindo.
EU (brincando com a verdade): — É que ele sabe que um de nós dois tem que ter juízo. Como eu não tenho...

Ocorre que eu nunca me precipitei para segurar corridas de meu filho em direção ao infinito, quando o perigo de sua trajetória era nada mais do que se esborrachar sobre um gramado. Super-mães e super-pais exercem, por seus filhos, funções que eles estão em perfeitas condições de exercer, atrofiando-as, e, como alerta Millôr, produzem infra-filhos. Aliás, não só pais e mães, sempre que exercemos por alguém – filhos, alunos, pacientes etc. – uma função que eles poderiam, de per si, exercer, atuamos como vampiros existenciais, que sugam o poder decisório e, conseqüentemente, a autonomia de seus supostos “protegidos”.
Você imagina um fisioterapeuta fazendo, por seus pacientes, os exercícios que eles, pacientes, deveriam fazer? Ou um médico tomando, ele, por seus paciente, os medicamentos que a eles cabe tomar? Então por que certos pais, certos sacerdotes, professores e psicoterapeutas se metem a desempenhar a função de pensar por seus filhos, fiéis, alunos e pacientes, hipotrofiando neles, exatamente o que lhes deveria ser outorgado?
A resposta não é exatamente lisonjeira para os que fazem isso e – a parte brindá-los com o epíteto de “vampiros existenciais” – me eximo de aprofundar isso aqui.

domingo, janeiro 27, 2008

DIÁLOGOS : XLV. "GRITAR OU NÃO GRITAR, EIS A QUESTÃO!"

Quando meu filho tinha dezoito anos de idade, perguntou-me:

FILHO: — Papai, porque você nunca grita com as pessoas?
PAI: — Meu filho, porque, quando eu tenho poder, eu não preciso gritar, e, quando não tenho, não adianta eu gritar.
FILHO: — Ah, entendi...

À época em que esse diálogo ocorreu, acreditei em minha explicação. Hoje, três anos depois, vejo que é totalmente falsa. Primeiro, eu não tenho nada contra gritar, embora, nas raras vezes que o faço, tendo a fazê-lo de forma loganalítica, ou seja, de forma autológica, microscópica e expressando meu estado afetivo ou meus desejos. Ou seja, dificilmente gritaria:

EU (para o filho): — CARA, VOCÊ (heterologia) É UM RELAXADO TOTAL! PÁRA COM ISSO DE DEIXAR SEMPRE SUAS TRALHAS EM CIMA DE MINHA MESA DE TRABALHO! SE VOCÊ CONTINUAR A FAZER ISSO, NUNCA MAIS (macroscopia) LHE DEIXO USAR MEU COMPUTADOR!

Provavelmente, nessas circunstâncias, se chegasse a gritar, gritaria:

EU: — HOJE, SUAS TRALHAS ESTAVAM, DE NOVO, EM CIMA DE MINHA MESA DE TRABALHO! CARA, EU (heterologia) TÔ FICANDO COM O SACO CHEIO (expressão de emoção)!

E, sem dúvida, se tiver que optar, acho mais adequado gritar de forma loganalítica do que falar em tom normal de forma não loganalítica. Segundo, se, via de regra, eu não grito, isso não se deve às razões que dei a meu filho, mas, simplesmente, PORQUE NÃO TENHO GÁS para fazê-lo. E não tenho esse gás porque, de maneira geral, expresso minhas emoções, sentimentos e desejos muito antes de que eles se acumulem o suficiente para ser capazes de gerar gritos. ... E sintomas.
Em tempo: note-se que, no exemplo de “grito loganalítico”, não há a promessa MACROSCÓPICA de “NUNCA MAIS” deixar o jovem “delinqüente” usar o computador. A seguinte tática é muito mais eficaz:

FILHO (após ter, mais uma vez, deixado as próprias tralhas na malfadada mesa): — Pai, posso usar o computador?
PAI: — Não.
FILHO: — Por quê?
PAI: — Porque você deixou, MAIS UMA VEZ, suas tralhas em cima de minha mesa e eu estou p. da vida.
FILHO: — Você não vai DEIXAR MAIS eu usar o computador?
PAI: — Vai pedindo, quando eu deixar de ficar p. da vida, eu deixo. Posso, inclusive, avisar você, quando eu não estiver mais.

Dá tããão certo!

DIÁLOGOS : XLIV. SILÊNCIO.

Marília, após uns vinte minutos de sessão em completo silêncio, levanta-se para ir embora:

LC: — O que aconteceu?
MARÍLIA: — Ué, não tenho nada para dizer!
LC: — E daí?
MARÍLIA: — Ué, aqui não é pra falar? Eu não tenho nada para falar, então é melhor eu ir embora.
LC: — Eu disse para você que nosso objetivo aqui é o de que você fale?
MARÍLIA: — Não, não disse, mas todo mundo sabe que o objetivo de uma análise é a pessoa falar.
LC: — Desculpe, não compartilho desse ponto de vista.
MARÍLIA (indicando surpresa e sentando-se no divã, onde estivera anteriormente deitada): — Não?!
LC: — Não.
MARÍLIA : — E qual é, então, o objetivo da análise?
LC: — É fazer a pessoa entrar em contato com coisas que são difíceis para ela.
MARÍLIA : — !!!
LC: — E, pelo que você demonstrou até agora, é muito mais difícil para você ficar calada do que falar sem parar. Aliás, a impressão que me dá é que as palavras jorram de você como uma cortina protetora para que nem eu nem você entremos em contato com o que verdadeiramente lhe perturba.
MARÍLIA : — Você está dizendo que eu uso a palavra para me defender?
LC: — Parece. Aliás, embora eu ache que ele estava generalizando algo que é possível, mas não necessário, Voltaire dizia que a palavra é “o instrumento mediante o qual a pessoa esconde o próprio pensamento”.
MARÍLIA : — Que exagero!
LC: — Também acho, mas, muitas vezes, você me deu a impressão de que estava fazendo exatamente isso.
MARÍLIA : — E por que diabos eu faria uma coisa dessas? O que é que eu estaria tentando esconder?
LC: — Bem, Marília, não posso ter certeza, porque ainda não exploramos isso juntos, mas, o que vem à minha mente são as inúmeras vezes em que você mencionou sentir-se aquém do que os outros esperam de você. Se você acha que o que um psicanalista espera de você são palavras, imagino que não as ter para fornecê-las a mim seja uma situação desproporcionalmente incômoda para você e, na verdade, degustar esse incômodo e encontrar a raiz dele seria nossa melhor tarefa, o que vai ficar difícil se você for embora.
MARÍLIA : — Bem, na verdade, blá, blá, blá, blá, blá, blá...

Disse, em outro destes “DIÁLOGOS”, que toda a Psicanálise bem sucedida é um tratamento de logofobias, o que – esse fragmento de sessão nos permite melhor esclarecer isso – pode ser tanto a fobia de falar quanto a de calar.
Conclusão: se o paciente provier de um ambiente familiar que o impediu de falar e cair nas mãos de um psicanalista que o proibe de calar, não fez mais do que sair da frigideira para cair no fogo...

DIÁLOGOS : XLIII. O CAMELÔ-FILÓSOFO.

Eu estava atravessando a Praça Quinze, no Rio de Janeiro, quando ouvi um sujeito – vou chamá-lo de Mário – falando com um camelô sobre algo que fizeram com ele, Mário, e que o deixara indignado. Nunca me esqueci da resposta do ambulante (que, aliás, não parecia ter sido o autor do agravo):

SUJEITO: — Blá, blá, blá, blá, blá, blá... porque isso NÃO É DIREITO!
AMBULANTE: — Amigo, se anzol não fosse torto, não pegava peixe!

Gosto de demarcar – tão arbitrariamente quanto são demarcados outros períodos históricos – o período de exatos duzentos anos que medeia entre 1789 – a Queda da Bastilha, início “oficial” da Revolução Francesa – e 1989 – a Queda do Muro (de Berlim), fim “oficial” da Guerra Fria – como o período em que ocorreu a maior revolução antropológico-cultural da história da humanidade.
A causa dessa revolução é simples. Nossa espécie, o homo sapiens, povoa este planeta há pelo menos 100 mil anos. Até 1789 a expectativa média de vida do ser humano era de cerca de 35 anos e a população mundial de cerca de 1 bilhão de pessoas, em 1989 essa expectativa havia duplicado, chegando aos 70, e a população mundial sextuplicado, chegando aos 6 bilhões! Esses dados demonstram que, durante o período assinalado – que me apraz chamar de “Os Grandes Duzentos” – a AMEAÇA CONCRETA (não a AMEAÇA POTENCIAL) à nossa vida sobre a Terra, tanto no que diz respeito ao indivíduo, quanto no que diz respeito à espécie, caiu vertiginosamente.
Ora, se levarmos em conta que AMEAÇAS CONCRETAS são o fator mais fortemente relacionado com a ELEVAÇÃO DO MEDO, somos levados a concluir que, durante esse período também deve ter ocorrido uma DRÁSTICA REDUÇÃO DO MEDO, tanto em nível individual, quanto em nível coletivo, e há dados que apóiam tal conclusão, quais sejam: as sociedades anteriores aos Grandes Duzentos – e todas aquelas que, ainda hoje, apresentam expectativas individuais e coletivas de vida características daquela época – organizam-se de acordo com o que chamei de “modo-sobrevivência”: são politicamente centralizadas, aguerridas e, conseqüentemente, dominadas pelo macho, marginalizadoras do fraco, exaltadoras do sacrifício e da obediência; as posteriores àquele período – e que superaram grandemente aquelas expectativas – começaram a organizar-se de acordo com a matriz antropológica a que denominei de “modo-bem-estar”: são politicamente descentralizadas, cooperativas, integradoras do feminino e do desvalido, valorizadoras da autonomia e do prazer.
Um fator de natureza psicológica, contudo, nos mantém imersos em uma verdadeira “pororoca antropológica”, em que “modo sobrevivência” e “modo-bem-estar” se digladiam. Esse fator, em Psicanálise, tem o nome de “fixação”. Nosso presente mostra que já existem condições concretas de estabelecermos a paz e a harmonia neste planeta, mas a memória do passado pede que nos mantenhamos fixados a um modo de operar afinado com o temor e com a guerra.
E para quem se sente em guerra, os outros não são semelhantes com quem colaborar, mas peixes a pescar, exigindo o emprego de anzóis, que, para funcionar, devem ser tortos.
Grande parte das chances de sucesso da humanidade depende de que ela aprenda, com a Psicanálise, a desmanchar suas fixações. Isso depende de um determinado uso da palavra, do desenvolvimento de uma Nova Conversa, cuja natureza me venho dedicando a divulgar.

DIÁLOGOS : XLII. PÔQUER.

Evidente que é de extrema vantagem para um jogador de pôquer ser um bom psicólogo, o que lhe dá melhor possibilidade de perceber quando outro está blefando. Acontece que as pessoas não blefam apenas no pôquer. Blefam também na vida. E com uma assustadora freqüência, que só os bons psicólogos são capazes de avaliar, sendo capazes de, quando desconfiam do blefe, pagar para ver. Mais: algumas pessoas blefam até para elas mesmas, só descobrindo que blefavam quando se lhes pede que mostrem seu jogo. Ana Maria, a quem namorei, era assim. Blefava até para ela mesma. É a protagonista do episódio que passo a relatar.
Antes de fazê-lo, quero fazer algumas considerações sobre valores. Em minha opinião, todos têm o direito de ter os seus valores, sejam quais for. Um tribunal pode e deve condenar e aplicar todas as sanções cabíveis a quem infringe as leis por esse tribunal representadas, mas não tem direito, em adição a fazê-lo, de enxovalhar e denegrir a pessoa do infrator.
Há uma variação infinita de visões axiológicas relativamente às relações amoroso-sexuais: indo da obrigação islâmica de segregação da mulher até do simples olhar de outros homens à oferta feita por um esquimó – não sei se usam isso ainda – de que o forasteiro que o visita sirva-se sexualmente de sua mulher, indo da castidade à promiscuidade, indo da monogamia à poligamia, da homossexualidade à heterossexualidade ou bissexualidade etc., etc.
Eu, particularmente, defendo que, pelo menos a partir do momento que uma sociedade considera um sujeito apto a cumprir deveres como, por exemplo, votar e a ter direitos como, por exemplo, dirigir automóveis, ninguém mais deveria se intrometer na forma e direção que ele dá a sua vida amorosa e sexual, entendido que ele o faça, não por forçar ou ser forçado, mas montado sobre seu arbítrio e respeitando o arbítrio dos demais.
A mim, por exemplo, não interessam “fidelidades fiscalizadas”. Soa-me insólito ouvir um homem dizendo: “Minha mulher, me trair? É ruim! Eu tô ali, em cima! Ela ta controladinha! Não dou mole, não!” Para mim, ele está passando a mensagem de que se sente um cornudo potencial, que só não tem tal potencialidade concretizada mediante muito esforço. A parte isso, acho impossível manter uma relação satisfatória e profunda com alguém, se mentimos para essa pessoa. Se a mulher que está comigo precisar saber alguma coisa sobre mim, o mais simples é que pergunte a mim mesmo. Ou vou dizer-lhe a verdade, ou, se estiver num momento de estranhamento com ela, falar algo como: “Lamento, mas não me estou sentindo suficientemente bem com você para lhe responder a essa pergunta”. Aí, sim, cabe, se ela quiser, ir procurar informações alhures.
Os valores de Ana Maria sobre amor e sexo não eram exatamente esses, e, além de ser uma blefadora contumaz, parece que tinha menos disposição do que eu para agir de acordo com os valores que dizia esposar. O diálogo a seguir, ocorrido quando voltei de um almoço com minha anterior companheira (sobre o que, evidentemente, não menti) mostra bem isso:

ANA MARIA (a quem, aliás, na época, eu muito amava): — Eu não sou mulher de ficar namorando homem que fica indo se encontrar para almoçar com ex-mulher!
EU: — Ah, sim? E você já decidiu quem é você vai namorar agora?

Calou-se, saiu da sala e voltou, algum pouco tempo depois, perguntando se eu queria tomar um cafezinho.
Antes de blefar, é interessante saber com quem. Mas, como?, se, às vezes, nem o blefador sabe que está blefando?

DIÁLOGOS : XLI. COMENTÁRIO SOBRE UMA SOPA FRIA.

O diálogo abordamos hoje foi travado via imeil a partir um comentário feito por um leitor sobre meus diálogos “Sopa” e “Demissão”, que transcrevo para facilitar o cotejamento:

Sopa

PEDRO: — Meu bem, esta sopa está fria!
CLÁUDIA: — Eu sei que tudo que eu faço é mal feito! Talvez fosse melhor para você que a gente se separasse!
PEDRO: — Eu preferiria que você esquentasse a sopa...

Demissão

LUÍS CÉSAR: — Mônica, não estou satisfeito com o fato de que você XYZWJ.
MÔNICA (funcionária, bastante eficiente, mas também bastante malcriada): — Se o senhor não está satisfeito com o meu trabalho, então, me despeça.
LUÍS CÉSAR: — Você está com vontade de pedir demissão?
MÔNICA: — Eu, não!
LUÍS CÉSAR: — Então, vamos combinar assim: quando você estiver com vontade de pedir demissão, venha falar comigo e peça demissão; quando eu estiver com vontade de demiti-la, chamo você e a demito. Por enquanto, estou apenas com vontade de lhe dizer que não estou satisfeito com o fato de que você XYZWJ. Fui claro?

COMENTÁRIO DO LEITOR SOBRE OS DIÁLOGOS ACIMA: “esse é um diálogo antigo ..., mas, por incrível que pareça, é nesse que vejo o maior buraco. Por que essas pessoas – e eu mesmo – sentimos tanta necessidade do diálogo macroscópico? Por que, se a colocação é “sopa fria”, a resposta latente é “vida sem amor”? Se sentimos essa necessidade, o tema dessa resposta é muito importante. E, se esse tema macroscópico é importante, não é golpe baixo trazê-lo para o microscópico? ... [Muitas pessoas] trazem à baila seus temas macro, porque aquela droga está lá, precisando ser dita, mas, sem um gancho, elas não falam. Então, eu acho que, uma vez que venha um tema não solicitado (sua funcionária em “demissão” e a mulher da “sopa fria”), devemos tratá-lo (como você trata, mas de forma incompleta) em duas partes: esquentar a sopa e entender por que ela acha que não é amada (pode não ser mesmo e talvez a questão esteja sendo adiada). Não tenho todo seu know how para lidar com pessoas, mas desconfio de que, por detrás de toda a passagem do micro para o macro, existe um surdo ao assunto macro ou, no mínimo, um ausente e que é um inferno a gente ficar tentando falar com uma companheira ou patrão que não quer ouvir.”

LUÍS CÉSAR: Concordo com você sobre que, sempre que circunstâncias, tempo e lugar nos permitem – o que será, provavelmente, a maioria das vezes – devemos ter respeito pelos temas que nossos interlocutores tentam introduzir. Com duas adições: Primeira, LOGO DEPOIS que ela tiver demonstrado idêntico respeito pelo tema que nós ANTERIORMENTE introduzimos, não mudando de assunto para evitar que se o considere, e, segundo, caso estejamos, de fato, querendo ENTENDER POR QUE essa pessoa acha que não é amada, ou que vai ser despedida etc., A ÚNICA MANEIRA EFICAZ DE O FAZER É TRATÁ-LO DE MANEIRA MICROSCÓPICA.”